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Com quantas "cenas" se forma a identidade musical de uma cidade no Brasil

A balada Isto Não É Um Karaokê, no Mandíbula Bar - Reprodução / Facebook
A balada Isto Não É Um Karaokê, no Mandíbula Bar Imagem: Reprodução / Facebook

Peu Araújo

Colaboração para o TAB, em São Paulo

30/04/2019 04h02

Nem todo mundo pode se considerar um Nelson Motta, talvez a pessoa que, reza a lenda, mais fez jus ao conceito de "estar na hora certa e no lugar certo" na história da música brasileira. Mas, se você passou dos 25 anos e nutre o hábito ir a shows e festas, tem a considerável chance de compartilhar com o compositor, produtor e jornalista um sentimento: o de ver a famosa "cena" nascer, seja lá qual for o som, contexto ou pessoas envolvidas.

Essas fendas no espaço-tempo da música - principalmente a independente - surgem por vários fatores, entre eles gostos, intenções e influências, mas há um item que proporciona que elas cresçam e se mantenham: as casas de shows e espaços culturais.

Esses fatores que formam a identidade musical das cidades será tema de uma mesa de discussão no Festival Path, principal evento de inovação e criatividade do Brasil e que em 2019 é apresentado pelo TAB. O Path corre nos dias 1 e 2 de junho, em São Paulo.

Numa lista rápida e, por que não dizer, um tanto delirante de casas históricas, podemos ir, apenas na cidade de São Paulo, de palcos do punk a pistas do eletrônico, passando pelo rap, samba e forró: Hangar 110, Cerveja Azul, Ó do Borogodó, Kazebre Rock Bar, D-Edge, Studio SP, Hole, Sarajevo, Vegas, Canto da Ema, DJ Club, Blen Blen, Teatro Mars, The Week, Blue Space, Madame Satã, Love Story, Millo Garage, Neu, Tunnel, Aloka, Matrix e Fun House. Vários desses picos já fecharam, mas seguem a dar uma dimensão da pluralidade da capital paulista.

TAB apresenta o Festival Path 2019, o maior e mais diverso evento de inovação de criatividade do Brasil. Saiba mais e participe.

Veja a programação completa

Vale um exercício para ilustrar como a coisa toda funciona. Vamos pegar o Vegas. O clube funcionou de 2005 a 2012 no número 765 da rua Augusta. Dava espaço para a música eletrônica. Promovia noites regulares com nomes como o DJ Marky. A partir do sucesso da casa, a região, que vivia uma decadência boêmia, voltou a ser uma opção na noite paulistana. Outras casas também fincaram bandeira, a mídia começou a noticiar a efervescência e o melhor rolê de São Paulo, ou pelo menos o mais diverso, passou pelo chamado Baixo Augusta nos 10 anos seguintes.

Nesse caso estamos falando de várias tribos, vários tipos de festas. Há exemplos como o Hangar 110, que de 1998 a 2017 fez história na rua Rodolfo Miranda, 110, no Bom Retiro. O galpão abafado - e que por um tempo teve uma mini rampa - foi em seu auge o espaço mais nobre para o hardcore e punk brasileiro. A abertura e o fechamento foram feitos pelo CPM 22, uma das dezenas de bandas que se beneficiaram com essa cena.

Se estiverem mais que alinhados, a ponto se estabelecerem praticamente uma comunhão com frequentadores e artistas que recebem, casas de shows e baladas podem ser mais do que espaços para apresentações. Transformam-se em ambientes de troca, de conexão, que inevitavelmente irão refletir a identidade cultural de um grupo, um bairro e muitas vezes até de uma cidade. Seattle está aí para não nos deixar esquecer...

A possibilidade de ter projetos constantes e com consistência forma público, cria comunidades, permite que projetos novos sejam lapidados e amadurecidos, contribuindo com o potencial local
Esmeraldo Marques Filho, que como músico atua com a alcunha de ChicoCorrea

Sócio de uma produtora em João Pessoa, na Paraíba, Esmeraldo coordena várias atividades culturais na região. Ele conta um pouco desse processo. "Na minha experiência com a Miragem como casa de show, conseguimos gerar fluxo de público onde antes ninguém ia. Não apenas com shows e bar, mas criando espaços para literatura, arte contemporânea, audiovisual, feiras culturais, projetos multilinguagem, oficinas e workshops de arte e tecnologia. Algumas atividades pagas outras gratuitas, com o foco na formação de público", afirma.

Deu para ter um termômetro da necessidade de espaços criativos na cidade e como eles influenciam o em torno criando fluxo de pessoas, troca de ideias, serviços, narrativas, inclusive gerando mais segurança na região
Esmeraldo Marques Filho, o ChicoCorrea

Esmeraldo Marques Filho, o ChicoCorrea, produtor e músico em João Pessoa - Divulgação - Divulgação
Esmeraldo Marques Filho, o ChicoCorrea
Imagem: Divulgação

Bem complexo, desde o ponto de vista da sustentabilidade financeira ao momento esquizofrênico em que o país vive, criminalizando a produção cultural e atacando a diversidade de pensamento. Mais importante do que nunca que este tipo de espaço se multiplique
Esmeraldo Marques Filho, o ChicoCorrea, que dá seu parecer sobre como é manter um espaço cultural

Quem também fala dessa dificuldade é Monique Dardenne. "É muito difícil hoje manter qualquer coisa independente, principalmente projetos culturais, até porque não temos políticas públicas que apoiem e dão incentivo, muito pelo contrário. Temos uma carga de impostos muito alta, temos que estar com todos os alvarás em dia e algumas vezes é quase impossível de se ter", afirma.

Atuante no mercado há mais de 10 anos como booker de artistas nacionais e internacionais e gestora de carreiras, Monique foi diretora da WebTV Boiler Room no Brasil e é cofundadora da plataforma de música Women's Music Event, que inclui um portal de notícias, uma conferência e o WME Awards, by Music2, primeiro prêmio do tipo voltado às mulheres.

Monique Dardenne, cofundadora da plataforma de música Women's Music Event - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Monique Dardenne, cofundadora da plataforma de música Women's Music Event
Imagem: Arquivo Pessoal

Ela fala especificamente sobre o cenário musical independente e a importância de se ter casas de shows e festas de tamanho médio, ou seja, para poucas centenas de pessoas. "Quando você tem uma casa que comporta 500, 800 pessoas de artistas de porte menor, que essa cidade não teria acesso, você cria um interesse, um fomento para esta cena", afirma.

Monique dá dois exemplos: um em Porto Alegre, o Agulha, e o outro é justamente a Miragem de ChicoCorrea, em João Pessoa:

A cidade não tinha uma casa que recebesse esses artistas emergentes, como Duda Beat e Letrux, não tinha uma casa que abraçasse este tipo de artista. O Agulha cabem 350 pessoas. Se não tivesse este lugar em Porto Alegre, dificilmente esses artistas iriam para lá
Monique, sobre o Agulha, em Porto Alegre

Lá, eles aproveitam a ida de artistas que vão para Recife, porque fica a 1h30 de carro
Monique sobre a Miragem. Ela destaca uma tática para baratear os custos de produção e de realizar apresentações

Juntos de Eduardo Titton, proprietário do Agulha, Monique Dardenne e Esmeraldo Marques Filho estarão em 1º de junho em São Paulo falando mais sobre o assunto no Festival Path, que em 2019 é apresentado pelo TAB. Confira a programação e compre ingressos aqui.