Após prisão, produtora transforma Paraisópolis com locações de filmagem
A escadaria de cimento serve de arquibancada para duas mulheres em uma manhã ensolarada de maio. "Salve, Renata", diz uma delas. Plantas e flores cercam a fachada da Igreja Nossa Senhora do Paraíso. Passarinhos cantam. "Aqui é uma outra Paraisópolis. Tem um clima de vila, é mais tranquilo. Depois a gente vai para o centrão, lá o negócio ferve", explica Renata enquanto caminhava.
Aos 39 anos, Renata Alves conhece cada palmo do bairro. É exigência da profissão. "Fizemos um comercial exatamente nesta parede. Colocamos a modelo aí sentada e já era". A próxima parada é um terreno baldio, com vista panorâmica para as casas em tom marrom, praticamente iguais se olhadas rapidamente. "Isso aqui estava tomado de gente. O helicóptero com o Henri Castelli desceu aqui no meio", comenta, ao relembrar mais uma empreitada comercial: a telenovela "I Love Paraisópolis", da TV Globo, exibida em 2015.
Em apenas um quarteirão, Renata elenca uma série de marcas que conseguiu trazer para dentro da favela: Natura, Avon, Gillette, BMW e Nike. Há quase dez anos, ela tem ressignificado o lugar onde nasceu e cresceu, transformando-o em cenário para experiências cinematográficas das mais diversas. "Se precisar explodir uma bomba dentro da favela a gente faz acontecer", garante.
Segundo o último Censo, realizado em 2010, 42 mil pessoas viviam em Paraisópolis. De lá pra cá, estima-se que a favela já tenha 100 mil habitantes. O aluguel de uma casa com três cômodos está na faixa de R$ 600.
Considerada a segunda maior favela de São Paulo (só perde para outra com nome sonoro: Heliópolis), Paraisópolis tem cerca de 8 mil estabelecimentos comerciais. Registrar esse cotidiano tem sido a missão da Quebrada Produções, a produtora criada por Renata Alves em meados de 2009. "Quero mostrar um novo cenário. Quando você fala de favela geralmente as pessoas querem gravar cena de fuga, sequestro, algo que passa uma imagem ruim. Temos ruas bonitas e que podem proporcionar um outro olhar."
A empresa surgiu porque a oportunidade se apresentou para Renata. "O governo federal veio gravar um comercial sobre reurbanização, e eu ajudei o pessoal a andar aqui". No final, Renata virou personagem, participou da ação promocional e, de quebra, descobriu uma profissão.
O escritório está em processo de transformação. O bar que por lá existia se revela na geladeira com resquícios de Velho Barreiro e garrafas vazias de cerveja. A bancada que serve de apoio ao computador divide espaço com uma mesa de plástico. Graffites decoram a parede. "Em um lugar onde não há atividades culturais, a violência vira espetáculo", sentencia a empreendedora.
A porta da Quebrada Produções está sempre aberta e recebe todos os estímulos da rua Ernest Renan, uma das mais movimentadas de Paraisópolis. Aparelhos de som anunciam o botijão de gás, o preço da pamonha e o cardápio de um bar próximo. "A gente quer trazer o cliente para negociar aqui. Estamos construindo um lugar que tenha a nossa cara, seja minimamente quieto, mas que possa ter a cara da favela", diz Higor Carvalho, namorado de Renata e sócio da empresa.
Foi nas mãos de Higor, aliás, que o segundo trabalho da Quebrada Produções aconteceu. "Mas eu passei pra frente, e a Renata cuidou. Esse deu dor de cabeça", lembra. Em 2010, a Coca-Cola decidiu usar o campo da Associação Palmeirinha Jardim Paraisópolis para gravar uma ação comercial visando a Copa do Mundo daquele ano, na África do Sul, com a jogadora Marta, escolhida seis vezes melhor do planeta no prêmio da FIFA. "Não tínhamos malícia para exigir o que exigimos hoje. Trouxeram figuração de fora. E ficamos de babá", diz Renata, sem lamentar por completo. "Foi um sábado inteiro de trabalho, mas acabou rolando".
As dificuldades têm variado desde que o negócio vingou. "Criamos uma empresa com CNPJ, porque antes ficava tudo no meu nome. Agora, nosso maior problema tem sido precificar da maneira justa o nosso trabalho", afirma Renata. "Eu tinha medo de pedir o que é certo em algumas negociações, mas estou mudando, porque só assim vamos evoluir", complementa Higor. A grana que entra serve para estruturar a casa, pagar os freelancers e, no final, "comprar uma pizza", brinca a dupla.
Outra situação recorrente, descreve Renata, é o espanto que ela causa em produtoras que não a conhecem pessoalmente. "Eles chegam aqui achando que vão encontrar uma moradora de favela que não sabe o que está fazendo. Quando eu otimizo o tempo deles e dou uma solução, rola aquela cara de espanto. Eu adoro essa cara de susto. Posso não ter uma faculdade, mas tenho a vivência, o feeling", assegura.
Atualmente, a Quebrada Produções tem dois funcionários, para além de Renata e Igor. Para cada trabalho, há uma convocação de pessoas da favela para dar suporte. Ela se diz "chata" quando o assunto é gerenciar a equipe. "Sempre que tem um job digo que precisamos ser 1000%, porque todos esperam um erro ou falha. Em dia de trampo não tem risadinha. Tem que antecipar o desejo do cliente", comenta. Além das tarefas operacionais da empresa, Renata tem exigido dos contratantes que parte da equipe de figuração, quando necessária, seja realizada por pessoas que sejam de Paraisópolis. "Quer vir na favela gravar e mexer com a rotina? Então precisa utilizar quem está aqui. Nós temos atores, roteiristas, diretores, que só esperam uma oportunidade para mostrar talento", alega.
Estimular a arte dentro de Paraisópolis tem efeitos diversos. Ao propiciar novas oportunidades aos moradores da favela, Renata faz com que toda a movimentação gerada pelos projetos da Quebrada Produções seja aceita com baixa restrição. "A gente já moveu um ponto de ônibus de lugar e sempre pedimos para o morador tirar o carro da rua. É complicado mexer na vida das pessoas dessa maneira. Tem que ter respeito, e muitos que vêm de fora não tem". O lado econômico também possui influência. "Quero deixar o dinheiro na favela, rodando aqui dentro. É um retorno que preciso dar ao morador."
Mas nem tudo são flores. Ao caminhar pelas vielas de Paraisópolis, Higor e Renata vão anunciando, de maneira sutil, o que pode ou não ser fotografado. Não são raros os momentos em que ele pede ao fotógrafo que nos acompanha para que a câmera seja guardada na mochila. Apesar da aparente tranquilidade que move o bairro, nem tudo pode ser registrado.
"O relacionamento com o tráfico é tranquilo. Quem é daqui sabe como funciona. O problema é para quem vem de fora. Sempre que vamos fazer algo, precisamos avisar. As equipes sobem drone, tem gente desconhecida para todo lado", salienta Renata. Em dias mais complicados com o "movimento", nem mesmo a produtora consegue trabalhar em paz. "Quando a situação fica muito tensa, e alguém liga querendo fazer algo aqui dentro, eu pergunto se a pessoa não está assistindo TV."
O surgimento da Quebrada Produções sucedeu um período delicado para Renata. Não há pudor em relembrar os quase três anos de prisão, após a tentativa de entrar na cadeia com maconha para ajudar um ex-namorado. O ano era 2006. "Trabalhei na enfermaria e tive contato com praticamente todas as detentas. Criei um laço com elas ao entender suas necessidades sem qualquer julgamento. É preciso ver o ser humano que errou e ter a sensibilidade de ouvir".
O apoio da família para superar o cárcere foi fundamental, inclusive para cuidar do filho Lucas, hoje com 20 anos. "Tive pai, mãe, irmãos, e isso se manteve mesmo quando errei. Estou rodeada de pessoas que não desistiram de mim", reflete.
Em uma palestra recente na Google Campus para internas da Fundação Casa, Renata deu a letra às jovens infratoras. "Mostrei que elas não precisam trilhar um caminho com tantos espinhos para alcançar o que conquistei até aqui".
Ao sair da prisão, em 2009, Renata Alves estava decidida a cursar alguma faculdade. A escolha foi psicologia. "Acho que de tanto ouvir as outras detentas criei esse desejo", pondera. Mas a produção do primeiro comercial mudou tudo. "Descobri uma profissão sem querer". Ao voltar para Paraisópolis e criar sua empresa, ela percebeu que fazer cinema ali seria uma oportunidade de mudar a visão da população em relação ao bairro. Mas não só.
Em um país no qual apenas 2% dos diretores de cinema são negros, segundo dados da Agência Nacional de Cinema (Ancine), estar inserido nesse mercado é propor uma pequena revolução. "Não ver negros é frustrante, independente do sexo. Até tem em funções braçais, mas não como roteiristas, atrizes. A não ser os globais. Mas mudar isso também é parte da minha missão aqui: colocar negros, periféricos e mulheres em todas as escalas de trabalho que a Quebrada Produções tiver força", finaliza.
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