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'Hora mais escura' na quarentena italiana busca evitar 'fuga' para o Sul

Aeroporto de Fiumicino, em Roma - Lucas Ferraz/UOL
Aeroporto de Fiumicino, em Roma Imagem: Lucas Ferraz/UOL

Lucas Ferraz

Colaboração para o TAB, de Roma

10/03/2020 10h26Atualizada em 12/03/2020 15h28

A escalada da crise do coronavírus na Itália se deu no fim de semana, quando o índice de contaminados — e mortos — continuou a crescer significativamente em meio a inúmeras falhas de controle e de comunicação, o que levou um número expressivo de italianos residentes no Norte, região mais crítica da difusão da epidemia até agora, a fugir para o centro e o Sul do país. O número de casos de Covid-19 chegou a 9 mil, com 463 mortes. Cerca de 5 mil pacientes estão internados.

A preocupação das autoridades é que a difusão do coronavírus nessas duas regiões, em especial no Sul, onde o sistema de saúde é mais frágil em relação ao Norte rico e desenvolvido, agrave ainda mais a situação, podendo levar a um colapso do sistema sanitário italiano, já sobrecarregado.

Esta é uma das razões da decisão do governo italiano, comunicada nesta segunda-feira (9), de impor uma quarentena geral em toda a península, transformando a Itália no primeiro país do mundo a impor restrições a toda sua população para tentar frear a difusão da doença. Deslocamentos de moradores e turistas precisarão ser autorizados por agentes de segurança até o dia 3 de abril.

Eu e minha mulher estávamos no Sul da Itália no fim de semana, num passeio programado há meses, que não precisou ser cancelado ou adiado, quando a crise tomou forma de emergência nacional. A última vez que o país viu tamanho controle social foi na Segunda Guerra Mundial, e lá se vão mais de 75 anos.

Na sexta-feira, dia 6, ainda antes da quarentena forçada, embarcamos cedo no aeroporto de Fiumicino, em Roma, em direção a Bari, na Puglia, região do Sul. Na capital italiana, já esvaziada, não havia controle. O movimento era pequeno e tensionado pelo uso de máscaras e luvas por parte dos funcionários e dos passageiros.

Esteiras vazias no aeroporto de Fiumicino, em Roma - Lucas Ferraz/UOL - Lucas Ferraz/UOL
Esteiras vazias no aeroporto de Fiumicino, em Roma
Imagem: Lucas Ferraz/UOL

Muitos portavam a proteção na boca e no nariz, mas a tiravam de tanto em tanto, seja dentro do avião ou na área de embarque, para conversar com alguém ou mesmo para demonstrações de afeto. Como dizem os especialistas, as máscaras muitas vezes servem apenas para proteger o psicológico de cada um. O voo estava mais vazio que o normal, disse a aeromoça, que usava apenas luvas como medida de proteção.

Os primeiros sinais de controle só vimos em Bari. Uma força médica controlava a temperatura corporal de todos os que desembarcaram do voo proveniente de Roma. A medida era para detectar se alguém estava com febre, um dos sintomas do novo vírus, embora se saiba que ele pode estar presente no corpo e não dar nenhum sinal — podendo incubar por até 14 dias.

Viajamos depois de ônibus, por pouco mais de uma hora, de Bari até Matera, pequena cidade na Basilicata, outra região do Sul, que é uma das joias da Itália: sua origem remonta ao período neolítico, cerca de 8 mil anos antes de Cristo, uma das cidades mais antigas do mundo.

Considerada em 2019 a capital da cultura na Europa, Matera é hoje um importante destino turístico, mas estava semi-deserta, como de resto praticamente todos os outros. Muitos negócios estavam fechados, e os comerciantes que se aventuravam eram só lamento. Nunca tinham visto a cidade tão vazia.

Vista da cidade de Matera, no sul da Itália, capital da cultura da Europa em 2019 - Lucas Ferraz/UOL - Lucas Ferraz/UOL
Vista da cidade de Matera, no sul da Itália, capital da cultura da Europa em 2019
Imagem: Lucas Ferraz/UOL

Com o fechamento de museus em todo o país e a suspensão de atividades como as audiências do papa Francisco na praça de São Pedro, no Vaticano, Roma também ficou deserta. Hotéis ainda tentavam seduzir eventuais turistas com ofertas — no centro histórico, próximo da Fontana di Trevi e do Quirinale, um deles oferecia pernoite por 29 euros (na alta temporada, o valor da diária pode chegar a 200 euros).

Terceira maior economia da zona do euro, a Itália tem crescido pouco (a previsão do PIB para este ano, num cenário otimista, era expandir 0,6%) e já está sendo fortemente impactada, ao ser obrigada a desacelerar por causa do coronavírus. O setor do turismo será um dos mais afetados. Tecnicamente, segundo analistas, o país já está em recessão. A projeção inicial do governo indica que a Itália precisará de pelo menos 7,5 bilhões de euros em incentivos para a sua combalida economia.

Os impactos políticos e sociais também já começam a serem sentidos, como mostraram as rebeliões que explodiram em pelo menos 27 penitenciárias em todo o país, com um saldo de pelo menos dez mortos. Os presos protestam por causa das limitações impostas, já que não podem ver os familiares, além da falta de informação e das condições de alguns dos centros de detenção (lotados).

Pânico e escapada ao Sul

Entre sábado (7) e domingo (8), após inúmeras informações desencontradas e contraditórias, soube-se que o governo preparava um decreto para forçar a quarentena de um quarto do país, cerca de 16 milhões de pessoas residentes no Norte. Elas ficariam impedidas de transitar livremente (exceto por motivos de saúde ou trabalho) e estavam canceladas reuniões, atividades culturais, missas, casamentos e até funerais. As escolas e universidades do país já estavam fechadas.

Foi quando começou uma fuga em massa de italianos do Norte que escapavam da quarentena para se refugiarem no Sul, onde a difusão do novo vírus ainda não se alastrou. Em Matera, numa visita que eu e minha mulher fizemos a uma igreja rupestre, havia apenas um outro casal de turistas. Começamos a conversar e os dois ficaram constrangidos quando perguntamos de onde vinham: da Lombardia (responsável por um quarto do PIB italiano), a região do Norte mais afetada até agora pela difusão do corona. Eles aproveitaram o frenesi no local e escaparam para o Sul.

Como os dois, cerca de 25 mil pessoas deixaram o Norte para as regiões meridionais da Itália. Segundo a imprensa italiana, a maioria era estudante que voltava para a casa dos pais. O movimento alarmou a Proteção Civil do país, que pediu para todas as regiões controlar os passageiros que chegavam do norte.

Era a gênese da decisão que passou a vigorar nesta terça-feira (10), a quarentena ampla, geral e irrestrita em todo o país. O êxodo, explicaram as autoridades, era uma ameaça à saúde pública.

10.mar.2020 - Pedestres caminham no centro de Milão, na Itália, usando máscaras devido à epidemia do novo coronavírus. A Itália impôs um isolamento no norte do páis para evitar a propagação do novo coronavírus - Miguel Medina/AFP (10.3.2020) - Miguel Medina/AFP (10.3.2020)
Pedestres caminham no centro de Milão, na Itália
Imagem: Miguel Medina/AFP (10.3.2020)

Apesar do controle previsto no decreto, as falhas continuaram no domingo (8), conforme testemunhamos ao retornar para Roma. Na estação de ônibus de Matera, policiais controlavam todos os que desembarcavam. Checavam a proveniência dos passageiros, e caso viessem das províncias ao Norte, deveriam ser monitorados.

No aeroporto de Bari os voos continuavam a chegar, cheios, e o controle de temperatura ainda era feito — mas só para quem entrava no território. Desembarcamos no setor de voos domésticos do aeroporto de Fiumicino, em Roma, e não passamos por qualquer procedimento ou controle. Havia só medo e um certo estupor no rosto dos passageiros.

Diante do aumento da difusão, e de regras que não eram cumpridas em todo o país, veio a decisão comunicada pelo primeiro-ministro Giuseppe Conte de submeter todo o país à quarentena, decisão mais drástica tomada por um país desde o início da crise do coronavírus.

Evocando a fala de Winston Churchill nos tempos da Segunda Guerra Mundial, Conte disse que era necessário combater uma "guerra", palavra usada também por especialistas da área médica. Especula-se que o surto esteja apenas no início, e sua difusão no centro-sul do país poderá provocar danos ainda mais sérios - em número de vidas, de contagiados, de ordem política, econômica e social.

O chefe do governo italiano disse esta é a "hora mais escura" da Itália, e que será "necessário renunciar a qualquer coisa pelo bem" do país. Ele ressaltou que a "medida radical e extrema", que deve vigorar até o próximo dia 5 de abril, tem o objetivo de "tutelar o pilar no qual se funda nossa sociedade", a saúde de todos os cidadãos, em especial os idosos, em grande número.

Sem precedentes na história recente — da Itália e de qualquer outro país —, a decisão será um desafio para os italianos, que historicamente têm uma relação de desconfiança com toda e qualquer regra.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi informado, embora esteja crescendo pouco, a economia italiana é uma das mais fortes da Zona do Euro.