'Terapia com robô': inteligência artificial minimiza transtornos mentais?
Desde que fui diagnosticada com depressão e ansiedade generalizada, há mais ou menos três anos, experimentei diferentes tipos de terapias. Psicanálise, interpessoal, transpessoal, uma mistura muito louca de todas as anteriores com toques meio místicos, e até reiki. Recentemente, testei uma bem inusitada: terapia com robô.
Calma, não é que fui a um consultório e em vez de um psicólogo humano encontrei uma máquina. Fiz tudo do conforto do meu sofá — ou cama, mesa de trabalho — e confesso que fiquei tentada a fazer terapia até na esteira da academia. Trata-se de um das centenas de apps de saúde mental que usam inteligência artificial e aprendizagem de máquina para o tratamento dos mais variados transtornos mentais.
No meu caso, escolhi experimentar o Youper, criado por brasileiros e atualmente sediado nos EUA, que há pouco tempo recebeu um aporte de US$ 3 milhões. Mas poderia ter escolhido o da também brasileira TNH Health, o What's Up, o Happify, ou o Woebot — que prometia ser "meu amigo encantador que estaria sempre me ouvindo". E essas eram só algumas das opções. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 29% dos aplicativos de saúde focam em saúde mental.
"O Youper nasceu da junção de ideias de pessoas que buscavam criar algo de impacto global. E desafios emocionais são algo humano, todos nós passaremos por experiências de felicidade e tristeza", me disse um dos criadores do Youper, o designer Diego Dotta. "Nossa visão é de que todo mundo pode ter acesso a um assistente emocional sempre disponível."
Em algum momento da vida, muita gente provavelmente vai precisar dessa ajuda: a OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que uma a cada quatro pessoas vai sofrer com algum transtorno mental durante a vida. Apesar disso, avalia a OMS, os investimentos dos países no tratamento não corresponde à alta demanda, deixando-as sem os cuidados adequados. "Não queremos substituir os profissionais de saúde, o problema é que não tem [profissional] para todos", explica o CEO da TNH Health, Michael Kapps.
A técnica humana da inteligência artificial
Com pequenas variações, a lógica por trás dos apps é mais ou menos semelhante, mas difere da de outros disponíveis no mercado, que conectam pacientes a psicólogos que fazem terapia online. Eles transferem para modelos de inteligência artificial a estrutura da terapia cognitivo comportamental — linha desenvolvida pelo norte-americano Aaron Beck que tem como principal objetivo alterar pensamentos disfuncionais dos pacientes.
"Esses aplicativos são quase como uma psicoeducação: eles ensinam as pessoas a se auto-analisarem", diz o psicólogo Thiago Del Poço, professor convidado do Janus, Laboratório de Estudos de Psicologia e Tecnologias da Informação e Comunicação da PUC-SP. "São também boas ferramentas de emergência para quando o terapeuta não está disponível."
Uma "sessão" com o Youper funciona mais ou menos assim: ele dá oi e diz que é ótimo te ver novamente (é importante criar empatia, explica Del Poço, mesmo que se trate de uma IA), para então perguntar como você está se sentindo. É possível escolher um sentimento de uma série de opções, identificar as causas e ranquear quão forte é a sensação.
No primeiro dia usando o app, por exemplo, estava me sentindo "moderadamente cansada" por causa de "amigos, trabalho, socialização e alimentação". O Youper então sugeriu que eu identificasse e registrasse com maior especificidade o que pode estar causando a sensação. Ele também trouxe informações sobre os benefícios da terapia e da autoanálise (a tal da psicoeducação) e me guiou por uma sessão de meditação. Optei por oito minutos de meditação e, depois de 14 minutos de interação com a IA, acabei me sentindo "moderadamente bem". Seria ele a solução para todos os meus problemas?
Nem robôs são perfeitos
Doce ilusão. Oito minutos depois de usar o Youper, acabei me sentindo "extremamente irritada", porque nada do que o app me sugeria — registrar os sentimentos, praticar mindfulness — me parecia adequado. No mesmo dia, à noite, voltei a me sentir extremamente cansada por causa de dores na lombar e de cabeça.
"Os robôs terapeutas no fundo são assistentes virtuais como a Siri [da Apple], e nós sabemos que eles não são perfeitos. Vai chegar um momento que a própria pessoa vai ver que ele tem limitações", opina Del Poço. Outra limitação, pelo menos para o público brasileiro, é que o app é todo em inglês, embora isso possa ser resolvido simplesmente escolhendo um em português.
São principalmente as limitações que ainda previnem que muita gente se vicie em conversar com a IA. Não que não aconteça: o fundador da TNH Health afirma que existem pessoas que querem interagir com o app o tempo inteiro, a ponto de terem criado uma versão de assinatura "premium" para suprir a demanda por conteúdo. E eles dependem do uso frequente para estruturar os dados e fornecer insights melhores. No meu caso, em uma semana de uso, o Youper conseguiu me dizer quais são os principais gatilhos que me fazem sentir cansada.
O fato de lidarem com tantos dados tem aspectos positivos e negativos. "Os positivos", explica o psicólogo, "são que eles criam uma espécie de diário mental que pode ser interessante para o acompanhamento do terapeuta humano. Por mais que algumas linhas de terapia prevejam o uso de 'lições de casa', essa cultura não é tão forte no Brasil. E ter tudo mastigadinho, com direito a lembretes, não é nada mau."
Os pontos negativos entram no que talvez seja a maior discussão ética da atualidade: como todos esses dados, que no caso dos robôs terapeutas são bastante pessoais e sensíveis, serão usados pelas empresas de tecnologia que os recolhem? Por mais que prometam proteção da privacidade, não há garantia de que não serão compartilhados com outras empresas interessadas em tais informações ou mesmo roubados por hackers.
No Brasil, por exemplo, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais foi sancionada em 2018 e entra em vigor em agosto de 2020 para atuar no sentido de proteger a privacidade dos usuários. Mas, na prática, isso pode significar só uma multa às empresas que descumpram a regra — como aconteceu com Apple e Google, que levaram uma multa milionária do Procon-SP por disponibilizarem em suas lojas o aplicativo FaceApp, que virou febre nas redes sociais na metade do ano e vendia dados dos usuários a anunciantes.
Levando tudo isso em consideração, surge a dúvida: os robôs terapeutas são eficazes a ponto de valer a pena compartilhar tanta informação pessoal? O Conselho Federal de Psicologia ainda não tem um posicionamento oficial. Há um ano, o conselho publicou uma resolução que regulamenta o atendimento psicológico online, mas os robôs não foram incluídos. "Provavelmente será matéria para uma próxima etapa", escreveu a psicóloga Rosane Granzotto, conselheira do CFP, em uma nota por e-mail.
Para o psicólogo do núcleo de estudos da PUC, as ferramentas têm muito a agregar ao tratamento psicológico. Ele, assim como os criadores dos apps com quem conversei, não acreditam que a inteligência artificial substituirá os divãs tão cedo. "Os apps são bacanas porque são porta de entrada para a terapia e possibilitam o acesso de pessoas que não o teriam de outra forma", diz Del Poço. Ele lembra que muitos pacientes não buscam ajuda por causa do estigma ainda existente quando o assunto é transtornos mentais.
Depois de uma semana testando o aplicativo, eu, que há muito já superei estigmas e cruzei portas de entrada de consultórios psicológicos — e não teria achado ruim se os robôs existissem três anos atrás —, tendo a concordar com esse posicionamento. A experiência com o Youper foi divertida, e provavelmente não vou deletar o app do celular tão cedo: as meditações guiadas são legais e estou curiosa para saber o que mais ele descobre sobre minha mente. Mas, acima de tudo, não vejo a hora de poder compartilhar tudo isso com minha psicóloga.
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