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Cultura da hora extra: 'Dementia 21' discute relações de trabalho no Japão

Dementia 21, HQ de Shintaro Kago - Reprodução
Dementia 21, HQ de Shintaro Kago Imagem: Reprodução

Cláudio Gabriel

Colaboração para o TAB

24/06/2020 04h00

Yukie é cuidadora de idosos. Ela trabalha em uma empresa especializada no atendimento a pessoas dessa idade, e recebe sempre avaliações positivas pela função. Depois de ganhar uma espécie de "Funcionário do Mês" e encontrar-se em primeiro lugar na pesquisa de satisfação da empresa, seu chefe realiza uma manobra para ela cair de posição. Para reconquistar o topo, ela deverá trabalhar muito mais e, assim, multiplicar suas respostas positivas.

O início de "Dementia 21", mangá de Shintaro Kago, parece o de uma obra dramática. No entanto, a personagem principal vai tornando-se cada vez mais obcecada com o trabalho e a história ganha ares psicodélicos e insanos. Seus atributos cômicos tornam o debate sobre a sociedade japonesa muito mais complexo do que parece. De cara, o autor critica a "hustle culture" à japonesa, em que o trabalho excessivo é ultravalorizado.

A carreira de Kago, que se iniciou em 1988, tem a relação trabalhista como um assunto de grande recorrência -- apesar de não ser o principal. A questão visual mais explorada pelo artista é o uso de figuras humanas para trazer um erotismo bizarro, grotesco, conhecido como "ero guro nonsense".

O debate sobre o sistema de trabalho não é exclusivo do mangá, mas uma grande questão dentro da sociedade nipônica. Outras obras artísticas, como o livro "Querida Konbini", da escritora Sayaka Murata -- que fala de uma balconista obcecada pelo trabalho --, ou o filme "Pais e Filhos" (2013), do diretor Hirokazu Kore-eda, retratando a história de um homem obcecado pelo trabalho, às voltas com questões familiares, também tratam de relações trabalhistas de forma contundente.

Trabalhar demais é problema de saúde pública no Japão: a exaustão seguida de morte é comum, tanto que é descrita na língua japonesa com dois termos: karoshi (morrer por trabalhar demais) e karojisatsu (suicidar-se por trabalhar demais).

As definições e o debate

A OIT (Organização Internacional do Trabalho) define, em artigo, o que seria karoshi. Esse é um termo médico-social que se refere a fatalidades ou incapacidade de trabalho devido a um problema cardiovascular, agravado por uma carga de trabalho excessiva, em extensão ou intensidade. O karojisatsu é uma subdivisão dele e, dentro da definição, há ainda a menção a classes mais vulneráveis: trabalhadores de uma grande companhia de salgadinhos, motoristas de ônibus, enfermeiras e trabalhadores de grandes companhias de impressão são algumas das vítimas descritas.

O karoshi pode acontecer de diversas maneiras. As mais comuns são por estresse acumulado, horas consecutivas de trabalho -- incluindo feriados -- e demissões forçadas. Segundo dados do governo japonês coletados em 2015, cerca de 21% dos cidadãos do país disseram trabalhar, em média, 49 horas ou mais por semana -- números maiores do que os dos Estados Unidos e da Europa. Uma pesquisa realizada em 2016 indicou que 20% dos japoneses chegam a fazer 80 horas extras mensais em seus empregos.

Em 2018, o Ministério da Economia japonês começou uma campanha para incentivar os trabalhadores a tirarem folgas no período da manhã de uma segunda-feira por mês. A chamada "segunda-feira da felicidade", no entanto, não surtiu tanto efeito: apenas 11% dos trabalhadores japoneses utilizaram esse descanso permitido por lei.

Em entrevista ao TAB, Shintaro, criador da HQ, disse que até ele sofre. "Depois de trabalhar um tempo longe, fico doente ou volto com depressão. As empresas deveriam tratar isso com maior seriedade", pontua.

Ao longo do ano, os japoneses têm direito a tirar 20 dias de férias. Porém, segundo o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar, trabalhadores costumam utilizar apenas oito dias -- isso sem contar os 35% que não tiram nenhum dia de descanso.

Um dos casos mais famosos da doença foi de Matsuri Takahashi, que se matou em 2015, após mais de 100 horas de trabalho em uma semana. De acordo com Rina Ishikawa, cônsul cultural do Consulado-Geral do Japão no Rio de Janeiro, desde o caso há um esforço para evitar mortes. "Com isso, em abril de 2019, aplicou-se uma lei que hoje contempla funcionários públicos e as grandes empresas, na tentativa de corrigir as longas jornadas de trabalho."

De acordo com reportagem da BBC, em 2015, mais de 2 mil famílias que pediram compensações financeiras ao governo por morte devido a uma das decorrências.

Dentro do Japão, há ainda a prática do inemuri. É conhecido como o costume de dormir em qualquer lugar, especialmente em espaços públicos — como praças e veículos de transporte. Para muitos especialistas, o inemuri está atrelado ao trabalho excessivo no país.

A influência da Segunda Guerra

O primeiro caso de que se tem notícia de karoshi foi em 1969. Um homem de 29 anos que trabalhava em um grande jornal do país sucumbiu à sobrecarga de trabalho e acabou morrendo. A notícia causou comoção, porém não gerou mudanças significativas no mercado laboral.

Durante a bolha financeira e imobiliária dos anos 1980 e início dos anos 1990, diversos executivos de grandes empresas morriam sem nenhuma doença prévia. A situação causava espanto -- ainda mais por ser um período de ascensão da economia. Com a atenção da mídia para essa questão, o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar passou, a partir de 1987, a compilar dados sobre a nova doença.

A relação patológica com o trabalho no Japão se iniciou logo após a Segunda Guerra Mundial. Com a derrota das tropas japonesas e a necessidade de se restabelecer financeiramente, os empregados começaram a viver ainda mais tempo no serviço -- com uma média de até duas horas extras diariamente, segundo uma reportagem publicada pelo jornal The New York Times.

Segundo o professor Wataru Kikuchi, participante do Centro de Estudos Japoneses da USP (Universidade de São Paulo), quem promoveu isso foram as empresas privadas, que, por sua vez, contaram com o engajamento dos seus funcionários. "Há muitos relatos de quem cresceu nas décadas de 1950 e 1960 e não conheceu o pai, ou simplesmente não sabia reconhecê-lo até a fase adulta, pois esse pai estava sempre ausente, trabalhando. Criou-se uma situação de trabalho perversa no Japão: quanto mais dedicado é o funcionário, mais precisa dedicar seu tempo, inclusive aos domingos e feriados, correndo o risco de comprometer a saúde a ponto de morrer."

O pesquisador explica que a hierarquização é um dos grandes gatilhos nesse contexto. "No final do século 19, o Japão conheceu o modelo de empresa. Agregada à noção de hierarquia da classe -- que promoveu a modernização -- e à classe guerreira, tudo se relaciona", pontua. "Os militares participaram ativamente da reconstrução pós-Segunda Guerra. Isso marcou profundamente a formulação do modelo educacional japonês, que preza muito a disciplina além da parte mais visível, como a adoção de uniformes, existência de hino na escola etc. Assim, a tradição do respeito à hierarquia também permeou as relações de trabalho."

O fator coronavírus

Devido à proximidade com a China -- país em que a pandemia do novo coronavírus começou --, o Japão adotou diversas formas de se precaver. De acordo com Ishikawa, o país tem tentado diminuir em até 80% o contato interpessoal para evitar a proliferação da doença. Ela acredita que será inevitável a criação de novas modalidades de trabalho. "Até antes da pandemia, muitos pensavam que não conseguiriam trabalhar se não estivessem presentes no escritório. Agora, não se pode dizer o mesmo", opina.

O distanciamento social, já comum nessa sociedade, ajuda a explicar a baixa propagação do vírus. Apesar disso, segundo o Banco Mundial, 28% dos japoneses são maiores de 65 anos. O grupo de risco é, assim, alto. Como acontece em "Dementia 21", o número de postos de trabalho como cuidadores deve aumentar.

"A sociedade japonesa está envelhecendo e tem baixa taxa de natalidade, contando cada vez mais com estrangeiros como força de trabalho -- na sua maioria, chineses e imigrantes dos países do sudeste asiático, notadamente nos setores de produção e serviços", relata o professor Wataru. "Como consequência desse processo, a prática de home office já estava bastante difundida e deve aumentar. O distanciamento social deve se aprofundar. As pessoas ficarão ainda mais distantes entre si".