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Dinheiro pós-pandemia: economia colaborativa pode sair ainda mais forte

Ciclista do Uber Eats trabalha durante a pandemia de Covid-19, em Washington D.C. - Jonathan Ernst/REUTERS
Ciclista do Uber Eats trabalha durante a pandemia de Covid-19, em Washington D.C. Imagem: Jonathan Ernst/REUTERS

Humberto Maia Junior

Colaboração para o TAB

09/07/2020 04h00

A economia colaborativa é baseada em um conceito que hoje parece óbvio: se eu uso um carro poucas horas do dia, por que preciso ter um veículo, que custa caro e vai passar a maior parte do tempo estacionado na garagem? Se preciso de um furo na parede de casa, faz sentido comprar uma furadeira que, como o carro, ficará sem uso a maior parte do tempo? Parecia uma tendência que só cresceria. Eis que, em março de 2020, as pessoas se fecharam em suas casas e pararam de compartilhar. No lugar da colaboração, isolamento. Numa época em que as pessoas evitam trocas e interações pessoais, qual é o futuro da economia colaborativa?

COMO ESTAVA: Antes de falar dos impactos da Covid-19 na economia colaborativa, é bom traçarmos um panorama de toda a economia. E, parafraseando uma canção de Chico Buarque e Francis Hime, a situação é crítica. O mundo vive a pior crise das últimas décadas. O FMI (Fundo Monetário Internacional) prevê que a soma da riqueza produzida pelos países (que os economistas chamam de PIB) deve cair 5% em 2020. No Brasil, o impacto deve ser ainda maior: retração de 9,1%.

Esses números significam empreendedores fechando negócios, pessoas perdendo seus empregos — e todos eles ficando mais pobres. Uma pesquisa recente do Sebrae mostrou que, entre 14 e 20 de junho, o comércio varejista viu o faturamento cair 21% na comparação com o pré-crise. No setor de moda, a queda é de quase 50% e, nas empresas ligadas à economia criativa, 77% menos negócios.

COMO SE ADAPTOU: Mas o sonho de um mundo colaborativo não acabou. Longe disso. Mesmo durante a quarentena, alguns negócios ligados à economia compartilhada viram aumento. Ronaldo Lemos, cofundador e cientista chefe do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS), cita os serviços de entrega em domicílio entre os que já viram aumento na demanda. E diz que, após a quarentena, outros devem ver um boom, como bicicletas e patinetes compartilhados. "É provável que esses novos hábitos perdurem depois da fase de isolamento social", diz.

Guilherme Evans, sócio da consultoria Deloitte, diz que o sucesso da economia colaborativa num mundo pós Covid-19 passa por três conceitos: segurança, confiança e transparência. "As empresas precisam criar protocolos de segurança para minimizar o risco de contágio e comunicar isso de forma transparente", diz. "Só assim as pessoas se sentirão seguras em compartilhar."

O que está ocorrendo na China pode ser um indicativo do que pode ocorrer no Brasil e demais países. Lá o auge da pandemia passou, o país reabriu e a economia compartilhada retomou o crescimento. Segundo reportagem do South China Morning Post, as reservas no Airbnb aumentaram 200% em abril, na comparação com março. O volume de viagens da Didi, plataforma de mobilidade urbana similar a Uber, está perto de 70% dos níveis pré-Covid-19. A retomada ocorreu depois de as empresas adotarem um protocolo rígido de higiene.

COMO SERÁ DEPOIS: Alexandre del Rey, professor da FIA (Fundação Instituto de Administração), diz que a quarentena pode provocar mudanças nos hábitos, impusionando as empresas que estão sofrendo no momento, como Uber e Airbnb. No caso da plataforma de mobilidade, o maior receio a multidões pode inibir o uso de transporte público de massa, como metrôs ou ônibus. E, no caso do Airbnb, o serviço mais personalizado, bem diferente de um hotel com alta rotatividade, pode se mostrar uma vantagem. "No momento em que a economia tradicional passa por grandes desafios, a otimização de recursos e a sua flexibilização indicam um caminho promissor para o mundo pós-pandemia", diz.


CENÁRIOS POSITIVOS: O futuro tem tudo para ser promissor. Um estudo divulgado durante a pandemia pelo BCC Research mostrou que a economia compartilhada encerrou 2019 com valor de mercado de US$ 373 bilhões e deve chegar a US$ 1,5 trilhão em 2024 - um crescimento anual médio de 31%. Do total, cerca de 1 trilhão virá das plataformas financeiras p2p, como crowdfunding e de empréstimos.

Ainda que, passada a pandemia, as pessoas rejeitem totalmente a ideia de compartilhar "coisas" (carros, casas, vestidos de festa ou brinquedos) - um cenário irreal, diga-se - a economia colaborativa não irá acabar. O grande ativo a ser compartilhado no futuro será o tempo de cada pessoa. "A essência da economia compartilhada não está apenas na utilização mais otimizada dos recursos, mas também do tempo", diz Alexandre del Rey, da FIA.

A crise atual, a despeito das tragédias que trouxe, pode impulsionar um upgrade no conceito. Segundo o economista e presidente do Conselho Curador da FIA, Almir Ferreira de Sousa, a Covid-19 está levando as pessoas a repensar os papéis que elas exercem na economia. Essa reflexão ocorre nos hábitos de compras das pessoas, ou seja, no papel delas enquanto consumidoras, e também em outro papel: no de atores da economia. "Estamos chegando à conclusão de que não precisamos trabalhar tanto para sustentar tantas despesas", diz.

DESAFIOS: A transição para esse novo mundo exige mudanças na organização da sociedade. "A criatividade exige habilidades pessoais e conhecimentos", diz Sousa. "Nesse cenário, a educação passa a ser muito mais valorizada."

Essa nova economia não exigirá apenas uma população mais bem-educada, mas leis e regulamentações mais claras. Hoje, um dos pontos que segura o crescimento de setores da economia compartilhada é a falta de definição a respeito da relação entre as empresas e os trabalhadores - que agora são chamados de parceiros ou colaboradores. Um motorista do Uber é funcionário do aplicativo ou apenas utiliza a plataforma como um prestador de serviços?

Em 1º de julho, entregadores vinculados a aplicativos como Uber Eats, Rappi e iFood paralisaram as atividades como protesto para melhores condições de trabalho. A justiça brasileira tem sido chamada a julgar ações de trabalhadores que pedem o reconhecimento de vínculo empregatício dessas empresas. Faz sentido ou não? "As relações precisam ser reguladas", diz Gustavo Rotta, sócio da Deloitte.

"O profissional ainda vê o aplicativo como empregador e isso precisa estar bem definido. "Independentemente dessa polêmica, esse trabalhador precisará contar com alguma rede de proteção social, similar à do trabalhador formal. A inclusão dos informais no auxílio emergencial de R$ 600 que o governo está concedendo para as pessoas na atual pandemia é um bom sinal de mudança.