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Política pós-pandemia: polarização pode se tornar ainda mais acentuada?

Protestos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Edu Andrade/Fatopress
Protestos na Esplanada dos Ministérios, em Brasília Imagem: Edu Andrade/Fatopress

Humberto Maia Júnior

Colaboração para o TAB

16/07/2020 04h01

Uma das situações mais bizarras em meio à tragédia da Covid-19 é a polarização dos brasileiros em torno de um medicamento. De repente, milhões de pessoas discutem se pacientes infectados pelo novo coronavírus devem usar ou não a cloroquina — tudo isso enquanto o mundo científico ainda estuda a eficácia do medicamento.

Nos últimos anos, a disputa política tem levado as pessoas a radicalizar. Não se trata de um debate em prol do desenvolvimento do país. O que está em jogo é impor a razão, destroçar o adversário e, com isso, mostrar quem "está do lado certo da história".

Num cenário de discussões acaloradas, amizades desfeitas e reuniões familiares destroçadas, a pergunta que se faz é: aonde vamos parar?

COMO ESTAVA: Não é só no Brasil que a política tem provocado inimizades. Europa e Estados Unidos também têm visto a intolerância aumentar. Uma pesquisa do Pew Research Center de abril de 2020 mostrou que 71% dos eleitores democratas e simpatizantes disseram que não se relacionariam com eleitores do republicano Donald Trump. Entre os republicanos e simpatizantes, 47% não engatariam namoro com quem votou na democrata Hillary Clinton. Outra pesquisa, de março, mostrou que 91% dos norte-americanos consideram o conflito entre os dois partidos forte ou muito forte. O número supera a visão acerca dos conflitos entre ricos e pobres (59%) e entre negros e brancos (53%).

Apontar a origem da polarização não é fácil e envolve alguma simplificação da realidade. Feita essa ressalva, Diego Coelho, professor e consultor da FIA (Fundação Instituto de Administração), diz que podemos apontar para junho de 2013 como um ponto de inflexão. Foi quando milhões de pessoas invadiram as ruas para protestar contra o aumento na tarifa de ônibus. Rapidamente, a pauta dos manifestantes se expandiu e a hashtag #vemprarua se popularizou. "Ali a sociedade parou para pensar em política", diz o professor da FIA. "Pessoas que não se sentiam representadas resolveram protestar e criaram um caldeirão de demandas." Em pouco tempo, entramos e saímos de uma das mais severas recessões econômicas, vimos a presidente Dilma Rousseff sofrer impeachment e seu ex-presidente mais popular, Lula, ser preso. Faltava só o outro lado ganhar uma cara. E isso aconteceu com a ascensão de Jair Bolsonaro e sua vitória na eleição presidencial de 2018.

Para Fernando Schüler, cientista político do Insper, o surgimento das redes sociais e a perda de representatividade de instituições como os partidos políticos e entidades de classe tiveram papel decisivo para o aumento da radicalização e polarização do debate político. "Essas instituições filtravam o radicalismo, negociavam e formavam consensos. Sem elas, radicais entraram no debate, que se tornou imediatista e belicoso." Mas ele observa: as redes sociais são um ambiente perfeito para a amplificação do discurso radical — não a causa da polarização.

COMO FICOU AGORA: O filósofo Robert B. Talisse, da Universidade Vanderbilt, diz ao TAB que a polarização exacerbou a partir do momento em que deixamos que todos os aspectos da vida fossem afetados pela disputa política. Essa é a tese de seu livro "Overdoing Democracy" (Desgastando a Democracia, em tradução livre), lançado no final de 2019. "Polarizamos porque permitimos que ser 'liberal' ou 'conservador' se tornasse um estilo de vida e uma identidade, ao invés de pontos de vista políticos." E isso tem implicações péssimas. Hoje, qualquer pessoa pode ser vítima de ataques, ameaças e cyberbullying se disser algo que vai contra o que reza a cartilha dos mais radicais. O julgamento público é instantâneo, raivoso e passional. A lista de artistas, jornalistas e "influenciadores" que tiveram suas reputações destruídas só aumenta.

Quando a polarização atinge níveis elevados de intolerância, impede que um lado reconheça a legitimidade de existência do outro. O resultado? A impossibilidade de negociação e criação de consensos, fundamentais numa democracia. "Altos níveis de polarização indicam que não há pontos em comum e levam a um impasse político", diz Robert Talisse.

Nessa incapacidade de diálogo, todos saem perdendo. "A polarização hoje perde seu viés democrático", diz Diego Coelho, da FIA. "Enquanto alguém achar que está do 'lado certo da história', ao invés de tentar construir a história com todos, todos perdemos."

Os protestos após a morte do americano George Floyd, em maio, são um exemplo. Boa parte foi pacífica, mas houve quem apelasse para a violência. E foi o ex-presidente Barack Obama quem destacou os excessos. Em artigo, ele apontou para os riscos da "racionalização da violência", ou seja, a tentativa de justificar a utilização da violência, dependendo do objetivo. "Se queremos que nosso sistema de justiça criminal, e a sociedade americana em geral, funcione com base num código de ética mais elevado, então nós temos que modelar esse código."

O QUE VIRÁ: Os especialistas ouvidos por TAB são unânimes em dizer: não é possível ver, no horizonte, fim para essa animosidade. A pandemia tem levado as pessoas a se isolar em suas convicções. Respeitar a quarentena, que deveria ser um ato de cidadania, também se tornou um ato político. "Regiões em que o presidente teve mais votos têm níveis menores de isolamento", diz Coelho. Fernando Schüler tem esperança de que, uma hora, as pessoas se cansem de tanta briga. É o que ele chama de cansaço pelo excesso. "A retórica vai inflamar tanto e se tornar tão disseminada que acaba perdendo força." Assim desejamos.