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OPINIÃO

Opinião: Trocar narrativas sem julgamento reduz polarização e extremismo

O refugiado sírio Abdo Jarour conta sua história de vida para crianças em escola pública de São Paulo - Karime Xavier/Folhapress
O refugiado sírio Abdo Jarour conta sua história de vida para crianças em escola pública de São Paulo Imagem: Karime Xavier/Folhapress

Ricardo Abramovay*

Do TAB

27/02/2020 04h01

A psicologia pode ajudar no enfrentamento de ideias simplistas, caricaturais e que apesar de todas as evidências de sua falsidade, aparecem como verdadeiras aos que nelas acreditam e que as difundem? O tema é fundamental, porque o extremismo e a polarização que, de forma crescente marcam o mundo contemporâneo, mostram-se incrivelmente resistentes à contestação racional fundamentada em fatos.

Grupos de ativistas e psicólogos norte-americanos estão tentando enfrentar o problema apelando a técnicas que fortaleçam o diálogo e a confiança entre pessoas cujas visões de mundo são opostas. Não tanto no interior dos consultórios (embora o estresse trazido pelas ameaças vindas do extremismo seja um fator crescente de preocupação dos terapeutas), mas na rua e no contato direto com as pessoas.

O esforço tende a despertar estranheza e a ele certamente será apontado o dedo com a acusação de ingenuidade ou, pior, de conivência com o inimigo. Afinal, com toda a informação pública, apoiada em estudos científicos e em reflexões éticas vindas de personalidades respeitáveis, como é possível que alguém ainda compactue com atitudes homofóbicas ou que apoie leis que ferem direitos de pessoas LGBTQ+?

Dá para conversar com quem imagina, mesmo em lugares onde praticamente não há imigração, que refugiados de países em guerra ou em crise ameaçam sua segurança e seus empregos? Ou com quem duvida da existência de uma crise climática, mesmo depois de eventos extremos e com todas as evidências sobre o derretimento do Ártico e sobre a quebra incessante de recordes de temperatura ao redor do mundo nos últimos 30 anos?

O título do estudo de Joshua Kalla e David Brookman ("Reduzindo atitudes excludentes por meio de conversas interpessoais: evidências de três experimentos de campo") mostra um caminho novo para responder a essas perguntas. Os dois cientistas políticos orientaram e acompanharam, em sete localidades dos Estados Unidos, o trabalho de ativistas ligados a direitos de populações LGBTQ+ e aos direitos de imigrantes. Os ativistas conversaram com 6.869 eleitores, no momento em que eram convocados a manifestar seu voto em torno de leis referentes aos direitos desses dois grupos (LGBTQ+ e imigrantes).

É importante ressaltar que os ativistas envolvidos no experimento não eram psicólogos, atores, professores ou alguém com especial capacidade persuasiva, e sim pessoas que contavam apenas com o treinamento na técnica aplicada chamada de "troca não julgadora de narrativas", cuja essência se resume a dois pontos: escuta ativa e compartilhamento de narrativas.

O ponto de partida do trabalho é trivial: ninguém gosta de reconhecer que está errado. E muitas vezes a forma de criticar o ponto de vista dos outros pode levar ao fortalecimento das crenças que se quer abalar. Hilary Clinton, por exemplo, tratou os apoiadores de Donald Trump como um "bando de deploráveis" e isso acabou se voltando contra ela. Ausência de diálogo, de conexão interpessoal e de compartilhamento de experiências amplia as chances de que fatos absurdos e inverossímeis sejam interiorizados como verdadeiros. Isso levanta uma questão fundamental para a discussão democrática: o que pode ser o diálogo entre pessoas com horizontes tão diferentes?

A resposta dos estudos psicológicos voltados ao tema é que narrativas são percebidas como menos manipuladoras que argumentos diretos, factuais, objetivos, e são menos propensas a suscitar imediata contra-argumentação e ameaça ao sentido de autonomia dos indivíduos. É mais fácil argumentar contra um raciocínio que contra uma história. É por isso que a técnica aplicada consiste em estabelecer uma conversa em que há um compartilhamento de experiências. Como? Não cabe aqui entrar nos detalhes técnicos sobre a seleção dos entrevistados e sua representatividade estatística, o que pode ser encontrado no próprio estudo.

O importante é que há uma conversa frente a frente que dura uns dez minutos e onde o entrevistador, em algum momento, pede que o entrevistado lhe diga se houve algum momento em sua vida em que se sentiu discriminado. É só então que ele lhe fala da discriminação que os imigrantes ou os indivíduos transgêneros sentem. A empatia que daí emerge é mais efetiva que o esforço de persuasão por meio de argumentos racionais e baseados em informações precisas. Ou seja, junta-se uma narrativa de persuasão baseada em histórias vividas a uma sincera escuta ativa. Os entrevistadores deixam claro que querem entender o ponto de vista de quem estão escutando e não julgar suas opiniões.

Os líderes Emmanuel Macron (França), Donald Trump (EUA) e Angela Merkel (Alemanha) conversam durante encontro do G-20 - John MacDougall/AFP - John MacDougall/AFP
Os líderes Emmanuel Macron (França), Donald Trump (EUA) e Angela Merkel (Alemanha) conversam durante encontro do G-20
Imagem: John MacDougall/AFP

A principal base teórica do trabalho vem da psicologia evolucionista: os indivíduos costumam resistir a argumentos que possam representar ameaça a sua própria autoimagem. E aqui é importante lembrar que a autoimagem provém da necessidade que nasce em nosso próprio cérebro de nos identificarmos a valores, comportamentos, atitudes e ideias dos grupos a que pertencemos. A explicação evolutiva desta defesa da autoimagem é que têm mais chance de sobrevivência aqueles que aderem às normas do grupo do que os que buscam permanentemente a originalidade e que, por aí, correm o risco de não obter solidariedade quando necessário. Além disso, ser convencido de um ponto de vista contrário àquilo em que se acreditava até então pode ferir o sentido de autonomia da pessoa.

É claro que a difusão de um fato mentiroso pode ser expressão de má-fé e desonestidade, sobretudo quando são autoridades políticas bem informadas que exercem esse triste papel. Mas é com base numa narrativa, num poder de interpretação, que estas mentiras vão-se encaixando na própria maneira de as pessoas se ligarem ao grupo social com o qual elas compartilham sua visão de mundo. E é daí que vem a importância não apenas de difundir informações, fatos e argumentos, mas sobretudo de entender as narrativas que fundamentam crenças absurdas e contrapor-lhes outras narrativas que revelem visões de mundo alternativas.

O trabalho de Kalla e Brookman mostra que houve uma proporção considerável de indivíduos que mudaram seu voto após a escuta não julgadora dos ativistas. Não é uma fórmula mágica, claro. Mas é interessante o surgimento, nos Estados Unidos, de diversas iniciativas nessa direção. Essential partners, por exemplo, propõe-se a "construir uma comunidade fortalecida pelas diferenças e conectadas pela confiança". Better Angels é uma organização de "cidadãos para unir os americanos azuis e vermelhos numa aliança para despolarizar a América". Make America Dinner Again, We Repair e os Círculos Benjamin Franklin são outros exemplos daquilo que parece constituir o embrião de um movimento social.

Em outubro de 2019, o jornal The New York Times acompanhou o experimento levado adiante por James Fishkin e Larry Diamond (cientistas políticos da Universidade de Stanford), que reuniram uma amostra aleatória e representativa dos norte-americanos inscritos em listas eleitorais. Eram 526 pessoas que não se conheciam até então e que passaram um fim de semana conversando sobre temas polêmicos da atualidade norte-americana. Alguns mudaram de opinião, outros não. O resultado, porém, é que todos se tornaram mais informados e até mais empáticos.

No Brasil, um esforço nessa direção está sendo liderado por Rafael Poço, advogado e ativista que criou o promissor projeto Despolarize e que promove "diálogos impensáveis", em torno de temas tão polêmicos como os enfrentados pelos ativistas estudados por Kalla e Brookman.

* Professor Sênior do Instituto e Energia da USP e autor de "Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza" (Ed. Elefante/Outras Palavras). Twitter: @abramovay

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL