Topo

Em meio à pandemia, especialistas resgatam o acervo incendiado da UFMG

Incêndio atingiu a reserva técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, destruindo milhares de itens arqueológicos  - Rogerio Pateo NAV/UFMG
Incêndio atingiu a reserva técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG, destruindo milhares de itens arqueológicos
Imagem: Rogerio Pateo NAV/UFMG

Marie Declercq

Do TAB

21/08/2020 04h01

Apesar de não ter causado grande repercussão, o incêndio na reserva técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) representa uma perda considerável em itens arqueológicos e paleontólogos. A tragédia em 15 de junho, quase dois anos após o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Desde então, um grupo formado por arqueólogos, paleontólogos e outros especialistas trabalha para resgatar o que sobrou dos escombros do prédio que abrigava o acervo. Boa parte dos itens contava a história de povos indígenas e da fauna e da flora da América Latina.

À época, Antonio Gilberto Costa, ex-diretor do museu, disse em entrevista ao jornal Estado de Minas que a tragédia representa um sucateamento da instituição, e que não foi por falta de aviso. A estrutura que abrigava o acervo era precária.

Correndo contra o tempo, o grupo segue "escavando", agora sob cinzas, para recuperar itens abrigados na Reserva Técnica I. "Tudo que era mais delicado estava nesse espaço", conta Mariana Cabral, professora do departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG. Ainda não é possível mensurar quanto o grupo conseguiu resgatar, mas já se sabe que coleções inteiras foram devoradas pelo incêndio. "A verdade é que estamos fazendo outra coleção. O que conseguimos resgatar não é mais a mesma coisa do que antes."

Resgate imediato

Um dia após o incêndio, a arqueóloga conta que o grupo foi até o local para analisar o que deveria ser feito para a recuperação. Em um espaço relativamente pequeno do acervo, foram queimados itens importantes — desde esqueletos, produção etnográfica sobre povos indígenas, cerâmicas provenientes da região do Vale do Jequitinhonha (MG), além das coleções de insetos e um vasto acervo de materiais arqueológicos.

acervo_ufmg - Rogerio Pateo NAV/UFMG - Rogerio Pateo NAV/UFMG
Um dos itens destruídos no incêndio da reserva técnica do Museu de História Natural e Jardim Botânico da UFMG
Imagem: Rogerio Pateo NAV/UFMG

"A gente teve de início o apoio do Centro de Conservação e Restauro da UFMG, conjuntamente com a equipe de museologia. Assim, começamos a nos organizar. Tínhamos uma série de restrições por conta do trabalho de investigação da Polícia Federal, que nos liberou o espaço depois de coletar tudo que necessitava para análise", conta Cabral.

Utilizando o conhecimento de escavações arqueológicas, o grupo aplicou as mesmas técnicas para recuperação de itens. "É o pior trabalho da nossa vida. Não existe treino para escavar uma coleção queimada. Tivemos que aprender a reconhecer coleções em diversos estágios de estrago. (..) É um grande aprendizado, porque tivemos que aprender a separar o que é um reboco e o que é um osso humano."

Por causa da pandemia, o grupo tenta trabalhar da melhor forma para manter o distanciamento social, mas já teve que interromper os trabalhos porque membros testaram positivo para Covid-19. "O tempo é nosso inimigo nessa história. A gente estava de quarentena antes, eu saía de casa a cada 15 dias, em seguida veio isso e acabou com a quarentena", conta a arqueóloga.

No curso das escavações, há ainda espaço para descobertas sobre a resistência de materiais. "Eu me impressiono cada vez que encontramos uma coisa delicada. Encontramos cordinhas feitas por populações indígenas há mais de 1.000 anos que resistiram bravamente a um incêndio, e depois a um alagamento", conta. "Um dos membros do grupo encontrou, certo dia, dentro do ar condicionado, o pedaço de uma mandíbula humana. São coisas pequenas que nos emocionam por resistir."

Traumas recentes

Uma das primeiras coisas que Cabral fez, antes de começar os trabalhos na UFMG, foi entrar em contato com o Núcleo de Recuperação de Restauro do Museu Nacional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) para pedir dicas e direcionamento. "A gente é o passado deles, é o que eles viveram dois anos atrás", conta.

O Núcleo de Resgate de Acervo do Museu Nacional está em atividade desde 2018, quando o incêndio tomou o Palácio Quinta da Boa Vista, que abrigava mais de 20 milhões de itens históricos — incluindo a maior coleção egípcia da América Latina, além de fósseis e múmias. O desafio de paleontólogos e arqueólogos não é só se arriscar entre os escombros, mas conseguir resgatar itens que passaram pela destruição do fogo, fuligem e a água.

Incêndio no Museu Nacional do Rio - Reuters via BBC - Reuters via BBC
Acervo do Museu Nacional foi praticamente todo consumido pelo fogo em 2 de setembro de 2018
Imagem: Reuters via BBC

"O palácio do Museu Nacional tinha seis andares e o incêndio atingiu o prédio todo", conta Luciana Carvalho, paleontóloga do Museu Nacional e vice-coordenadora do núcleo. "Até as áreas que não foram tomadas pelo fogo foram afetadas pela fuligem. Além do fogo, caíram telhados e os andares, e teve ainda a água dos bombeiros e da chuva." Segundo Carvalho, parte do trabalho realizado pelo núcleo foi feito debaixo de chuva. "Só tivemos um telhado provisório em março de 2019", conta.

Quando o trabalho de resgate estava quase chegando ao fim, conta Luciana, a pandemia do novo coronavírus interrompeu as atividades. "Estávamos a ponto de terminar, mas interrompemos. Em breve, entraremos na fase do inventário para saber em quais condições o material saiu", diz a paleontóloga.

O acervo de esqueletos arqueológicos da UFMG era o segundo maior do país (atrás apenas do Museu Nacional) e também foi devorado pelas chamas do dia 15 de junho. "É um impacto não só para nós, mas também ao pensarmos na história de ocupação das Américas. Tínhamos esqueletos de 8 mil anos ali. A perda disso é bastante grave. A maior parte já tinha sido bastante estudada, mas ainda assim as coleções científicas nos permitiam voltar a elas. A gente perde com isso, e perdemos na capacidade de ensino e formação de pessoas", diz Cabral.

Especialistas em tragédias

O trabalho de resgate do Museu Nacional e do acervo da UFMG abre espaço para um campo de conhecimento importante e triste ao mesmo tempo: o de tragédias em museus. "A primeira coisa que disse quando Mariana [Cabral, arqueóloga da UFMG] entrou em contato comigo é que ela podia contar com a gente, porque sentimos muita falta de conhecimento sobre esses casos. Tem uma série de cuidados que você precisa tomar para não perder ainda mais. Ficamos meio perdidos no começo, porque buscamos referências em bibliografias e não encontramos nada nos relatos sobre o que fazer nesses casos. Por isso, queremos publicar nossa experiência para ajudar outras pessoas futuramente", conta Carvalho.

Recentemente, o Museu Nacional e a Alerj (Assembleia Legislativo do Rio de Janeiro) assinaram um termo de doação de R$ 20 milhões para as obras de restauração do palácio. Segundo Alexandre Kellner, diretor do Museu Nacional, a expectativa é que o museu abra parcialmente em 2022.

Mesmo com o aprendizado, não é o que as especialistas gostariam de estar fazendo. "Quem assumiu [a coleta do material] no Museu Nacional foram paleontólogos e arqueólogos, porque esse resgate se assemelha muito ao nosso trabalho de campo, mas não é o trabalho que você quer fazer. É surreal", conta Carvalho.

"Adoro escavar sítios arqueológicos e tentar pensar em como era a vida das pessoas ali. No entanto, nosso trabalho agora é horrível porque envolve resgatar pedacinho de coisas. Meu interesse não é saber a história do incêndio, e sim salvar o que conseguir", lamenta Cabral. "É horrível, porque perdemos conexões que podiam ser criadas, histórias que podiam ser contadas. Nós perdemos, de certa forma, a humanidade."

A Polícia Federal concluiu, em julho, que o incêndio do Museu Nacional começou em um ar-condicionado do Auditório Roquette Pinto e se espalhou rapidamente pelo palácio. No caso da UFMG, a PF ainda investiga as causas do incêndio. Por e-mail, a assessoria da PF de Minas Gerais disse ao TAB que não comenta inquéritos em curso.