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'Aqui a pandemia não chega': como foi o concurso de drag na Praia Grande

A drag queen Sthefany Laffront recebe o título de Miss Praia Grande Gay America 2020, realizado na Associação Corrente do Bem Praia Grande - Ricardo Matsukawa
A drag queen Sthefany Laffront recebe o título de Miss Praia Grande Gay America 2020, realizado na Associação Corrente do Bem Praia Grande
Imagem: Ricardo Matsukawa

Marie Declercq

Do TAB

25/11/2020 04h00

A cena é uma justaposição gloriosa do glamour da alta costura e festa de bairro. A drag queen Sthefany Laffront abre um sorriso largo para receber uma enorme coroa de strass que orna perfeitamente com seu vestido sereia verde-esmeralda. Ao seu lado, diplomáticas, outras transformistas aplaudem a vitória, vestidas de pedrarias e glitter. A premiação acontece em uma quadra de futsal. O chão desgastado foi coberto por um tapete vermelho, colado com fita adesiva para receber as oito concorrentes do Miss Praia Grande Gay América 2020.

Esta é a primeira edição do concurso na Praia Grande, cidade litorânea que compõe a Baixada Santista em São Paulo — e minha porta de entrada para um pequeno (mas, paradoxalmente, enorme) universo de concursos de beleza de transformistas batalhando pelo seu lugar de prestígio na noite e na cultura pop da região.

Naquele sábado (21), ao ver Sthefany recebendo a faixa e a coroa, como uma Rita Hayworth perdida em um centro comunitário no Boqueirão, me recordei das conversas que tivemos no WhatsApp duas semanas antes do concurso, em que tratávamos do encontro da reportagem com ela para acompanhar sua preparação. Na ocasião, achei que tivesse escolhido a transformista mais azarada do concurso. Os prêmios de Sthefany são a prova de que não entendo nada de concurso de beleza. Ainda bem.

Na quadra da Associação Corrente do Bem Praia Grande, Sthefany Laffront ganhou o título de Miss Praia Grande Gay América 2020 - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Na quadra da Associação Corrente do Bem Praia Grande, Sthefany Laffront ganhou o título de Miss Praia Grande Gay América 2020
Imagem: Ricardo Matsukawa

Sthefany Laffront é uma criação de Vinícius Abreu dos Santos, maquiador de 21 anos nascido em Santos (SP) que começou se montar de drag aos 16, após ser apresentado por Yessica Laffront, drag queen famosa da região, ao universo transformista. Ele já participou de seis concursos, levando a coroa em três deles — Drag Ibiza 2018, Rainha Gay de São Vicente 2020 e, agora, o Miss Praia Grande Gay América 2020.

Quem vê coroa, não vê corre

"Procuro não pensar no que está acontecendo para não me estressar." Vinícius repetiu essa frase algumas vezes ao longo da semana, quando narrou problemas com seu vestido ("não coloca nada na matéria, só diz que enfrentei um contratempo?") e com a mudança repentina de horário de início do concurso, que coincidiria com a saída do seu expediente em Santos. "Dar migué" no trabalho? Nem pensar, ele está no período de experiência.

Quando faltavam 30 minutos para o começo da competição, Vinícius chegou em casa na companhia de Magenta — drag queen que no dia estava desmontada e discretamente maquiada, de quepe preto, meio policial. Junto com Magenta, estava outra drag queen com bota de camurça marrom até metade da coxa, peruca loira e uma máscara que deixava visível parte do rosto maquiado. A loira mascarada era ninguém menos que a Miss Guarujá Gay 2019, Giovanna Medeiros.

A sorte de Vinícius é que justamente nesse dia ele pode se arrumar em casa. Avó e bisavó estão em São Paulo. Normalmente, as montações rolam na casa de amigos. "Elas [a avó e bisavó] e minha mãe sabem que sou drag. Já viram fotos minhas montado, mas fingem que isso não existe", conta o maquiador, enquanto recebe quantidades cavalares de base de alta cobertura no rosto.

Enquanto Vinícius (sentado) se transforma em Sthefany Laffront com a ajuda de Magenta (de pé), a Miss Guarujá 2019 Giovanna Medeiros se arruma para o concurso. "Eu vou só prestigiar", diz - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Enquanto Vinícius (sentado) se transforma em Sthefany Laffront com a ajuda de Magenta (de pé), a Miss Guarujá 2019 Giovanna Medeiros se arruma para o concurso. "Eu vou só prestigiar", diz
Imagem: Ricardo Matsukawa

"Você espera de tudo nesses concursos, porque sempre tem uma drag queen de palco que resolve se arriscar a participar, mas a estética feminina é que será valorizada", explica Magenta. "É um concurso de primeiras impressões."

Concursos de beleza são parte da cultura drag queen há pelo menos quatro décadas. O primeiro foi fundado nos anos 1970, nos EUA, copiando o formato do Miss América convencional — e, assim, a tradição se espalhou pelo mundo. Hoje, são milhares de concursos, oficiais ou não, que animam os circuitos de casas noturnas e eventos em diversas cidades do Brasil.

Giovanna Medeiros, Miss Guarujá 2019, se prepara para sua aparição no concurso. "Eu sou muito preguiçosa", disse ao ser perguntada se pretende competir em outros concursos  - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Giovanna Medeiros, Miss Guarujá 2019, se prepara para sua aparição no concurso. "Eu sou muito preguiçosa", disse ao ser perguntada se pretende competir em outros concursos
Imagem: Ricardo Matsukawa

Mesmo com a abundância de concursos, participar de um não é nada lucrativo. Muitas vezes, o cachê (quando há) da vencedora mal cobre os gastos de vestido, maquiagem e cabelo. O que está em jogo é o prestígio na noite e as portas abertas para participar de eventos, festas e performances. O próprio Miss Praia Grande Gay América garante apenas a classificação da ganhadora para o Miss São Paulo Gay América. A maquiagem estava sendo feita na amizade por Magenta — que idealizou o visual de Giovanna no concurso Miss Guarujá Gay. "Se a Sthefany perder, a gente assalta um banco", avisa, esfumando o contorno no rosto anguloso de Vinícius.

Não é fácil competir na região. "Tem muita drag na Baixada", conta Giovanna. E dá briga? Todas as drag acenaram positivamente. "Olha, não chega a dar morte, mas dá porrada", conta Vinícius, agora transformada em Sthefany, com peruca de cabelos pretos ondulados, body preto e short jeans. "Tem muita gente que fala de 'máfia', que os concursos são roubados, que o organizador favorece a amiga. Eu já vi, mas não aceito isso, não."

Geopolítica dos concursos

Na Associação Corrente do Bem Praia Grande, local escolhido para o concurso, eu, Matsukawa e alguns gatos pingados usávamos máscara. O camarim se resumia a duas tendas montadas abaixo das traves de futsal. Sthefany estava atrasada, mas parecia relativamente adiantada em comparação a outras competidoras que ainda batalhavam para colocar enchimentos nas meias-calças para emular formas femininas ou para embrulhar os corpos com fita adesiva e, assim, disfarçar a barriguinha.

O concurso atrasou elegantemente, coisa de uma hora. Do outro lado da quadra, familiares e amigos esperavam sentados em cadeiras de plástico, ouvindo uma seleção de músicas pop que estouravam a caixa de som. Dentro do camarim, o suor se acumulava no canto do rosto de todos os presentes, confinados no pequeno espaço. Nas faces maquiadas das competidoras, as gotas escorriam como se estivessem sobre uma superfície impermeabilizada. Vez ou outra, pegava alguém cantarolando Rihanna ou outra música do gênero, olhando fixamente para um canto. Até em um camarim cheio de drag queens, o tédio vem.

"Você acredita que o secretário de Cultura tentou impedir o evento um dia antes?", conta Andy Lins, coordenador do Miss América na Baixada Santista, indignado, antes de nos cumprimentar. De roupa preta, barba e cabelo cortado na régua, Lins agradeceu pela presença enquanto organizava os papéis com o alvará de funcionamento, em meio ao caos do camarim. "O secretário queria cancelar por causa da Covid-19, mas a gente organizou tudo para não ter aglomeração."

Andy Lins (de costas), coordenador do concurso, organiza a entrada das competidoras - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Andy Lins (de costas), coordenador do concurso, organiza a entrada das competidoras
Imagem: Ricardo Matsukawa

Justiça seja feita: o evento poderia estar mais cheio, coisa de 100 pessoas, um pouco mais. Só que parou aí. Mal notei pessoas de máscara — as que enxerguei estavam sobre as mesas de plástico. O concurso (e a cidade) é um pequeno vórtex onde distanciamento social e Covid-19 são palavras que, em algum momento de 2020, fizeram mais sentido.

Naquele momento, lembrei de Magenta, olhando para mim com um pincel de maquiagem na mão: "Pandemia não chega na periferia".

O que estava em jogo nesse micro universo transcendia. Fora as competidoras, muita gente ali depende do circuito da noite LGBTQI+ da Baixada Santista para ganhar dinheiro. Assim como artistas de todo o mundo, as drags da Baixada, até então, estavam paradas em casa quebrando a cabeça para ganhar dinheiro nos últimos meses.

Dois dias depois depois do concurso, Lins me explicou a geopolítica envolvida nos concursos de beleza gay da região. Existem os que são reconhecidos, patrocinados e organizados pelas prefeituras e os que são organizados por personalidades e/ou donos de casas noturnas LGBTQI+. O último concurso reconhecido na Baixada Santista foi o Miss Santos Gay 2011. "Não se fala disso, mas é nítido o preconceito. Sempre aquele que fala que a prefeitura está 'apoiando evento de viado', porque é uma estrutura de homens héteros", conta Lins.

Para a primeira edição na Praia Grande, Lins disse que fez tudo sem qualquer apoio. "É por isso que ficou meio nas coxas", explicou o coordenador. A esperança é que o evento faça parte do calendário oficial da cidade no próximo ano.

Todas são vencedoras

Com inspiração na diplomacia pela qual uma verdadeira miss deve prezar, é meu dever citar o nome de cada competidora do Miss Praia Grande Gay América 2020. Foram elas: Arielen Louzada, Samantha Dior, Cellyne La Rue, Melissa Villar, Mirella Valdéz, Lilith Kardashian e Ika Starz, drag queen de 21 anos de Tapiraí, cidade de 7 mil habitantes perto de Sorocaba (SP).

Esse foi o primeiro concurso de beleza gay que Ika Starz participou. A esperança era levar um título para sua cidade Tapiraí com um pouco mais de 7 mil habitantes - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Esse foi o primeiro concurso de beleza gay que Ika Starz participou. A esperança era levar um título para sua cidade, Tapiraí (SP), de 7 mil habitantes
Imagem: Ricardo Matsukawa

"Meu sonho é trazer um título para minha cidade", conta Ika — a única que estava se arrumando sozinha no camarim. Mas só no camarim. Na plateia, a família inteira aguardava a competição, munida de cartazes e faixas. Sua mãe, Celia Fernandes, conta que correu atrás de patrocínio para alugar um micro ônibus que pudesse transportar toda a família. Foram quatro horas de viagem. Com a voz abafada pela máscara e o som alto, consigo ouvir de Fernandes uma única frase clara: "Tô muito orgulhosa de estar aqui".

A competição começou com a apresentação de Hanna Deggy, a Miss Glamour Gay Plus Size 2018, dublando perfeitamente a música "I Will Always Love You", versão de Whitney Houston de uma canção de outra musa, Dolly Parton.

Hanna Deggy, a Miss Brasil Glamour Gay Plus Size de 2016, abriu os trabalhos do concurso com a faixa "I Will Always Love You" - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Imagem: Ricardo Matsukawa

Um dos jurados aproveitou para comentar: "Ela dubla bem, né? Sabia que ele foi eleito Rei Momo da cidade esse ano?", emenda, com o rosto bem perto de mim, deixando escapar perdigotos. Confiando no respirador que apertava meu rosto nas últimas horas, me aproximo mais.

De terno roxo, sobrancelha desenhada e segurando uma máscara com a bandeira de arco-íris, a informação veio de Regis Cardoso, figura conhecida da comunidade LGBTQI+ da Baixada Santista, um dos nove jurados do concurso — que tinha desde advogados e donos de salão de beleza a ex-misses.

Regis Cardoso, um dos nove jurados do concurso Miss Praia Grande Gay América, garante imparcialidade. "Não voto em amiga" - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Regis Cardoso, um dos nove jurados do concurso Miss Praia Grande Gay América, garante imparcialidade. "Não voto em amiga"
Imagem: Ricardo Matsukawa

Garantindo sua idoneidade como jurado, Cardoso afirma que é um chato. "Vou julgar o que deve ser julgado: postura, elegância, beleza e simpatia. Não voto em amiga, eu voto em quem merece."

Após o desfile e a apresentação, as competidoras correram para colocar o traje de gala. Para a plateia, sorriam de forma suave. No camarim, era estresse e zoeira. No meio da confusão, Sthefany me apresentou a um amigo, responsável pela arrumação de uma das drags do concurso. "Ele é uma das drags mais antigas da Baixada, fala com ele", aponta. Antes que de conseguir perguntar o nome, o amigo de Sthefany fugiu de mim. "Bicha, eu sou gaga, não me entrevista não!"

Dias de luta, dias de glória

Sthefany passa as horas seguidas indo e vindo do camarim, ou sentada em silêncio. Com o salto alto, seu 1,78 m virou quase 1,90m. Nesse vai e volta, esbarro com Magenta, que estava suando baldes de ansiedade. Comentei como Sthefany parecia calma. "Ela tá se fazendo de louca, isso, sim", disse, antes de adentrar na névoa de laquê no camarim.

Foi na hora em que a Miss São Paulo Gay distribuiu rosas para as cinco finalistas do concurso que o drama pairou. A eliminação de Cellyne La Rue, uma das favoritas, causou indignação. Portando copos com vodca e energético, a torcida de Cellyne gritava com os apresentadores sobre uma suposta injustiça de haver participantes que não são da Baixada ainda no páreo para o Miss Praia Grande Gay América. No caso, Ika Starz.

Seleção das cinco finalistas do Miss Praia Grande Gay América 2020 causou polêmica entre alguns presentes na plateia. "Tem que ganhar quem é da Baixada", gritaram em coro - Ricardo Matsukawa - Ricardo Matsukawa
Seleção das cinco finalistas do Miss Praia Grande Gay América 2020 causou polêmica entre alguns presentes na plateia. "Tem que ganhar quem é da Baixada", gritaram em coro
Imagem: Ricardo Matsukawa

A confusão ofusca a etapa da entrevista das cinco candidatas, quando oratória e jogo de cintura foram avaliados. A cada resposta, a torcida de Cellyne voltava a reclamar da eliminação. Tila Rios, travesti famosa da Baixada, caminhou até o microfone e esclareceu: "Gente, o concurso que só permitia transformistas da Baixada era o Miss São Vicente. O Miss Praia Grande Gay América foi aberto para todo mundo." Os ânimos voltaram a se acalmar.

A vitória de Sthefany agradou a gregos e troianos. Em segundo lugar ficou Samantha Dior, drag queen de palco há mais de 12 anos que resolveu participar de um concurso de beleza pela primeira vez. Nada mal para uma estreia. Já terceiro, Mirella Valdéz, recebendo o título de Miss Simpatia.

Lembrando da pequena via crúcis de Sthefany até a coroa, a vitória pareceu ainda mais bonita e justa naquela pequena quadra desgastada de futsal. Depois de tirar foto com todo mundo, perguntei onde seria a comemoração. Segurando um buquê de flores em um braço e ajeitando a coroa no outro, ela riu da pergunta: "Comemoração? Eu vou trabalhar amanhã".