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'Nunca senti preconceito na moda', diz Veluma, ex-top model negra

Participação especial no desfile de comemoração dos 40 anos da grife Yes, Brazil - Agência Fotosite
Participação especial no desfile de comemoração dos 40 anos da grife Yes, Brazil Imagem: Agência Fotosite

Paulo Sampaio

Do TAB

01/01/2021 15h24

Na experiência da ex-top model Veluma, 67, nunca houve preconceito de raça na moda: "Eu não embarco nessa. Sou uma preta que gosta de ser preta, então não existe dentro de mim uma predisposição para esses ataques que eu vejo hoje. Não curto essa história."

Gostar dela mesma, no auge do sucesso, não demandava muito esforço. Magra, com 1,81 m de altura ("1,85 m, com salto"), sorriso luminoso e pinta estratégica no queixo, Veluma foi festejadíssima nas passarelas nos anos 1970 e 1980. Contemporânea de Silvia Pfeifer, Betty Lago, Isis de Oliveira e Dalma Calado, ela mais tarde também dividiu camarim com Luiza Brunet, Xuxa e Monique Evans.

Nascida Vera Lúcia Maria, em 1953 ("eu prefiro dizer a data do que a idade, quem quiser que faça a conta"), ela explica que Veluma é um acrônimo de seu nome de batismo. "Eu mesma inventei. E ainda queria que fosse lido de trás pra frente, Amulev, para ficar mais diferente." O pai dela bebia, a mãe, apanhava, e então, logo depois do nascimento de Verinha, Ana Nunes abandonou o marido no interior de São Paulo e migrou com a filha para a capital.

Com Luiza Brunet e Xuxa - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Com Luiza Brunet e Xuxa
Imagem: Arquivo Pessoal

Chocolate belga

Enquanto conversa com TAB, Veluma mostra fotos que trouxe para a entrevista, tiradas na passarela, em editoriais de moda ou peças publicitárias. Aponta para uma publicada na "Vogue", nos anos 1980, e diz: "Olha isso, produção da Regina Guerreiro", referindo-se à jornalista de moda que, à época, era diretora de redação da revista.

Regina: "Veluma era uma figura apoteótica. Tinha 'allure', andava flutuando, era muito/muito bonita, instintiva, sensitiva. Em um desfile que eu produzi para a Alpargatas, houve uma sequência com 'clima fazenda' em que ela entrou na passarela segurando um pato (ou era um cisne?), nas alturas, e o tal pássaro abriu as asas. Foi divino! Definitivamente, ela marcou o mundo da moda nos anos 70/80. Naquele tempo, os negros, infelizmente, pouco apareciam na passarela, mas ela reinava absoluta, acima dos preconceitos. Pele linda, chocolate belga, cacau puro. Ninguém resistia!"

Produzida por Regina Guerreiro para um editorial na "Vogue" - Arquivo Pessoal/Reprodução - Arquivo Pessoal/Reprodução
Produzida por Regina Guerreiro para um editorial na "Vogue"
Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução

Vogue, Elle, Desfile, Figurino, Claudia Moda, Veluma estava em todas as publicações de moda e também nas de celebridades — Manchete, Fatos e Fotos, Gente. O acervo de imagens que ela mostra foi acondicionado caprichosamente por sua mãe em uma pasta com folhas de plástico. "Eu não guardava nada, vivia o momento", diz.

Ana Nunes era uma cozinheira de forno e fogão, disputada a tapa pela alta sociedade paulistana nos anos 1960. Entre outras casas, trabalhou na do lendário playboy italiano criado em São Paulo Francisco Matarazzo "Baby" Pignatari. Ana Morreu em 2005, de complicações decorrentes da doença de Chagas.

"Eu cresci acostumada com o belo, comendo bem, em uma São Paulo quatrocentona. Estudei em colégio interno, de freiras, até os 16 anos. A sociedade gosta de ter uma filha pretinha do lado."

Cachê de negra

Resolvi abrir o texto com a negação do preconceito na moda, por três motivos. Primeiro, porque é algo inesperado, e até impactante, em um país sabidamente racista. Segundo, porque a luta contra a discriminação — não só racial — tornou-se uma bandeira globalizada, e isso inclui a moda: no Brasil, foi preciso instituírem cotas para garantir a presença de modelos negras na passarela. Terceiro, porque a própria Veluma volta várias vezes ao tema, nem sempre de maneira coerente.

Ao contar, por exemplo, que nunca lhe faltou trabalho, que o bipe tocava o dia inteiro e ela passava o tempo todo correndo para o orelhão ("na época, telefone era um luxo, custava uma fortuna, eu só tive um em 1984"), Veluma deixa escapar que aceitava todos os convites para desfiles e campanhas, apesar de muitas vezes receber um cachê menor.

Por que menor?

"Porque eu era negra."

Ela reconhece uma certa desconexão com o que havia dito antes, mas então explica que a discriminação nunca a atrapalhou. Simula um possível comentário racista, com um acento debochado: "Buá-buá, o Paulo falou que eu sou crioula kkkk... buá-buá. Não querem chamar a Veluma porque ela é escandalosa..."

"Não tinha problema nenhum, eu estava fazendo outros desfiles. Em alguns dias, chamavam para tantos trabalhos que eu não conseguia coordenar a agenda."

Verão: "Se eu sabia que não ia ter tempo para arrumar o cabelo, já chegava de cabeça raspada" - Reprodução/Arquivo Pessoal - Reprodução/Arquivo Pessoal
Verão: "Se eu sabia que não ia ter tempo para arrumar o cabelo, já chegava de cabeça raspada"
Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Black is beautiful

Não custa lembrar que o ambiente, ainda que de maneira estilizada, era favorável às minorias. Enquanto na Europa e nos EUA os jovens quebravam paradigmas de comportamento, promoviam revoluções de costumes e manifestações pela liberdade de expressão, no Brasil vivia-se o auge da ditadura militar. Apesar de radicalmente opostos, ambos os cenários serviam de inspiração aos estilistas. Era o momento de "enfrentar a repressão" e "romper barreiras pré-estabelecidas". O jornalista Mario Mendes, que nos anos 1990 foi redator-chefe da revista "Elle", recorda que nos 1970 os negros estavam literalmente na moda.

"Tinha o 'Black is Beautiful' [movimento norte americano pelos direitos civis, iniciado nos anos 1960], a Angela Davis virou ícone fashion, ia para o tribunal com aquelas minissaias incríveis, o cabelão afro. Na França, o (Yves) Saint Laurent abraçou essa négresse, fez coleções marroquinas, indianas, aliás as melhores dele, com modelos negras cheias de acessórios, turbantes, tecidos coloridos, era exotique, fazia o maior sucesso."

Grávida aos 16

Casada desde 1979 com um homem negro, Veluma reconhece que alimentava uma certa prevenção contra brancos. "Eles não gostam de negras", afirma ela, em mais uma declaração polêmica.

Além disso, segundo conta, sua mãe havia colocado em sua cabeça que "branco faz nenê" — em função da experiência da própria Veluma, que engravidou aos 16 anos: "Saí do internato sem saber nada da vida, deu no que deu". Em 1971, ela deixou o filho aos cuidados da mãe e se mudou para o Rio, cidade que desde sempre habitou seus sonhos de liberdade. Diz que não tem ideia do que pode ter acontecido ao pai do menino.

"Desembarquei aqui com 18 aninhos", lembra ela, que atualmente trabalha como hostess em um salão de cabeleireiro em Ipanema, na zona sul. Está ali desde 2002, para a felicidade de sua mãe, que finalmente pode comemorar o fato de a filha ter um emprego "com carteira assinada".

"Pra mim, o Rio sempre foi a cidade das mulheres livres. Eu adoro essa palavra, 'livre', é a ela que eu atribuo esse meu desprendimento de preconceitos."

Dezembro de 2020: na porta do salão de cabeleireiros Esmell, em Ipanema, onde ela trabalha há 18 anos - Paulo Sampaio/UOL - Paulo Sampaio/UOL
Dezembro de 2020: na porta do salão de cabeleireiros Esmell, em Ipanema, onde ela trabalha há 18 anos
Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Romance na Portela

Veluma conheceu Gilberto, o marido, em um dos ensaios que a escola de samba carioca Portela promovia todos os fins de semana no Mourisco, em Botafogo, zona sul do Rio. Ela sempre foi do samba, do Carnaval, da Sapucaí. Ao mesmo tempo em que reafirma a teoria de que branco é que faz filho, ela conta que Gilberto fez dois, com a ex-mulher.

"Um deles, para se afirmar como machão, tomou anabolizante demais e acabou tendo problemas de saúde. Morreu. O outro mora em Paris, e um dia disse ao pai que gostava de 'gente'. Foi a maneira que ele encontrou para falar que era homossexual. O pai diz que ele virou viado por causa da convivência comigo."

Um filho, muitos netos

O filho da própria Veluma não é branco, mas, pelo que ela conta, um exímio "fazedor de nenês" — já são cinco, com diferentes mulheres. Para alojar a prole, ele ocupou a casa em que Ana Nunes morava em São Paulo — e agora Veluma está com dificuldade de requerer a parte que lhe cabe da propriedade. "Ih, complicado", diz.

Com um sorriso mais cenográfico do que agregador, ela reconhece que não é de promover aproximações a esmo. Pergunto quem era sua amiga, entre as modelos, ela pensa (mas não muito) e responde: "Ninguém".

Recai na argumentação controversa: "Eu sou de caranguejo (signo de câncer). Caranguejo não tem amigos. Não gosto de tumulto, festa. Minha vida é de casa para o trabalho, do trabalho para casa."

Elke Maravilha, parceira em muitos trabalhos - Reprodução/Arquivo Pessoal - Reprodução/Arquivo Pessoal
Elke Maravilha, parceira em muitos trabalhos
Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Soixante-dix-huit

Não foi sempre assim. Na época do bipe-correria-orelhão, ela diz que viajou muito pelo Brasil, "de Vasp, Varig, Transbrasil", e pelo mundo. Em 1978, embarcou para Paris a convite do empresário Ricardo Amaral, dono do nightclub Hippopotamus, para trabalhar no show inaugural do Le 78.

Ela resume sua participação no show: "Eu vestia uma fantasia de luxo, com um chapéu enorme, e caminhava".

Diz que não foi bom. "Antes de embarcar, no aeroporto, a Monique (Evans), falou: 'Não estou gostando disso. Não vou'. A Marlene Silva também não foi, porque tinha contrato com a TV. Eu decidi: 'Ah, eu vou!' Em vinte dias, estava mortalmente arrependida. Eu me perguntava porque não segui a cabeça das colegas! Além de ter chegado no inverno, ele (Amaral) nos hospedou na rue Lepic (em Montmartre), que é um reduto de promiscuidade gay. Meus melhores amigos sempre foram os gays, eu tinha um séquito, eles me arrumavam, me produziam, faziam roupa para mim, mas na hora de dormir, na volta do show, eu queria paz, não aquela movimentação."

Capa e guarda-chuva - Reprodução/Arquivo Pessoal - Reprodução/Arquivo Pessoal
Capa e guarda-chuva
Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Calor do Senegal

A experiência durou seis meses. Veluma conta que ainda teve de fazer um trabalho extra para conseguir comprar a passagem de volta. Apesar da alegada celebração da negritude na França — e, como diz Mario Mendes, já desde Josephine Baker —, Veluma conta que não se envolveu com nenhum homem. Lembra apenas, sem muita empolgação, de um senegalês que se encantou por ela.

Faço uma pergunta que tornou-se uma praxe em entrevistas com mulheres — especialmente as muito desejadas ou, por força da profissão, fisicamente expostas.

Sofreu abuso sexual?

"Não. Os homens não se aproximavam de mim. Olha bem (faz um gesto amplo com os braços, para mostrar o próprio tamanho): é preciso ser muito homem para mexer comigo!"

Moda noiva - Reprodução/Arquivo Pessoal - Reprodução/Arquivo Pessoal
Moda noiva
Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Rainha Titânia

Fora da passarela, Veluma passeou também pelo teatro, o cinema e a TV. Até hoje, ela se surpreende quando conta a história do teste de elenco para a montagem do espetáculo "Floresta Amazônica em Sonhos de Uma Noite de Verão" (1992), do cineasta alemão Werner Herzog, com Antônio Grassi e Lucélia Santos nos papéis principais.

"Eu fui para ver se me escalavam para uma figuração qualquer e saí de lá com o papel de rainha Titânia. O próprio Herzog me escolheu, entre 150 candidatas. A Lucélia Santos ainda disse: 'Mas ela é modelo', e o Herzog: 'Não tem problema, ela aprende'."

A montagem foi um fracasso de público e crítica — não por causa da Titânia de Veluma, mas da concepção de W. Herzog.

Rainha Titânia, no espetáculo "Floresta Amazônica em Sonhos de Uma Noite de Verão", de Werner Herzog - Reprodução/Arquivo Pessoal - Reprodução/Arquivo Pessoal
Rainha Titânia, no espetáculo "Floresta Amazônica em Sonhos de Uma Noite de Verão", de Werner Herzog
Imagem: Reprodução/Arquivo Pessoal

Saudade não tem idade

Em setembro de 2019, depois de quase 20 anos perfazendo diariamente o circuito Jacarepaguá-Ipanema, indo de casa para o salão, Veluma desembarcou seu magnetismo no desfile de comemoração dos 40 anos da grife Yes, Brazil, no hotel Fairmont, em Copacabana.

Ela foi uma das divas convidadas para reviver a atmosfera da marca que bombou nos anos 1980. Montado ao redor da piscina, o show reuniu ainda Xuxa e Monique Evans, Evandro Mesquita e Gilberto Gil.

Embora não seja da geração que assistiu Veluma no auge, o estilista Thomaz Azulay, 34 anos, filho do criador da marca, Simão Azulay, fala dela com a admiração de quem ouviu muita conversa de adulto. A concepção do desfile é dele.

"A Veluma é um acontecimento! Nem precisa de passarela pra performar. Tivemos prazer em assisti-la no desfile, e mais do que isso, em poder proporcionar essa imagem para gente que não a via há um tempo e para os que não sabiam dela. As pessoas da minha idade não conhecem essa geração de modelos que, além de todas as questões de padrão de beleza, davam personalidade a uma roupa", diz.

Pré-anorexia

Thomaz enxerga em Veluma "a síntese de uma celebração". "Ela é brasileira, original, atemporal, tropical, resistente e leve como uma pluma."

A propósito dessa última consideração, a própria Veluma conta que havia algo a preocupava mais do que a eventual discriminação racial: a briga com a balança.

A filha de dona Ana Nunes aprendeu a cozinhar muito bem ("faço comida árabe divinamente") e gosta de comer na mesma proporção. "Hoje estou mais forte, mas naquela época eu não podia me dar a esse luxo."

A "pluma", no desfile da Yes, Brazil - Agência Fotosite - Agência Fotosite
A "pluma", no desfile da Yes, Brazil
Imagem: Agência Fotosite

Cito anorexia e bulimia, ela faz uma careta. "Ninguém falava disso!"

Em relação à "pluma", um adjetivo que sempre lhe foi atribuído e que rimava com "Veluma", ela conta que a tal leveza não era efeito da invenção de um estilo próprio de desfilar. "Acontece que eu calçava 42, e quase nunca tinha sapato do meu número. Eu entrava nos que estavam no camarim, e saía flutuando!"

Grande Veluma.