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Apesar de risco de reinfecção, babás que tiveram covid são mais valorizadas

. -  Obed Esquivel/ Unsplash
. Imagem: Obed Esquivel/ Unsplash

Paulo Sampaio

Do TAB

30/12/2020 04h00

Cláudia Ferreira da Silva, 53, conhecida como Cacau, é uma babá quase perfeita. Em 35 anos na profissão, ela calcula ter cuidado de mais de 200 crianças com idades entre 0 e 10 anos. Formada em pedagogia, ela fez curso de enfermagem e de doula (assiste a mãe na gestação, parto e pós-parto), tirou carteira de habilitação (CNH) e dirige o próprio carro.

Só faltou ter covid-19.

Para superar a falha, Cacau passou por uma experiência inédita. Chamada no começo de novembro para cuidar de um bebê de três meses e do irmão dele, de 2 anos, ela só assumiu o trabalho depois de passar sete dias isolada e se submeter a dois testes para coronavírus. O contrato de prestação de serviço compreende passar dois meses consecutivos na residência da família. Cacau só volta para a própria casa em meados de janeiro.

"Pela primeira vez, eu passo o meu aniversário, o Natal e o Ano Novo longe dos filhos e netos. Mas me sinto feliz porque, em um ano que foi difícil para todo mundo, eu ainda consigo fazer o que eu gosto, com toda a proteção."

Para o avô das crianças, o aposentado Arturo Lazarte, 69 anos, que contratou Cacau, "o mundo vive um momento delicado, de muito temor em relação a esse vírus e incertezas sobre uma vacina". "Com duas crianças, um recém-nascido, a gente fica ainda mais cauteloso."

Segundo Cacau, todas as babás e enfermeiras que fazem parte de um grupo de WhatsApp que ela administra se queixam de 2020: "Em muitos casos, houve redução de salário, com aumento da jornada de trabalho. Poucas conseguiram sobreviver. A interrupção do funcionamento das creches levou algumas, que não tinham com quem deixar os próprios filhos, a mudar de profissão."

Cláudia Ferreira da Silva no parto da filha Sarah, com a neta Alice, que nasceu durante a pandemia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cláudia Ferreira da Silva no parto da filha Sarah, com a neta Alice, que nasceu durante a pandemia
Imagem: Arquivo pessoal

Babá "imunizada"

Para a psicóloga Bia Greco, da agência de babás Baby Care, o mercado enfrentou seus piores dias no início da pandemia. "Se hoje não dá para dizer que 10% do meu cadastro [de 1.500 babás] estão 'imunizadas', imagine em maio ou abril. Eram casos raríssimos."

Com dez anos de experiência nesse segmento, Bia afirma que a pandemia do novo coronavírus inaugurou um momento profissional insólito. "Por mais que seja um problema gravíssimo, a covid não deveria ser o principal parâmetro para a avaliação de uma boa babá. No entanto, se você encaminha duas profissionais para entrevista com a cliente, e uma já foi infectada pelo vírus, há 80% de chances de a vaga ser dela."

Bia conta que já há vários casos assim. "Na semana passada, a gente fez uma seleção de cinco candidatas para uma cliente de Higienópolis [região central de SP], que fazia uma série de exigências. Queria alguém com mais de 40 anos, que tivesse experiência não só com crianças de um ano, como também mais velhas, na faixa dos seis, sete anos — idade de outro filho — e que não morasse longe [quanto mais transportes públicos se pegam, mais riscos se correm]."

Ganhou a concorrência a que menos se enquadrava no perfil traçado, diz Bia. "Tinha 34 anos, estava acostumada a cuidar apenas de crianças com até um ano e precisava pegar duas conduções para chegar ao serviço. O diferencial dela era o teste de covid em mãos."

Clientela nova

Ocorre que o fechamento de creches, berçários e escolinhas fez surgir no mercado a demanda de uma clientela nova. Assim como Bia, a empresária Renata Marchetti, 47, da agência Alô Babá, explica que tem atendido pais que jamais pensaram em ter uma profissional só para cuidar do filho.

"Muitos têm preconceito, só nos procuram porque não veem saída. Já chegam na agência querendo um contrato curto, de dois, três meses, acreditando no fim da pandemia", diz ao TAB.

Com 15 anos de mercado e 5.000 profissionais cadastradas, ela afirma que, depois do começo da quarentena, a rotina das babás se tornou muito mais puxada: "Ela chega na casa da família, já tira a roupa, coloca para lavar e toma um banho. Trabalha de máscara, passa álcool o tempo todo nas mãos, nos braços, no pescoço, a responsabilidade com a criança é redobrada."

Salário igual

Tanto Bia quanto Renata afirmam que a demanda por "imunizadas" não chegou ao ponto de elevar o valor pago pelo serviço. "A babá que tem CNH ou mora perto do trabalho sempre foi mais valorizada. A cliente que pode pagar mais já conta com isso."

Na agência de Bia, uma babá que fica apenas durante o dia pode ganhar R$ 2,5 mil, por mês; só à noite, R$ 3 mil; a semana inteira, dormindo, R$ 4 mil. Se o número de crianças — e o de pré-requisitos — aumenta, o valor sobe junto. No caso de um contrato fechado por dois meses, e exclusivo, como o de Cacau, pode chegar a 9 mil.

Renata diz que, por 44 horas semanais de trabalho, o salário de uma agenciada sua pode ir de R$ 1.800 a R$ 2.100.

Para Bia, a covid se tornou um elemento a mais na complexa combinação de requisitos: "Você diz: 'Ok, a babá teve covid, está com o teste em mãos'. Mas já cuidou de recém-nascido? Mora perto? Ah, mas não teve covid... Cuidaria de quatro crianças? Ah, mas não pode dormir. Tem CNH?"

A babá Cláudia Ferreira da Silva  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A babá Cláudia Ferreira da Silva
Imagem: Arquivo pessoal

Pandemia doméstica

As agenciadoras citam casos em que a família toda estava infectada, menos o bebê. Aconteceu com a "folguista" (que cobre folgas da babá residente) Valdeci Azevedo da Silva, 33, a Val. Há cerca de 20 dias, ela passou duas semanas na casa de uma família em que todos estavam com a covid — incluindo um menino de quatro anos e um bebê de seis meses. Em nenhum deles a doença evoluiu para um caso grave.

"A babá [residente] tinha contraído o vírus com os patrões, e estava se recuperando em casa. Para fazer o resto do serviço, eles contrataram uma faxineira que também já tinha tido covid", conta Val. Foi a segunda vez, desde que teve a doença, em março, que ela assumiu uma vaga para "imunizadas". Na primeira, em maio, cuidou de um bebê de seis meses. "Fiquei uma semana, o tempo de os pais se recuperarem", lembra.

Ela afirma que o "atestado de covid" deu uma impulsionada em sua carreira. "A primeira pergunta que eles fazem nas entrevistas é se eu já tive a doença", diz.

A advogada Ana Luiza Martins, 35, estava grávida de seis meses e meio do primeiro filho, Lucas, em fevereiro, quando o surto de covid tomou proporções de pandemia. Ela já tinha contratado uma babá "de confiança" para cuidar do menino, mas isso não foi suficiente para arrefecer suas crises de ansiedade. "Se agora não se sabe muito sobre esse vírus, imagine naquela época. Eu estava apavorada."

Para tranquilizá-la, Rose da Conceição Oliveira, 42, a babá, se propôs a cumprir um isolamento de 14 dias antes de se incumbir dos cuidados com Lucas. O bebê passa bem. "O medo está em toda parte", diz Rose. "Os patrões de uma colega que cuidava de um garoto de quatro anos pegaram covid em uma festa de casamento, e passaram para ela. Só o garoto, na casa, não teve."

Assim que a colega de Rose percebeu os primeiros sintomas, comunicou aos patrões e se afastou. Foi substituída por uma conhecida "imunizada". Entre os familiares, o vírus causou estragos maiores no pai do garoto.

"Ele é bem mais velho que a mãe, e ficou muito abatido, porque, além de tudo, perdeu um amigo que estava no casamento."

Consulta médica

Bia Greco diz que algumas mães se convencem da imunidade da babá apenas com o resultado do "teste de farmácia". O médico Wladimir Queiroz, consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), afirma que nem mesmo o teste mais sensível ao vírus, o PCR — feito com coleta da secreção da mucosa oral e nasal — apresenta resultados 100% garantidos.

"Só há eficácia comprovada a partir do terceiro dia de sintomas. Fora desse período, é mais difícil de interpretar. Além da possibilidade de testar falso negativo, trata-se de um retrato de momento, que pode se modificar no dia seguinte."

Em relação à reinfecção — algo que invalidaria o salvo-conduto da babá —, o infectologista diz que já foram descritos alguns casos e que não se sabe se alguém imunizado naturalmente, por ter tido a doença, ou artificialmente, pela vacina, é capaz de portar o vírus e transmitir para outras pessoas.

O médico afirma que não se tem conhecimento a respeito da circulação da nova variante do coronavírus registrada no Reino Unido. "Sabemos que há várias cepas circulantes no país, não exatamente aquela."

Cárcere privado

De acordo com Queiroz, o resultado negativo de um teste para covid não é "passaporte" para nenhum trabalhador. "A menos que o funcionário more na mesma casa (sem folgas, sem uso de transporte coletivo, sem nenhum tipo de exposição ou contato com outras pessoas), as regras de manutenção de distanciamento, higiene e uso de máscaras estão valendo."

Ele diria que a estratégia adotada no caso de Cacau é "segura, do ponto de vista da transmissão do vírus". Entretanto, pouco razoável do ponto de vista humano. "Todos nós precisamos de emprego, mas esse custo me parece alto demais. Soa como prisão domiciliar, cárcere privado."