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Pandemia de covid-19 troca cápsula do tempo por memórias em tempo real

Filho da funcionária pública Ana Faria olha pela janela de casa. A foto integra o acervo do projeto #memóriascovid19 da Unicamp - Arquivo pessoal
Filho da funcionária pública Ana Faria olha pela janela de casa. A foto integra o acervo do projeto #memóriascovid19 da Unicamp Imagem: Arquivo pessoal

Leda Balbino

Colaboração para o TAB

19/12/2020 04h01

31 de dezembro de 2020 não vai ser apenas o dia de dizer "já vai tarde!" a um ano que talvez a maioria queira esquecer. A data também marca o primeiro aniversário do alerta oficial, enviado à OMS (Organização Mundial da Saúde), de que algo potencialmente sério acontecia em Wuhan, na província chinesa de Hubei.

Lá atrás, no adeus a 2019, mal sabia a OMS que os "vários casos de pneumonia" se tornariam a maior pandemia de um século, deixando mais de 1,6 milhão de mortos, afetando a economia global, explicitando desigualdades e obrigando grande parte do mundo a substituir a presença física por uma conexão digital.

Quem passou pela gripe espanhola, que deixou ao menos 50 milhões de mortos entre 1918 e 1919, não teve a mesma chance. Perdas, medos e anseios não puderam ser compartilhados de pronto. A memória era individual e isolada, até ser digitalizada na forma de narrativas, cartas e diários, em projetos como o Pandemic Influenza Storybook (Livro de História sobre a Influenza Pandêmica, em tradução livre), do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, ou em depoimentos de sobreviventes.

"Certo dia, as folhas noticiaram mais de quinhentos óbitos, e mesmo assim [o governo dizia] que a gripe era benigna. (...) As mortes eram tantas que não se dava conta do sepultamento dos corpos. Na minha rua, da janela, se via um oceano de cadáveres", relatou o professor de filosofia Nelson Antonio Freire, segundo transcrição no artigo "Revisitando a Espanhola: a Gripe Pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro", de Adriana da Costa Goulart, que o entrevistou em 1990.

Memória enviada por Anik Zegman Zaharic para a Plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp - Unicamp/Divulgação - Unicamp/Divulgação
Memória enviada por Anik Zegman Zaharic para a Plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp
Imagem: Unicamp/Divulgação

Trauma coletivo

Se vivesse hoje, Freire não precisaria esperar 72 anos para partilhar o que viu. Redes sociais e plataformas digitais seriam sua janela para o mundo, permitindo no mesmo instante tornar pública uma experiência privada e, coletivo, um trauma individual. "É a memória em tempo real", diz a historiadora Ana Carolina de Moura Delfim Maciel, coordenadora da plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), uma das várias iniciativas de documentação digital das experiências vividas sob o novo coronavírus.

Movida pela inquietação insone de que precisava fazer algo enquanto "vivemos em tempo real o marco de um trauma coletivo global", a historiadora teve a ideia em março, quando a OMS declarou a pandemia, e começaram a vigorar as medidas de isolamento. Com a ajuda de alunos e de curadores de outras nove universidades, os relatos em forma de texto, imagem, vídeo e áudio começaram a ser compilados antes mesmo de a plataforma ir ao ar, em setembro, porque havia a urgência de coletar "um caleidoscópio de olhares sobre esse momento pandêmico", conta. Qualquer pessoa pode enviar suas experiências ao grupo, que vai continuar juntando narrativas, incluindo anônimas, enquanto houver a pandemia.

Um desses olhares é o da funcionária pública Ana Santana Farias, 36, do Rio Grande do Norte. Ela decidiu participar inspirada pela frase "Toda dor pode ser suportada se sobre ela pudermos contar uma história", da pensadora judia Hannah Arendt. Ana Farias enviou ao #MemóriasCovid19 uma foto do filho de quase 3 anos observando o mundo vazio, a partir da janela de casa. Acompanha a imagem uma poesia cujos versos ensaiam a promessa de um futuro, apesar dos afastamentos e clausuras do presente: "Mas Joaquim não se entristeça (...): / quando as portas do mundo novamente se abrirem, nenhuma ausência mais será sentida / porque os humanos talvez aprenderão que amar é verbo de urgência".

'Memórias do meu cotidiano na quarentena', material cedido pelo professor Alexandre Bittencourt para o projeto coronarchiv - coronarchiv/Divulgação - coronarchiv/Divulgação
'Memórias do meu cotidiano na quarentena', material cedido pelo professor Alexandre Bittencourt para o projeto coronarchiv
Imagem: coronarchiv/Divulgação

Para a funcionária pública, que já havia compartilhado o material no Instagram, participar do projeto é oportunidade de expor uma intimidade que entendia não ser exclusivamente sua. "Embora more no interior do sertão nordestino, minhas memórias desaguam no desafio comum aos pais e mães do atual tempo de tentar ressignificar, para as crianças, uma perspectiva de mundo", diz.

O professor pernambucano de História Alexandre Bittencourt, 40, pensava na posteridade quando contribuiu com o coronarchiv, portal online de três universidades alemãs que também compila memórias sobre a pandemia. Ele enviou uma foto ilustrada por um berimbau, um laptop, uma caneca com a imagem da filha e os livros "Duas Viagens ao Brasil", de Hans Staden, e "Walden - A Vida nos Bosques", de H.D. Thoreau. Incluiu também um texto sobre o uso desses itens na quarentena. "Como historiador, sigo a análise de que objetos podem contar história, não somente os documentos escritos", explica.

Como pensava no futuro, Bittencourt se surpreendeu quando foi contatado pela reportagem de TAB. "Apesar de haver historiadores do tempo presente, minha mente não foi por aí. [Postei] Como se alguém mais para frente olhasse para cá tentando reconstruir esse passado, que é o nosso presente."

A expectativa frustrada ilustra o impacto do digital na construção e disseminação da memória. Se antes tendia a ficar estagnada em arquivos, álbuns de fotos, acervos físicos, diários, muitas vezes como numa cápsula do tempo a ser acessada apenas no futuro, ela ganhou fluidez e flexibilidade a partir da Web 2.0, a internet da participação.

'Memórias de cheiros e sabores de mãe', enviada por Eliane Morelli Abrahão para a Plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp - Unicamp/Divulgação - Unicamp/Divulgação
'Memórias de cheiros e sabores de mãe', enviada por Eliane Morelli Abrahão para a Plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp
Imagem: Unicamp/Divulgação

Ação e vontade

Por causa da hiperconexão e de ferramentas como "Memórias do Facebook", interações passadas frequentemente se sobrepõem ao presente como uma "emergente, indiscriminada e irreverente memória que assombra", como descreve Andrew Hoskins, da Universidade de Glasgow, no livro "Digital Memory Studies: Media Pasts in Transition" (Estudos da Memória Digital: Passados da Mídia em Transição, em tradução livre).

Para Marina Leitão Damin, doutora em Memória Social pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), o digital traz um excesso de estímulos para lembrar. "Levantar e procurar um álbum de fotos exige uma ação e uma vontade, vai dar trabalho. Se há uma ferramenta que lembra por você, é mais fácil", afirma.

Além disso, é uma memória que, assim que cai na rede, sai do controle de quem a criou. O coronarchiv, por exemplo, permite que o material postado seja enviado por e-mail e compartilhado no Twitter, Facebook, Pinterest, Tumblr. O usuário concorda que o material enviado seja copiado e redistribuído em qualquer mídia ou formato, além de adaptado, até para uso comercial, sob a licença 4.0 internacional do Creative Commons.

Memória enviada por Jorge Coli para a Plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp, com a mensagem: 'Companheiros de solidão no meu escritório' - Divulgação/Unicamp - Divulgação/Unicamp
Memória enviada por Jorge Coli para a Plataforma #MemóriasCovid19, da Unicamp, com a mensagem: "Companheiros de solidão no meu escritório"
Imagem: Divulgação/Unicamp

A mesma licença, assim como compartilhamentos via Facebook e Twitter, também são adotados por Corona Diaries, iniciativa de ex-bolsistas da Fundação Nieman de Jornalismo da Universidade de Harvard, nos EUA, que compila áudios do mundo inteiro narrando, na intimidade do ouvido, o impacto da pandemia. O artista de som Halsey Burgund, que desenvolveu a plataforma, conta que a concepção aberta veio do desejo de potencializar a exposição e a disseminação das vozes, em vez de fechar e calar.

"Estamos juntos nessa. Isso não significa que temos as mesmas experiências, mas compartilhamos sobreposições, pontos em comum de uma coisa sem precedentes. [Então] Queríamos nos conectar. Quanto mais abertos fôssemos, mais interessantes usos surgiriam pela imprensa, profissionais autônomos, artistas, músicos", afirma.

A sobreposição mencionada por Burgund é facilmente constatada nos desabafos que ressoam o medo de contaminar parentes e a saudade de abraçar, de viajar e, como fala um fluminense anônimo, "de ver paisagens com meus próprios olhos".

Em uma pesquisa sobre as imagens postadas sob a #tbtrj no Instagram, Damin e a pesquisadora Alyne Fernanda Reis interpretaram essa saudade de transitar livremente como uma âncora do passado que traz um alento para um presente e futuro incertos. "Como no contemporâneo ninguém viveu nada parecido, o que há de seguro? São as coisas que já fiz, os lugares que visitei. Para lidar com a ansiedade de que 'vai passar, mas está lá na frente', uso no presente esse conforto do que já vivi", disse Damin.

Além disso, essa sucessão de memórias sobre a pandemia revelaria também o anseio de ser lembrado. "Sempre existe um desejo de ir contra a própria finitude", avalia Damin. Resta saber se, com a evolução tecnológica constante, os atuais suportes de ­­­­­memória conseguirão se atualizar e reinventar para salvaguardá-las para o futuro, perpetuando no tempo lembranças que tantos significados tecem com o presente.