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Para evitar as telas, desconhecidos do mundo todo trocam cartas na pandemia

A estudante de produção editorial Gabriela Benevides, 22, é uma das centenas de pessoas se dedicando à correspondência com estranhos - Arquivo pessoal
A estudante de produção editorial Gabriela Benevides, 22, é uma das centenas de pessoas se dedicando à correspondência com estranhos Imagem: Arquivo pessoal

Natália Eiras

Colaboração para TAB, de Lisboa (Portugal)

13/12/2020 04h00

De segunda à sexta, teletrabalho. Na sexta ou sábado, uma festa virtual. Aos domingos, à tarde, uma reunião familiar pelo Zoom. Se você ainda não flexibilizou a quarentena, essa, possivelmente, foi a sua rotina nos últimos nove meses — em que a necessidade do isolamento físico levou para a internet a maioria das nossas interações sociais. Depois de tanto tempo gasto em frente ao computador, há quem esteja procurando outras formas de manter esse contato sem furar a quarentena e longe das telas brilhantes, por correspondências. Aquelas de papel, com envelope e selo, enviadas pelos Correios, em um projeto chamado Penpalooza.

O projeto nasceu em junho, quando a jornalista Rachel Syme, inspirada pela compra de uma máquina de escrever elétrica vintage, perguntou no Twitter quem gostaria de ser seu "amigo de correspondência". Ela recebeu tantas respostas que decidiu usar um site de sorteio de amigo secreto para fazer "match" entre interessados que gostariam de trocar cartas com desconhecidos. Atualmente, o projeto tem mais de 7 mil inscritos, incluindo pessoas dos EUA, Europa e América do Sul.

Amizade analógica

No começo dos anos 2000, se popularizou o termo "amigo virtual" — gente que conhecíamos em salas de bate-papo e, mais atualmente, nas redes sociais. Projetos como o Penpalooza é um flerte com o passado, quando, na época dos nossos avôs, pessoas trocavam correspondência com desconhecidos por motivos como interesses em comum, para praticar idiomas e para conhecer pessoas fora de seus círculos próximos.

Por mais que os Correios tenham visto um aumento de 25% nas demandas desde março — principalmente por conta do e-commerce —, a troca de correspondência não é algo tão comum hoje em dia. Por isso, Nina Villela, 21, que mora em Paris, na França, nunca foi uma grande entusiasta dos Correios. Porém, a estudante viu no hábito uma oportunidade de passar o tempo na quarentena longe das telas e mudar a dinâmica dos seus dias na pandemia. "Para o bem ou para o mal, quem tem acesso à internet está sempre em contato com todo mundo. Você está sempre olhando para uma tela. Mudar um pouco a plataforma, sair do computador para escrever uma carta, se comunicar com alguém que, em outras circunstâncias, você não poderia conhecer, dá uma refrescada na cabeça", diz a jovem.

Quando viu a iniciativa pipocar em sua timeline no Twitter, a estudante de produção editorial Gabriela Benevides, 22, do Rio de Janeiro, parecia ter visto um sonho se tornar realidade. "Sempre gostei de mandar coisas pelo Correio, mas principalmente cartões postais. Não trocava cartas porque não tinha para quem mandar", diz ao TAB. O Penpalooza permitiu, então, que ela colocasse em prática uma vontade de muitos anos. Tanto que não se contentou apenas com um amigo de correspondência. "me cadastrei, consegui o contato de um, mas pedi mais para a Rachel". Atualmente, Gabriela tem seis penpals. "Quatro dos Estados Unidos, uma da Inglaterra e uma da Alemanha".

Entre mandar uma carta e receber a resposta, leva, de acordo com Gabriela, por volta de dois meses. A correspondência demora 30 dias para chegar até o destinatário. Depois, entre a pessoa ler, escrever e ir aos Correios, passam-se mais 30 dias até o remetente ter sua resposta. "Por isso, é um exercício de paciência. Nunca sei quando, onde e de onde algo vai chegar para mim", comenta a estudante.

A demora do processo pode ser excruciante para os outros, mas é o que faz o coração de Gabriela bater mais forte. "Preciso, inclusive, segurar a minha onda, tanto que foi por isso que peguei vários penpals", explica. A espera e alegria em ver o carteiro chegando foi também o que atraiu Nina, fã de "coisas antigas", como fotografia analógica. "Tudo é tão imediato hoje em dia. Não é instantâneo como na internet. É a expectativa que é prolongada", diz.

Em alguns casos, essa ansiedade foi uma forma que adeptos encontraram de se manter saudáveis durante o isolamento. A escritora e profissional de Recursos Humanos Angela Champs, 42, de Surrey, no Canadá, já mandava cartas para os amigos de infância, mas quis expandir esse círculo de amizades pelo bem da sua cabeça. Ela viu no Penpalooza a possibilidade de ter uma espécie de "propósito" nos longos dias de isolamento social. "No início da pandemia, senti um pouco de solidão. Pensei que [ter mais penpals] poderia me ajudar por ter algo para fazer e algo a esperar", diz ao TAB. Desde que se inscreveu na iniciativa, em agosto, Angela já recebeu mais de 40 cartas e tem, atualmente, 16 amigos por correspondência, muitos de fora do Canadá. "Pude 'viajar' pelas cartas, saber como cada um, cada lugar, está lidando com a quarentena."

Mesmo sendo tão entusiastas, nenhuma delas fala com seus penpals fora das cartas. "Não é algo proposital, mas acontece, porque demoramos para construir intimidade", fala Gabriela. Ela segue uma de suas penpals, uma vez que a conheceu pelo Twitter. "Mas não trocamos mensagens." Nina até procurou alguns dos seus amigos nas redes sociais, porém acredita que não os encontrou. Angela até troca mensagens com um ou outro penpal, mas nada muito profundo. Eles deixam o assunto para as correspondências.

Toque físico simbólico

No Twitter, a hashtag #penpalooza é uma festa para qualquer fã de artigos de papelaria. Papéis de carta elaborados e envelopes enfeitados aparecem aos montes. Assim como selos vintage, antigos, dignos de colecionadores. Com a chegada das festas de fim de ano, também bombam os cartões de Natal elaborados, feitos à mão.

"Abrir uma carta de um penpal é uma experiência", conta Gabriela Benevides. "Uma das minhas cortou vários confeitos de papel de seda e colocou dentro da carta. Não é apenas receber uma mensagem, mas receber esta correspondência bonita, interessante, que muitas vezes veio de longe. Quem é essa pessoa que um dia sentou e colocou vários carimbos e fitas especialmente para mim?".

Angela complementa dizendo que, para ela, a troca de cartas é um "momento de esperança e alegria" no meio da pandemia. "É uma experiência compartilhada e, por meio desses presentinhos, estamos dizendo 'aqui está uma coisa pequena para fazer o seu dia mais feliz'. Quando você recebe uma carta, você sabe que a pessoa estava pensando sobre você, mesmo que um pouco, e te faz se sentir menos isolado."

Gabriela, por exemplo, costuma se corresponder usando os papéis de carta que ela colecionava quando era criança. Já Angela mantém um arsenal pelo qual é apaixonada. "Gosto muito de papéis, canetas, selos, adesivos, papéis, envelopes", diz. "Tenho canetas diferentes, maravilhosas, que uso principalmente para escrever para os meus penpals". E as mensagens da escritora costumam ser longas. "Minhas cartas costumam ter por volta de cinco páginas e sempre as escrevo à mão. É claro que há momentos em que me arrependo, já que, no final delas, meus dedos ficam doendo", ri.

Além dos trabalhos de artesanato, o que torna a experiência ainda mais pessoal é, de acordo com as entrevistadas, a letra cursiva de quem preferiu usar uma caneta em vez do teclado do computador. "É muito mais pessoal. A mão dela está ali. A caneta se torna uma espécie de extensão do corpo da pessoa. Ela tirou um tempo para fazer um trabalho manual para falar com você", diz Nina Villela. "É como se fosse um contato físico em um momento que o contato físico está proibido. A carta é uma maneira mais simbólica de se ter contato na pandemia."