Topo

Querido diário: por que a pandemia inspira tantos relatos autobiográficos

Kelly Sikkema / Unsplash
Imagem: Kelly Sikkema / Unsplash

Juliana Sayuri

Colaboração para o TAB, de Toyohashi (Japão)

19/04/2020 04h00

9 de abril de 2020, 18º dia de isolamento. "Hoje meu maior desejo é conseguir escrever", publicou a cordelista Jarid Arraes nos "Diários do Isolamento", um projeto da editora Companhia das Letras que pretende compilar um "registro coletivo" da pandemia de covid-19, que também conta com autores como Jessé Andarilho e Alejandro Chacoff.

"Quero escrever, mas a dança faminta das notícias não me permite. Quero escrever poesia, começar a trabalhar num romance, mas a agonia das palavras ditas pelos outros me paralisa. O que eu quero escrever está grudado nas pontas dos meus dedos, quase se tornando parte das minhas digitais, e uma vez que isso se complete, minha voz ficará para sempre presa no meu corpo", definiu Arraes.

De longas quarentenas a viagens de última hora, passando por luto e esperança, experiências pessoais na pandemia vêm sendo registradas digitalmente, entre relatos a jornalistas e registros autobiográficos de diferentes estilos. Às vezes, verbalizando a própria angústia da escrita, como fez Arraes.

Além de blogs (o formato consolidado de diários virtuais), lives animadas e timelines, surgiram projetos especiais de editoras e universidades.

O boom de diários públicos inclui narrativas em primeira pessoa de jornalistas (como o dia a dia do confinamento de Susana Bragatto em Barcelona, registrado na Folha; as férias frustradas de Luciana Sarmento, repórter do UOL, pega de surpresa com o fechamento de fronteiras no Peru; a saga de Clara Becker, no trajeto do Irã ao Brasil, narrada na revista piauí; as crônicas de home office de Matheus Pichonelli), além de famosos (diagnosticados positivos como o médico David Uip e o publicitário Nizan Guanaes, a atriz Fernanda Paes Leme e a influencer Gabriela Pugliesi, no Instagram) e anônimos de Wuhan a Paraisópolis.

De Pugliesi a Anne Frank

O impulso de registrar o que está acontecendo é antigo -- o diário de Anne Frank (1929-1945), a adolescente alemã de origem judaica que escreveu sobre o isolamento da família durante a Segunda Guerra Mundial, é um dos maiores exemplos: o diário se tornou um documento histórico, foi traduzido para 70 idiomas e, 75 anos após a morte da autora, é um dos livros mais lidos do mundo.

Recentemente, historiadores alemães lançaram o projeto Coronarchiv, um arquivo colaborativo de memórias da pandemia do novo coronavírus para futuras pesquisas históricas. Além de textos, o banco de dados aceita upload de vídeos, fotos e arquivos de áudio, anônimos ou não. Pesquisadores do laboratório de jornalismo de Harvard, nos Estados Unidos, lançaram o projeto Corona Diaries para documentar áudios da crise global. "Histórias grandes ou pequenas, alegres ou tristes, relato único ou registros diários. Toda história é bem-vinda", define o site.

Desde os anos 2000, muitos historiadores acompanham atentos a tendência de testemunhos e a valorização da subjetividade dos sujeitos. No livro "Tempo Passado" (Companhia das Letras, 2007), por exemplo, a intelectual argentina Beatriz Sarlo analisa criticamente o boom de relatos e narrativas pessoais após o fim das ditaduras na América Latina. "Isso acontece também em outros países, como a África do Sul, após o regime do apartheid. Esse registro pessoal é, portanto, fortemente marcado por eventos que alguns autores classificam como 'traumáticos'. Ao que tudo indica, essa pandemia é o evento traumático da vez", acrescenta o historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília e editor do portal Café História.

Registrar um acontecimento, diz Leal, é uma tentativa de controlá-lo, isto é, de torná-lo mais inteligível diante das incertezas que marcam crises profundas como a pandemia.

"Escrever, fotografar, filmar, fazer shows na varanda ou pintar quadros que retratam a crise do novo coronavírus é dizer para nós mesmos que não estamos passivos diante dela. É uma forma de reafirmar nosso protagonismo e nossa capacidade de produzir narrativas estruturantes. Registrar uma experiência é ainda tentar entender ou tirar algo dessa experiência - e todos queremos que ela signifique algo"
Bruno Leal


Memórias, relatos e registros autobiográficos podem ser importantes fontes para o trabalho de historiadores, pois constroem uma história "mais humana", ao contemplar diferentes estratos sociais e grupos étnicos (e não apenas a elite) - entre acadêmicos, a área é conhecida como "história da vida cotidiana". Historiadores cruzam esses materiais com outras fontes (como reportagens publicadas na imprensa ou informes oficiais do governo) para analisar uma época.

"A maneira como as 'pessoas comuns' relatam um episódio é muito diferente dos dados de um relatório governamental, por exemplo. O relato em primeira pessoa traz sentimentos, preocupações pessoais, representações de ângulos únicos e, claro, dados novos que nos ajudam a ter uma visão mais ampla do período em análise. O que está em questão é como eles retratam essa realidade: a linguagem, isto é, suas estratégias, palavras, efeitos de sentido, formações discursivas, é o que importa", define Leal, organizador do livro "História Pública e Divulgação de História" (Letra & Voz, 2019).

O historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília
Imagem: Arquivo pessoal

Dias atrás, Leal precisou levar seus filhos recém-nascidos para uma consulta médica de rotina. No percurso, protegido por máscara, álcool em gel e demais cuidados, o historiador fez selfies para guardar o momento. "Vou precisar disso no futuro para contar para as crianças como nós vivemos a epidemia", pensou. "Também sou filho do meu tempo. Não estou sendo sistemático, mas estou montando meu arquivo pessoal da pandemia. Acho que fazemos isso porque avaliamos que este é um momento histórico, o típico evento social que desperta em nós uma obsessão singular com o registro, especialmente o pessoal. São sentimentos e angústias muito típicas de uma sociedade extremamente acelerada, marcada pelo presentismo e abarrotada de informação."

Diário dos diários

A artista Marina Guzzo escreve diários desde a adolescência. Durante a pandemia, iniciou um novo, movida por um sentimento de necessidade de organizar para si a experiência impactante do confinamento, diante da avalanche diária de informações. "Voltar aos pequenos gestos do cotidiano, da casa, dos cuidados de si. E também com as memórias, as saudades e o futuro incerto. Como imaginar um futuro depois disso? Sairemos melhores?", questiona Guzzo, pesquisadora do Laboratório Corpo e Arte e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).

"A escrita ajuda a sistematizar e, muitas vezes, clarear situações complexas que vivemos. Escrever traz uma materialidade para o pensamento. Materializar a escrita, 'pôr no papel' (hoje em dia, na tela) é uma maneira de poder olhar para os processos pequenos, psíquicos, íntimos, bastante subjetivos, às vezes confusos, que acontecem no nosso mundo", analisa.

No estudo "Diário dos Diários", assinado por outros sete coautores e publicado na revista científica Interface, a acadêmica cunhou a expressão "escrita sensível" para analisar diários de campo para a formação de profissionais da área de saúde no campus da universidade na Baixada Santista: uma escrita que engaja a presença do autor, permitindo entender emoções e memórias que ultrapassam os fatos vividos e as questões técnicas do trabalho.

Diários de campo contam com notas descritivas (mais objetivas, com detalhes técnicos) e notas intensivas (subjetivas, com impressões pessoais e reflexões), desdobrando-se em diferentes suportes, incluindo áudios, fotos, ilustrações e vídeos. Entre profissionais de saúde, destacou o estudo, a sensibilidade na comunicação é um eixo importante para aprimorar o acolhimento, o cuidado e um tratamento mais humano aos outros - assim, é uma ação individual que pode contribuir para o coletivo.

"Diários nos ajudam a revisitar histórias, sentimentos, situações que podem ser esquecidas, apagadas, desaparecidas pelos próprios processos psíquicos. Quando a gente escreve, a gente também deixa rastro, deixa viva a possibilidade de que alguém, em algum momento, possa revisitar aquele momento, mesmo que seja eu mesma no futuro"
Marina Guzzo

De átomos e histórias

Além de fonte para a análise da história e ferramenta para a humanização do cuidado, diários despertam interesse pelo potencial terapêutico: trata-se da "escrita expressiva", técnica desenvolvida pelo psicólogo social americano James Pennebaker, da Universidade do Texas.

Na década de 1980, Pennebaker pediu para estudantes escreverem sobre o maior trauma de suas vidas, expressando seus pensamentos mais profundos, por diversos dias seguidos. Um segundo núcleo de estudantes, o grupo de controle para contrastar os resultados, foi incumbido de escrever sobre assuntos "neutros", como descrever uma árvore. Ao fim do experimento, monitorado por meses, o psicólogo constatou que os estudantes que escreveram sobre seus sentimentos precisaram ir muitas vezes menos ao médico. Assim, Pennebaker inaugurou os estudos de psiconeuroimunologia, que explora as relações entre a escrita expressiva e o corpo.

Diversos estudos científicos foram desenvolvidos desde então, destacando os benefícios sobre escrever para melhorar distúrbios de humor, diminuir estresse e aumentar a memória, mas ainda há muito a explorar: não se cravou cientificamente, por exemplo, se escrever nos faz liberar hormônios como o cortisol, o que é benéfico a curto prazo e teoricamente traria efeitos positivos para o sistema imunológico. Por outro lado, o que investigações indicam até agora é que estresse, depressão e ansiedade podem ter efeitos negativos, sim, na imunidade.

Ana Suy, psicóloga e professora da PUC do Paraná - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ana Suy, psicóloga e professora da PUC do Paraná
Imagem: Arquivo pessoal

Na atual pandemia, muitos estão escrevendo para extravasar sentimentos, como a angústia do isolamento e a dor do luto. Diante da quarentena quase global, escrever também é uma alternativa para se sentir menos solitário. "Escrever — e se dispor para ser lido — é um modo de fazer laço", interpreta a psicóloga Ana Suy, professora da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).

Mas não há fórmula mágica. Segundo Suy, para quem literalmente gosta de escrever, a prática pode trazer benefícios no calor da hora; para outros, que preferem se expressar de outras maneiras ou outros momentos, não necessariamente.

"Não estou fazendo um diário, pois tenho uma relação com a escrita em que 'só depois' consigo escrever no papel. No olho do furacão me dedico a elaborar menos. Só depois que a tormenta maior passa me sinto convocada a escrever. A escrita é, para mim, um resto", conta.

Com ou sem palavras, diz Suy, de certo modo todos nós escrevemos. "À medida que vivemos, vamos escrevendo o texto da nossa vida. Essa história que cada um de nós escreve é de onde vem nossos sofrimentos e nossas alegrias (a cada vez que relemos o que escrevemos, contando para alguém ou apenas lembrando, por exemplo). Esse texto é também o modo como constituímos nosso corpo. Eduardo Galeano, um escritor de quem gosto muito, escreveu assim: 'Os cientistas dizem que somos feitos de átomos, mas um passarinho me diz que somos feitos de histórias'."