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Criar 'campos de concentração' para doentes carrega preconceito e riscos

Cura para lepra foi encontrada em 1940, mas Spinalonga seguiu operacional por quase 20 anos - BBC
Cura para lepra foi encontrada em 1940, mas Spinalonga seguiu operacional por quase 20 anos Imagem: BBC

Letícia Naísa

Do TAB

11/04/2020 04h00

Na última quarta-feira (8), um apresentador de televisão sugeriu a criação de "campos de concentração" para as pessoas afetadas pela covid-19. Ele foi afastado da emissora. O desconhecimento de um tratamento para o novo coronavírus gera medo e evoca a lembrança de um tempo em que doentes eram isolados pra valer. Apesar de o isolamento social ser a melhor forma de conter a transmissão, a história mostra que a segregação de doentes estimula o preconceito.

Pessoas com hanseníase (antigamente chamada de lepra) sofreram com a segregação compulsória e as consequências desse tipo de política são sentidas até hoje pelas famílias. Há poucos paralelos entre o desenvolvimento das duas doenças, mas a história da hanseníase pode nos ensinar a lidar de forma mais humana e racional com a pandemia atual.

O que são campos de concentração? São campos de prisioneiros piorados, a exemplo dos campos de extermínio de judeus, ciganos e outros grupos marginalizados nas áreas ocupadas pela Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Antes de serem chamados de "campos de concentração", o termo usual era "campos de trabalhos forçados", porque o primeiro objetivo era aplicar exigir trabalho forçado dos confinados. O extermínio veio no final da guerra, a "solução final" dada pelos nazistas para os prisioneiros. Por isso, essa história já começa errada pelo termo, que carrega alta voltagem, estigma e a lembrança da dor da guerra.

Doentes confinados. A hanseníase é uma das doenças mais antigas descritas pela medicina. Por causar lesões na pele, acreditava-se que era castigo divino e os pacientes eram excluídos da sociedade. A segregação e o isolamento em colônias vigorou como política de saúde pública no Brasil até os anos 1960. Caso o paciente se recusasse a ser internado, era levado de casa à força. "Isso causou sequelas irreparáveis nas famílias", afirma ao TAB Laila de Laguiche, dermatologista, fundadora do instituto Aliança Contra Hanseníase e especialista em saúde internacional e doenças tropicais.

Mas o isolamento faz parte do tratamento da hanseníase? Não. A partir da primeira dose de antibióticos, a doença não é mais transmissível, diferentemente do que acontece com a covid-19. Sem tratamento e sem vacina, ainda não é possível conter a transmissão do novo coronavírus sem isolamento social. Laguiche lembra, inclusive, que várias doenças exigem o isolamento — até situações simples, como a ocorrência de piolho entre crianças. "Não é uma agressão a ninguém ter que se isolar. É um direito a pessoa se afastar para se tratar", afirma. Por isso, inclusive, foram criados os hospitais de campanha, para tratar pacientes afetados pelo novo coronavírus.

O que são esses hospitais? Eles servem para atender aos pacientes com a covid-19 que apresentem sintomas leves e moderados. "É desejável ter um sistema de saúde complementar justamente para não acontecer uma sobrecarga daquele já existente. Você não pode prejudicar o sistema em detrimento de uma doença só, porque as pessoas continuam tendo dor de barriga, quebrando a perna, fazendo pré-natal", explica Laguiche. "Os pacientes precisam desse tipo de estrutura e eles querem. É um hospital e não uma prisão", completa.

Prisão em casa. Ficaremos em casa até a pandemia ser controlada, de acordo com as entidades médicas, ou até uma vacina e um tratamento eficazes serem desenvolvidos. Aos poucos, diz Laguiche, pode ser que haja uma separação da população entre quem já pegou a doença e, teoricamente, está imune e poderá ser liberada da restrição social, e quem ainda não apresentou sintomas e deve permanecer em casa. Estudos poderão nos dar mais respostas sobre o tema.

E o que aconteceu com os antigos leprosários? "Demoramos décadas para conseguir a efetiva liberação dos pacientes, muitos deles ficaram com a vida pessoal desestruturada, sem mais família, parentes que não queriam aceitá-los de volta", diz a dermatologista. "Por isso, ainda existem antigos leprosários que acolhem os idosos que não têm ou não querem voltar para o convívio." Apesar de a doença ter cura, o estigma em torno de quem a teve continua até hoje.

De onde vem o preconceito? Do medo e da ignorância. "Quando a pessoa não sabe como se pega uma doença, ela acha que pode pegar de qualquer jeito, qualquer coisa pode causar. É natural e humano ficar com medo", diz Laguiche. Além da hanseníase, o mesmo aconteceu com a tuberculose e a Aids. Na atual pandemia, qualquer espirro já recebe um olhar torto. E, por ignorância e preconceito, Donald Trump, presidente dos EUA, chamou o novo coronavírus de "vírus chinês". O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) também culpou o país asiático pela crise e há vários relatos de racismo contra os asiáticos. Entre os idosos, também há quem esteja sofrendo represálias, pois são considerados grupos vulneráveis.

Existe grupo de risco de covid-19? Segundo Laguiche, não. Qualquer pessoa pode pegá-la. Já entre quem desenvolve um quadro mais grave da doença, sim, há um grupo mais vulnerável, do qual fazem parte os idosos. No momento, o tratamento mais efetivo para a doença é ficar em casa, lavar as mãos, usar máscaras quando precisar sair às ruas e manter bons hábitos de higiene. Contra o preconceito, basta buscar informações e não espalhar notícias falsas.