Largado, sim. Pelado, jamais: a vida de um praticante das 'artes mateiras'
Quando passou pela imigração no aeroporto de Heathrow, em Londres, em 2019, Giuliano Toniolo viveu um momento raro. O pioneiro do termo bushcraft no Brasil, não precisou, enfim, explicar o que isso significa. Por força do hábito, logo após responder à dupla de oficiais que ganha a vida como instrutor de sobrevivência e bushcraft, devolveu a questão: "Vocês sabem o que é?". Eles sabiam. "Gostam de Ray Mears?" Esta segunda pergunta soou como uma senha. "Foi incrível, parece que se rompeu uma parede de gelo." O clima foi de interrogatório a papo de comadre. "Falar de bushcraft no Reino Unido é como falar de Carnaval", ele brinca.
A popularidade dos programas de tevê do britânico Ray Mears reaqueceu, ao menos ali, o termo cunhado no final do século 19. Bushcraft ou "prática das artes mateiras", traduzido livremente, no entanto, existe desde que o homem é homem, apesar de os seres urbanos terem se esquecido disso. Pode ser definida como a capacidade de se manter em ambiente natural hostil, utilizando-se o mínimo de ferramentas.
"Quanto mais conhecimento na cabeça, menos equipamento na mochila", é o bordão mais usado por quem treina técnicas mateiras, a partir do conhecimento dos povos tradicionais, e resgata ferramentas do passado. Para Toniolo, equipamentos e técnicas são a base do triângulo cujo ápice é a reconexão do ser humano com a natureza.
"Este é o verdadeiro espírito do bushcraft, o de aproximar as populações contemporâneas a uma intimidade com a natureza que nós perdemos ao longo do tempo."
Homem das cavernas
Neste universo vasto onde a inspiração para se relacionar com o mato pode vir de infinitas culturas ou épocas, Toniolo escolheu a pré-história. Natural de Ouro Preto e hoje morador de um sítio na Serra do Cipó, também em Minas Gerais, ele gosta de dizer que seu quintal é a pré-história brasileira, a região de Lagoa Santa, a um hora de distância. Há anos ele leva alunos de sua escola de Bushcraft e Sobrevivência, a Mestre do Mato, para fazer vivências na região onde foi encontrada Luzia, a mais antiga e famosa descoberta fóssil da América do Sul.
Em 2018, Toniolo e o amigo Humberto Costa, também instrutor de bushcraft e sobrevivência, passaram 10 dias no sítio arqueológico da maneira mais paleolítica possível. Foram vestidos a caráter, com roupas de lona, algodão e couro tingidas, cortadas e costuradas por eles mesmos. Para compor o visual, produziram in loco um chapéu de couro com um crânio de cervo e fizeram pinturas corporais à base de gordura animal. Resolver a questão do abrigo foi tarefa simples, já que a região é repleta de cavernas e, para a iluminação, bastava usar lamparinas primitivas com gordura de bacon e pavio vegetal. Fazer fogo primitivo e lascar lâminas para produzir ferramentas de pedra lascada são habilidades que os dois treinam há tempos.
Quanto à alimentação, trouxeram "de casa". Como o objetivo é se reconectar com a natureza, ou seja, preservá-la, não queriam caçar no local. "Levamos coelhos e codornas vivos para simular o abate de um animal selvagem", conta Toniolo, que fez o que pôde para se sentir literalmente nos sapatos do homem da pré-história — inclusive trocar o coturno que sempre usa em suas incursões no mato por primitivos mocassins caseiros feitos de couro. No começo, achou mais seguro ficar sem nada. "Depois de três dias descalço, exposto, quase largado e pelado no meio do mato, voltei a calçar o par de mocassins e ele me fez sentir muito seguro e protegido", conta.
A única concessão foi levar celular e câmeras para registrar o experimento que eles pretendem repetir em outros biomas brasileiros. Sem contar também o que Toniolo chama de inegociável, que é um kit de sobrevivência moderno, com itens necessários para resolver abrigo-água-fogo, que são a base para lidar com situações extremas.
Mente sobrevivencialista
"Se acontecesse uma emergência e aquela experiência se tornasse de fato uma situação de sobrevivência, eu não ia querer depender do fogo de fricção para produzir minha fogueira. Eu usaria tudo o que eu tenho de mais contemporâneo para resolver", diz, deixando bem claro que, se no bushcraft o objetivo é ficar no mato, muitas vezes de forma contemplativa, entre os sobrevivencialistas, tudo que se quer é "sair" do mato.
A relação entre esses termos não é consenso nem entre os praticantes. Toniolo conta que muitos sobrevivencialistas veem a arte mateira como uma continuação do sobrevivencialismo. "Pode até ser, mas seria o plano Z, já que o objetivo não é te ajudar numa situação de sobrevivência", diz.
O fato é que muitos praticantes das artes mateiras são também sobrevivencialistas, incluindo Toniolo que, no entanto, não divulga suas preparações até para, segundo ele, não se tornar um alvo, seguindo a tal da "diretiva do homem cinza", uma estratégia muito usada por gente que se prepara para grandes catástrofes.
Quando sente que há alguma ameaça, Toniolo traça seu plano de evasão, estuda mapas e mantém sempre uma mochila de fuga com equipamentos, a tal da "Bug Out Bag", ou BOB. Quando morou em Londres, o perigo era de atentado. Em 2015, quando viveu em Paraty (RJ), a ameaça era a usina Nuclear de Angra e o plano de evasão seria pela mata.
Moedas do mato
Preparo, confecção de kits de sobrevivência, técnicas para resolver questões relacionados ao fogo, ao abrigo, à coleta de água e até mesmo psicologia do sobrevivente. Estes são alguns itens da grade do módulo básico do curso de Toniolo, que, quando vira a chave, deixa de lado o romantismo do fogo primitivo. Os alunos até aprendem isso no módulo II, no entanto, ao custo de muito tempo e calorias, que são, segundo ele, as moedas do mato.
"Eles percebem na prática que problemas da sobrevivência podem ser resolvidos com itens leves e fáceis de transportar, como isca de algodão, vaselina e isqueiro. Ficar alimentando a fantasia de macho alfa ou de Jane das selvas, achando que basta chegar ali, nu, fazer o fogo do nada e montar cabaninha no mato. Isso é fora da realidade", diz Toniolo, que adora assistir ao programa "Largados e Pelados" comendo uma pizza, tomando uma cerveja e pensando o que faria em determinada situação.
"É um programa legal, mas o fato de estarem pelados acho forçado. No caso de uma situação real de sobrevivência, não consigo pensar neste cenário."
A versão brasileira do programa da Discovery Channel já era um fenômeno antes de ser gravada. As inscrições, que se encerram em 28 de fevereiro, chegaram a mais de 10 mil candidatos. Três dos candidatos escolhidos estavam entre os 5 alunos que entraram no mato com Toniolo no começo do mês. "Eles estavam muito animados falando do programa, mas no final da segunda noite já tinham desistido", conta.
Tanto a escola Mestre do Mato como o canal, hoje com mais de 50 mil inscritos, estrearam em 2008, quando a popularização do YouTube fez Toniolo descobrir que ele não era o único maluco. "Muita gente viu que gostava dessas coisas do mato mas não se havia criado uma tribo reunida sob o rótulo do bushcraft", diz, acrescentando que a opção pelo termo em inglês foi proposital para afastar o preconceito.
"No Brasil, há uma mentalidade muito pobre que dita que o barato é ser urbano. Se você é do mato você é o capiau, o Jeca Tatu. A expressão 'programa de índio' é pejorativa, quando para mim é um grande elogio dizer que eu faço 'programa de índio'. Então, usar uma nomenclatura estrangeira acaba quebrado um pouco do preconceito, dessa visão deturpada", acredita.
Onde vikings e indígenas se encontram
Toniolo se sentiu em casa no Reino Unido. Ver famílias inteiras indo a eventos como o The Bushcraft Show, por onde passam 20 mil pessoas em 3 dias, foi algo extremamente inspirador para ele, que é um dos organizadores do Hupur Bushcraft, cuja terceira edição está prevista para acontecer entre os dias 16 e 18 de julho, em Indaial (SC). O festival brasileiro de artes mateiras, cujo nome significa "alumiar com fogo" na língua dos indígenas caingangues, não reuniu mais de 400 pessoas em sua última edição, mas tem espírito bem parecido ao do encontro britânico.
Todos acampados em barracas, o Hupur atrai pessoas que têm em comum a paixão pelo mato e por culturas que tenham forte ligação com a natureza. Uma roda em torno da fogueira, por exemplo, pode reunir um casal que reproduz o modo de vida viking, um descendente de apache norte-americano com guarani e um casal fissurado nos exploradores europeus do século 19. Todos vestidos a caráter.
O escopo das atividades é vasto e insólito. Há palestras de biólogos e de arqueólogos, oficinas para aprender cutelaria, forja, lascamento de pedra, técnicas de rastreamento humano, arqueria primitiva ou confecção de instrumentos musicais de bambu. Os expositores são tão ecléticos quanto e, sim, você pode levar para casa um copo viking de chifre. "É um evento que permite interagir com essas pessoas e culturas com as quais eu teria muito pouco contato."
Toniolo garante mudanças nos planos sobre o encontro, se a pandemia de covid-19 seguir sem vacinação massiva.
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