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'Tudo mato': artista plástico recupera Cerrado criado artificialmente em SP

O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado recuperado no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL
O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado recuperado no bairro da Pompeia, em São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

17/02/2021 04h01

Quando Daniel chegou ali, tudo era mato. E ele trouxe mais mato. Tirou o mato que não deveria estar ali. Cuidou do mato certo, exato. Viu no mato arte, tratou mato como experiência. Conviveu com o mato, viu mato morrer, também viu mato crescer. Quando veio a pandemia, o mato estava bonito. Porque a covid-19 mata, ele se fechou — ficou quatro meses sem ver o mato, sem tocá-lo, sem cuidar dele.

Em julho de 2020, quando o artista Daniel Caballero, 48, rompeu o isolamento, era hora de celebrar o quinto aniversário de sua "land-art", a obra batizada por ele de "Cerrado Infinito" que viceja a três quarteirões de sua casa, no bairro paulistano da Pompeia. Bem ali onde antes era um barranco inútil da Praça da Nascente, ele fez o mato crescer.

Movido pela saudade, pela curiosidade sobre o estado do mato -- e, muito provavelmente, pelo tédio de ficar em casa --, Caballero vestiu-se como nunca antes para tais incursões: o recorrente chapéu ganhou a companhia da máscara e, assim protegido, venceu porta, rampa, calçada, rua, sete minutos de caminhada. Um trajeto antes percorrido pelo menos três vezes por semana, desde 2015, quando sua dedicação ao mato começou.

A praça, óbvio, estava no mesmo lugar de sempre. Talvez as pessoas fossem mais sorumbáticas, disfarçadas também com suas máscaras ou observando o vaivém, receosas, apenas através de vidraças. O mato, certamente, teria sido transformado. Porque mato é vida, e vida não para.

Levantou a cabeça para observar sua cria. Deve ter piscado mais forte, como que para se certificar se o que via era verdade ou vertigem, fato ou alguma miragem do mal. "Encontrei muito lixo, muita embalagem plástica, entulho? O pessoal teve a manha de jogar entulho na praça. Tinha até uma privada quebrada", enumera. "Matagal cresceu muito também, todos aqueles capins exóticos, braquiária, capim-gordura."

Para Caballero, nem todo mato é igual. Para o Cerrado, também.

À pausa atônita seguiu-se o ímpeto de percorrer novamente aquela trilhazinha feita com esmero cinco anos antes, caminho de que seus pés ainda se lembravam de cor. Ao longo dos 150 metros, barranco acima e barranco abaixo, constatou feliz que o Cerrado resistia, floreava em meio às espécies invasoras e à porquice defenestrada pela atividade humana. "Estava um matagalzão, bem complicado. Mas vi que no meio de tudo as nossas plantas estavam todas lá ainda."

O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado na praça Homero Silva, no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Desobediência civil

Desde 2008, o artista começou a usar o Cerrado como matéria-prima para sua obra. Obcecado com a ideia de que a cidade de São Paulo foi fundada sobre essa vegetação -- os tais campos de Piratininga, aliás -- e não sobre a Mata Atlântica que costuma ser mais valorizada no imaginário popular, decidiu garimpar exemplares autóctones (variedades de plantas típicas de um lugar) remanescentes em terrenos baldios.

"Era uma ideia artística, mesmo, de fazer uma colagem de paisagens. Achei capim-rabo-de-burro na Barra Funda. No outro dia fui ao extremo da zona leste e encontrei milho-de-grilo. Levava tudo para casa", recorda.

Se nos terrenos havia cinco, dez plantas de Cerrado, logo em sua casa tinha umas quarenta. Em 2015, transformou o jardim em instalação. Expôs, na Galeria Virgílio, "Como Desenhar Montanhas Não Descobertas". Ficou lá um mês, com iluminação e irrigação. Quando acabou a mostra, decidiu levar para a praça.

Parecia que ele estava libertando as plantinhas do cativeiro. Começou a juntar gente das redondezas para ajudar. Alguns não entendiam o que era, outros queriam saber mais sobre aquele mato. Conforme lembra Caballero, era um momento em que São Paulo vivia um movimento de redescoberta e resgate de espaços públicos, com a valorização de práticas com manutenção de hortas urbanas e afins.

O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado na praça Homero Silva, no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Principalmente aos sábados, passou a juntar gente para ajudar. Em pouco tempo o antigo barranco da praça se transformou em atração. "E o que era um projeto de desobediência civil, de atitude, de devolver esse espaço para as plantas, acabou, um ano depois, sendo reconhecido. A prefeitura pediu para que a gente assinasse um termo de cooperação e tudo bem."

A relação com o poder público sempre foi cordial, construída ao longo do tempo, segundo o artista. "Havia uma preocupação em conversar com as equipes de jardinagem [encarregadas da manutenção dos espaços públicos], explicando os limites do 'Cerrado Infinito', as diferenças das plantas e tal. Para que quando eles fossem roçar, não acabassem cortando o Cerrado."

No fim de 2016, a land-art se desdobrou no livro "Guia de Campo dos Campos de Piratininga ou O Que Sobrou do Cerrado Paulistano ou Como Fazer Seu Próprio Cerrado Infinito", com texto e ilustrações de Caballero.

Apesar de sua obra ser ambiental, ele refuta qualquer rótulo de ativista. É artista. "Isso faz parte da minha poética, do meu percurso. Meu propósito é recriar a visualidade dessa paisagem", resume. Ele se autodefine como "artista ruderal" -- são chamadas de ruderais, ou seja, "do entulho", as plantas que brotam "do nada" em terrenos baldios e outros locais abandonados. "O que faço não é um ecossistema biológico, mas um ecossistema cultural."

O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado na praça Homero Silva, no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Elegante plantado no 'Cerrado' de Daniel Caballero
Imagem: Keiny Andrade/UOL
O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado na praça Homero Silva, no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Planta ananás crescendo no 'Cerradinho' da Pompeia, em São Paulo
Imagem: Keiny Andrade/UOL

"Quando as pessoas vêm falar em 'trazer o Cerrado de volta a São Paulo', acho uma bobagem, um fetiche. Isso não volta. Mudamos a ecologia da cidade, precisamos lidar com a realidade dos prédios, do asfalto", comenta. "Não venha me dizer que está trazendo a Mata Atlântica de volta, pois só acredito quando vir uma onça andando na avenida Paulista. O bioma não é só o que a gente percebe como paisagem. Ninguém quer ter cobras na praça." Para Caballero, usar discurso de verniz natureba é só marketing. "Harmonia entre homem e natureza? Como ter harmonia enquanto na Vila Olímpia os prédios são de vidro?", provoca.

Nesse quesito, o artista observa a extinção daquilo que se tornou conhecido como "ecochato". "Hoje o que temos é o 'ecolegal', o 'ecogente-fina', o 'econamastie-gratidão', que não quer conflito, tudo na paz, a natureza se organiza sozinha, a 'pachamama' não sei o quê vai restaurar o planeta?", enumera. "Isso é muito mais a vontade das pessoas de não enfrentar a treta enorme que a gente criou. Um escapismo um pouco infantil, na verdade."

O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado na praça Homero Silva, no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Daniel Caballero e o capim-rabo-de-burro
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Renascimento

Quatro meses apenas de distanciamento social bastaram para que o "Cerrado Infinito" quase se perdesse. E Caballero, no dia em que revisitou o local pela primeira vez, sentiu-se na encruzilhada da trilha: recuperar ou dar por encerrada a ideia do mato? "A gente tem uma ideia de que a natureza se recompõe sozinha, que basta largar e ela se recupera. A questão é que o 'Cerrado Infinito' não é natureza, né? É um lugar cultivado, tanto como uma monocultura de eucalipto. Se a gente abandona, fica à mercê do entorno. A cidade inteira é infestada de plantas exóticas, de modo que os processos naturais da cidade são muito diferentes do que o dos biomas, que têm certo equilíbrio", explica.

Ele não quis convocar voluntários para o processo. Primeiro, por receio de expor gente ao novo coronavírus. Depois porque era uma oportunidade. Ele nunca tinha experimentado trabalhar o 'Cerrado Infinito' sozinho, e isso o interessou: relacionar-se com as plantas de outra maneira.

O artista plástico Daniel Caballero, 48, no meio de seu Cerrado na praça Homero Silva, no bairro da Pompeia, em São Paulo - Keiny Andrade/UOL - Keiny Andrade/UOL
Imagem: Keiny Andrade/UOL

Antes, apelou para o bom relacionamento com o serviço público. "Estava tudo muito deteriorado, a praça zoada, o mato muito alto. Tive medo de que chegasse a prefeitura e eles não conseguissem diferenciar mais o que era cerrado e o que era praça. Expliquei a situação e eles foram fantasticamente solícitos. Enviaram equipes e me ajudaram a limpar tudo."

Seis meses depois, o cerradinho de Caballero voltou à exuberância. Há pelo menos 150 espécies de plantas. Tudo mato. Mas o mato exato de Cerrado, não o mato que tinha quando ele ali chegou, em 2015, não o mato que tinha em volta quando ele chegou, depois do auto-isolamento pandêmico.