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Aclamação de Amador Bueno: como São Paulo quase teve um rei em 1641

"Aclamação de Amador Bueno", óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva - Domínio Público
'Aclamação de Amador Bueno', óleo sobre tela de Oscar Pereira da Silva Imagem: Domínio Público

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

25/01/2021 04h01

O quadro de número 305 do acervo do Masp (Museu de Arte de São Paulo), um óleo sobre tela de 65 x 87 centímetros, se chama "A Renúncia de Ser Rei - Aclamação de Amador Bueno". Trata-se de uma obra pintada em 1931, de autoria de Oscar Pereira da Silva (1867-1939).

O pintor recriou um dos episódios mais anedóticos da história paulista: o dia em que, em abril de 1641, a então vila de São Paulo, que integrava a capitania de São Vicente, declarou rei o proprietário de terras Amador Bueno de Ribeira (que provavelmente viveu entre 1584 e 1649).

"A intenção, no caso, era de que São Paulo permanecesse sob a órbita espanhola, ou seja, [o episódio] não foi motivado por nenhum sentimento de independência do Brasil, embora isso tenha sido tomado pela historiografia paulista com um sinal precoce, já no século 17, de se separar do domínio europeu", comenta ao TAB o historiador Paulo César Garcez Marins, professor do Museu Paulista, da USP (Universidade de São Paulo). "Isso acabou gerando a construção de imagens como o quadro que celebra essa aclamação de Amador Bueno e, sobretudo, essa ideia de que São Paulo era independente, altiva etc."

Quem era, afinal, Amador Bueno? Segundo o livro "Genealogia Paulistana", de Luiz Gonzaga da Silva Leme (1852-1919), Bueno era filho de um espanhol de Sevilha com uma brasileira descendente de indígenas. Antes da aclamação como rei, tinha sido capitão-mor e ouvidor da capitania de São Vicente. Proprietário de terras na região do Mandaqui, na zona norte, tinha centenas de índios escravos, produzia trigo, milho, feijão, algodão e criava vacas, cavalos e ovelhas. Para os padrões socioculturais da época, era o chamado "homem bom" — branco e de posses.

Estação CPTM batizada em homenagem a Amador Bueno, em Itapevi, na Grande São Paulo - Gamatrom/Wiki Commons  - Gamatrom/Wiki Commons
Estação da CPTM batizada em homenagem a Amador Bueno, em Itapevi, na região metropolitana de São Paulo
Imagem: Gamatrom/Wiki Commons

Qual era o contexto dessa aclamação? O episódio ocorreu como consequência do fim da União Ibérica, período entre 1580 e 1640 em que as coroas portuguesa e espanhola estiveram unificadas. A influência espanhola foi grande na Capitania de São Vicente, sobretudo devido a rotas comerciais dessa região com a América espanhola e a instalação de famílias espanholas na vila de São Paulo. Reconhecer um local como rei seria garantir que, mesmo com a restauração portuguesa, esses interesses fossem mantidos. "Foi uma tentativa de assegurar o controle político regional para a preservação de interesses conjugados de colonos e de autoridades coloniais da América espanhola", explica ao TAB o historiador Paulo Henrique Martinez, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

O que estava em jogo? De acordo com o historiador Luís Soares de Camargo, ex-diretor do Arquivo Histórico Municipal de São Paulo, a aclamação estava ligada a uma disputa de poder, ao controle da Câmara Municipal da Vila de São Paulo. Ele explica que em certos momentos dessa época, os espanhóis foram maioria na câmara. "Também na esfera local eles ficaram preocupados com a restauração da coroa portuguesa e na possível perda de poder, o que poderia ser assegurado com a aclamação de Amador Bueno", contextualiza.

Como foi o episódio em si? Amador Bueno morava onde hoje fica a Rua São Bento, no centro de São Paulo. Quando um grupo de espanhóis decidiu que o melhor era proclamar a vila um reino, seu currículo respeitado e sua ascendência foram tidos como a escolha certa. Bateram à sua casa e aclamaram-no rei. Ele negou, lembrou que rei dali era dom João 4º (1604-1656), o português que havia acabado de inaugurar a dinastia dos Bragança. Aos gritos de "viva Amador Bueno, nosso rei!", a multidão começou a ficar mais agressiva. O aclamado saiu e correu procurar refúgio no Mosteiro de São Bento, a poucos metros de sua casa. Ficou recluso. Mais tarde, na companhia de alguns religiosos, conseguiu convencer o povo de que a ideia não fazia sentido. No dia seguinte, foi para Santos, onde passou uns tempos até que a situação se acalmasse.

Mas enfim, ele aceitou ou não? O fato de Bueno não ter aceitado a realeza é apontado por muitos como um sinal de sua lealdade à coroa portuguesa. Mas não se deve desconsiderar o fato de que ele teria consciência de que aceitar o cargo significaria reconhecer e assumir uma empreitada com grandes riscos de fracasso. "O homem que não quis ser rei, dizem os admiradores, enaltecendo-lhe a modéstia", comenta o jornalista Roberto Pompeu de Toledo no livro "A Capital da Solidão". "O homem que não quis ser rei, replicariam os céticos, porque não havia reino, nem trono ou coroa que valessem o custo de tentar viabilizá-los."

O que aconteceu depois? "Intenção frustrada" e "iniciativa política fracassada" são algumas das expressões utilizadas pelo historiador Martinez para explicar o que aconteceu em seguida. Ou o que não aconteceu. Na prática, com a refuta de Amador Bueno e a restauração portuguesa, gradualmente a relação com a América espanhola passaria a se enfraquecer. "O que existe de fato [nos Arquivo Municipal] é um documento datado de 6 de agosto de 1641 onde se tratou da viagem de Amador Bueno para Lisboa", afirma Camargo. "Não está claro na documentação o motivo dessa viagem."

Como ficou registrada a aclamação? São parcos os registros. "Os assuntos administrativos da Vila eram tratados nas Atas da Câmara e em alguns casos relatados em detalhes, o que não ocorreu no episódio da aclamação", pontua o historiador Camargo. "Entretanto, isso não significa que nada tenha ocorrido, muito pelo contrário. Alguns acontecimentos deixavam de ser mencionados, e isso sempre a critério dos vereadores." O relato mais antigo de que se tem conhecimento é o que ocupa cinco páginas do livro "Memórias para a História da Capitania de São Vicente, hoje chamada de São Paulo, do Estado do Brazil", obra do historiador e monge beneditino Frei Gaspar da Madre de Deus (1715-1800).