De Sócrates a Nietzsche, como os filósofos entendiam a democracia e o voto
Em um ambiente com inspirações tão anárquicas como a internet, movimentos antidemocráticos têm ganhado um surpreendente time de peso como garotos-propaganda.
Citações dos gregos Sócrates, Platão e Aristóteles -- os pais da filosofia ocidental --, além de Friedrich Nietzsche (1844-1900), símbolo do niilismo (negação de todos os princípios religiosos, políticos e sociais), aparecem por aí para embasar discursos contra o regime democrático, em blogs e vídeos no YouTube.
"Esses militantes escolheram bons nomes para tentar macular a democracia", observa Eduardo Wolf, doutor em filosofia pela USP (Universidade de São Paulo) e professor sobre a matéria na Casa do Saber. "Tiradas de contexto e sem explicação histórica, frases soltas desses sábios podem parecer slogans antidemocráticos", diz ao TAB.
Gustavo Dainezi, mestre e doutorando em comunicação pela ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) e professor do Espaço Ética, tem uma metáfora para ilustrar o erro por parte dos conservadores. "Imagine que Shakira dá um show no Maracanã lotado, mas um desavisado pega um telescópio, foca em um grupo de pombos perto do palco e conclui: 'Essa cantora só canta e dança para aves'. É mais ou menos essa a analogia ao concluir que Sócrates, Platão, Aristóteles e Nietzsche curtiam regimes antidemocráticos", exemplifica.
O que os gregos antigos entendiam como democracia? "Esqueça nosso modelo de democracia presidencialista, parlamentarista ou até monarquista para ilustrar o regime grego", diz o professor Wolf. A democracia que prevaleceu em Atenas (uma entres as várias cidades-Estado gregas) entre aproximadamente 480 a.C e 330 a.C, era bem diferente do que conhecemos hoje e baseada na igualdade entre os cidadãos. Até aí, lindo, mas aquela sociedade só considerava "cidadão" o homem adulto nascido em Atenas. Mulheres, escravos e estrangeiros não eram cidadãos e não eram ouvidos.
E como era o governo ali? Havia um conselho maior, o bulé, que decidia questões comerciais e estruturais da cidade (reformas, construções de muros etc.), e outros conselhos específicos: para julgar casos e crimes, finanças e defesa, por exemplo. Um sorteio decidia quem participava de qual área. De tempos em tempos, aconteciam novos sorteios, para mudar os membros desses conselhos, que passavam a ocupar cargos em outras assembleias e cuidar de outros assuntos. Ou seja, ninguém exercia o mesmo poder durante muito tempo. Estadistas gregos famosos — o principal deles, Péricles (495- 429 a.C.) — exerciam sua influência, fazendo uma espécie de lobby com os membros desses conselhos.
Mas afinal, o que Sócrates pensava sobre democracia? Como o pai da filosofia não deixou nada escrito e só aparece como protagonista das obras de seu principal discípulo, Platão, ninguém sabe ao certo sua opinião. Uma corrente de historiadores e filósofos diz que Sócrates não curtia a democracia, baseado em um de suas principais premissas: o verdadeiro sábio é aquele que tem consciência de sua ignorância. E as massas (mesmo que a quantidade de cidadãos fosse pequena em Atenas) não possuem esse nível de consciência. Além disso, o filósofo era amigo de alguns dos oligarcas que compunham a "Tirania dos Trinta", um grupo que comandou Atenas em 404 a.C., após uma derrota para Esparta. Já os estudiosos que classificam Sócrates como um defensor da democracia citam um episódio, em que o filósofo protegeu um cidadão, perseguido pelos tiranos. Além disso, Sócrates literalmente morreu pela democracia.
Como o pai da filosofia morreu? Sócrates era tão radicalmente defensor do pensamento livre e democrático que aceitou até tomar veneno após ser condenado pelo tribunal de Atenas, explica Dainezi. Isso ocorreu no ano 399 a.C., quando, aos 71 anos, seus inimigos o acusaram de ateísmo e de corromper os jovens contra a filosofia. Como a Constituição proibia um cidadão ateniense de matar um conterrâneo, condenaram o pensador a cometer suicídio, bebendo uma taça de cicuta, veneno feito à base de uma planta de mesmo nome. O placar da votação foi apertado -- 281 contra 220. Sócrates precisaria ficar preso durante trinta dias, porque na época de seu julgamento havia uma celebração religiosa em homenagem ao deus Apolo, e execuções eram proibidas. Um grupo de alunos do pensador planejou uma fuga, mas o mestre não topou. Disse que não queria desobedecer às leis da pátria.
E como Sócrates acabou virando garoto-propaganda de movimentos antidemocráticos? O pai da filosofia não deixou nada escrito. Ele é citado na obra de seu principal discípulo, Platão (428 a.C - 348 a.C). Ao testemunhar a condenação do homem a quem julgava o mais sábio, o aluno ficou revoltado e rotulou a democracia como um governo injusto, liderado por ignorantes. Sócrates acaba protagonizando as obras de Platão -- entre elas, "A República". Nela, o mestre idealiza uma sociedade justa, chamada de Calípolis, que seria a "cidade ideal" ou "cidade verdadeira", reinada pelo homem mais "iluminado" do lugar -- para Platão, um filósofo, óbvio. Ele teria como assessores outros sábios renomados. O mais bizarro: não há nada privado na cidade ideal de Platão. Seu filho nasceu? Dê para o Estado educar. Os líderes decidiriam o futuro de cada criança, quem tem talento para guerreiro, sábio e até escravo. Ah, sim, e ninguém é de ninguém: o regime conjugal em vigor seria a poligamia.
E Aristóteles, por que é citado? Aristóteles (385 a.C - 323 a.C.), em sua obra "Política", define democracia como o governo de uma maioria que só pensa em si mesma, não visa o bem coletivo. "Sabe a máxima 'voto em Fulano porque rouba, mas faz' ou 'Cicrano deve governar porque me deu uma cesta básica'? Essa seria a ilustração aristotélica para esse tipo de regime", explica Dainezi. Aristóteles estudou a constituição de 52 cidades-estado gregas e identificou três principais formas de governo:
- Monarquia: governo de uma só pessoa. Na forma ideal, um rei que pensa em seu povo. Na degenerada, a tirania.
- Aristocracia: regime controlado por "poucos e bons", pela "nata da sociedade", que, bondosos, zelariam pelo bem de todos. Mas, na forma desvirtuada, torna-se oligarquia.
- Politeia: o governo da cidade, ou governo de muitos. E a deturpação dela seria a democracia ou demagogia. Aristóteles defendia a politeia, forma de República democrático-intelectual, em que o Estado visa sempre o bem comum e jamais tira vantagens.
E o que o Nietzsche tem a ver com isso? A democracia foi abandonada por séculos -- desde o Império Romano, passando pela Idade Média e as monarquias absolutistas, até o século 18 --, mas a palavra voltou à moda por significar "governo do povo", conceito elaborado pelo teórico suíço Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo muito popular durante a Revolução Francesa. Em pleno avanço desse pensamento republicano e democrata, o alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900) questionava tudo isso. "Nietzsche critica a democracia moderna, bem como o socialismo e comunismo de seu tempo", explica ao TAB Oswaldo Giacoia Junior, professor titular do Departamento de Filosofia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e da Casa do Saber.
Nietzsche gostava do quê? Se fosse possível rotular, Nietzsche estaria mais para anarquista do que para qualquer outro regime. Ele ia contra todos os tipos de leis, Estado, igreja, crenças, regras, enfim, tudo o que pudesse conter o "super homem", que seria o ser humano potente. Para ele, todo tipo de contenção era algo pensado por uma maioria medíocre. "Sob este prisma, a democracia faria parte de um projeto político que corresponde a uma vontade de poder anônima e coletiva, que gerencia um projeto global de uniformização e nivelamento da sociedade, sob a fórmula ideológica da igualdade de direitos", explica Giacoia. Para o professor, a crítica de Nietzsche à democracia deve ser vista no enquadramento mais amplo de sua crítica à modernidade cultural. "A identificação de seu pensamento com formas políticas totalitárias é resultado de um mal-entendido, que pode ser sofisticado ou grosseiro, e até mesmo de uma falsificação deliberada", explica Giacoia. Em tempo: para Dainezi, professor da Escola de Ética, nenhum desses quatro superfilósofos -- Nietzsche, nem Aristóteles, Platão ou Sócrates -- teriam existido e moldado seu pensamento se não fosse a democracia.
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