SC fecha centro para pessoas com deficiência; bares e praias estão abertos
A dor nas costas foi tão avassaladora que Elizabete Terezinha Sardagna, 60, perdeu a compostura: deitou de bruços na mesa da cozinha. O marido tentou levá-la para o banheiro e eles caíram. Foi preciso intervenção do neto, que carregou "Beta" para o sofá. Desde aquele dia de 2019, ela nunca mais andou.
A mãe de Enrico Gentil Lopes, 2, teve complicações no parto e o garoto nasceu com paralisia cerebral. O menino tinha consulta marcada para o final de fevereiro, quando ia tirar as medidas da cadeira de rodas. Vai ter que esperar a segunda onda da pandemia arrefecer em Santa Catarina. O CCR (Centro Catarinense de Reabilitação), onde ele e Elizabete faziam tratamento, foi fechado pelo governo do estado.
O que mais revolta familiares, pacientes e funcionários do centro são os critérios das autoridades catarinenses. Praia, bares, restaurantes e comércios estão abertos. Uma mãe pode levar o filho com paralisia cerebral ao shopping, mas não pode levar à reabilitação. A menos que tenha dinheiro.
O decreto, que suspendeu o serviço público, manteve as clínicas particulares abertas. Quem pode desembolsar entre R$ 120 e R$ 200 por sessão mantém o tratamento.
A situação é esta desde o final da tarde de 25 de fevereiro, uma sexta-feira. Nesta data, pacientes e familiares receberam mensagem por WhatsApp avisando sobre a interrupção imediata dos trabalhos do CCR. Estavam suspensos os tratamentos de adultos e crianças, para autistas e o fornecimento de próteses, órteses e cadeiras de rodas.
A preocupação é enorme, porque pessoas com danos no sistema nervoso — como vítimas de AVC — têm prazo de validade para a recuperação motora. A fisioterapeuta Daniela Ferreira Lamar explica que o sistema nervoso tem a capacidade de reorganizar os neurônios e circuitos neurais para uma área do cérebro suprir funções de outra área, a chamada neuroplasticidade. Mas agir rápido é essencial.
"Em crianças, os três primeiros anos são fundamentais; nos adultos, os dois primeiros anos. O foco é reabilitar o máximo de funções dentro do período inicial."
Desperdiçar a janela de oportunidade significa perda definitiva de qualidade de vida.
Caminhada interrompida
A Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina informou que interrompeu o serviço para deslocar os profissionais para o enfrentamento à covid-19. A assessoria de imprensa informou que o retorno dos atendimentos está marcado para o dia 31 de março. O prazo inicial era dia 15 de março, mas não foi respeitado. De adiamento em adiamento, o CCR ficou três meses fechado em 2020.
Mariana Botelho é médica fisiatra e conta que o centro atende pessoas que sofreram AVC, traumatismo craniano, lesões que comprometeram a medula e casos de paralisia cerebral, entre outros. Ela acrescenta que a instituição é uma das poucas em Santa Catarina a aplicar toxina botulínica, mais conhecida como botox. A substância tem uso medicinal que vai muito além de esconder rugas.
Elizabete tem Mal de Pott, uma infecção na coluna vertebral que a deixou paraplégica. A bexiga também parou de funcionar e o marido precisa passar uma sonda a cada quatro horas para evitar infecção urinária. Ocorre que Beta tem espasmos nas pernas, que precisavam ser amarradas nestas ocasiões. Ela conta que o marido chorava ao amarrar suas pernas.
O sofrimento acabou com a toxina botulínica. Mas o efeito dura entre quatro e seis meses — e reaplicações são rotina. A fisiatra Botelho cita outros prejuízos de autonomia e qualidade de vida causados pela falta da substância. Pessoas que sofrem espasmos nas mãos ficam impossibilitadas de comerem sozinhas.
Ela afirma que entende o risco causados pela pandemia, principalmente para os pacientes que dependem de transporte público. Mas ressalta que as sessões eram agendadas, a entrada era autorizada somente 10 minutos antes do horário e nenhum caso de transmissão de covid-19 foi registrado.
O descontentamento aumenta com a falta de iniciativa para aliviar os efeitos do fechamento. Desde março do ano passado, os profissionais do CCR sugerem criar um serviço por videochamada e não são ouvidos. Mariana reclama, ainda, que a ordem para interrupção imediata dos tratamentos a impediu de repassar orientações aos familiares.
A fisioterapeuta Daniela Lamar conta que houve inclusive proibição de prestar este serviço aos pacientes e familiares porque o vínculo dos profissionais com o CCR está suspenso. Mas ela admite que atendeu as pessoas que conseguiram seu telefone particular.
Elizabete sente na pele o fechamento do centro. Ela recebeu uma órtese em 5 de fevereiro e tinha voltado a ficar em pé. Batia recordes sucessivos. "Meu marido colocou uma barra de ferro na janela do nosso quarto e eu ficava em pé. Primeiro, eram 300 segundos, passou para 500 e agora estava em 700 segundos".
Se a sensação era de felicidade em casa, no CCR houve euforia. Acompanhada por fisioterapeutas, Elizabete foi para um corredor com corrimãos laterais e deu alguns passos. Eram lentos, vacilantes e cheios de esperança. "Eu chorei um monte. Tive a sensação de que posso voltar a caminhar".
O decreto suspendeu o tratamento, os recordes e a esperança.
Atendimentos têm mais valor
Luciana Ventura de Castro é chefe do setor de reabilitação pediátrica e conta que, somente em Florianópolis, havia 90 crianças na fila. O número de pessoas afetadas no estado é maior porque há cinco unidades do CCR em Santa Catarina, que também atende adultos portadores de deficiência e autistas.
A fila é grande porque, em 2020, o centro passou meses fechado por causa da pandemia. Mãe do menino Enrico, a advogada Marina Passos Salomon Gentil diz que para uma criança com paralisia cerebral os atendimentos têm importância maior. Seu filho faz acompanhamento com nutricionista. "Ele precisa de suplemento, porque tem dificuldade de engolir."
Uma criança com paralisia cerebral tem mais dificuldade em superar uma simples gripe. Engolir errado pode levar o alimento para o pulmão e causar pneumonia. E o nutricionista é apenas um serviço. Enrico saiu da UTI neonatal com dois meses e meio, e na outra semana estava no CCR.
"Teve fases em que ele precisava de fisioterapia duas vezes na semana, fono uma vez na semana, psicomotricidade na piscina uma vez na semana, psicomotricidade em grupo e atendimento com psicóloga. Fora uma consulta por mês com nutricionista e, de três em três meses, com a fisiatra, para avaliar estrutura muscular."
Tanta atenção permitiu a Enrico conseguir ficar sentado. Atividade corriqueira para uma mãe, passear com o filho no carrinho foi uma conquista na vida de Marina. Mas o tratamento que todos os pais gostariam de dar aos filhos foi interrompido sem data para ser retomado. A decisão foi na contramão da vontade de pacientes, familiares e funcionários do CCR.
"Uma sessão de fisioterapia de 40 minutos que meu filho perde é um prejuízo muito maior que de 40 minutos", lamenta Marina.
Antes de a matéria ser publicada, a assessoria de imprensa da Secretaria Estadual de Saúde foi procurada e se manifestou por meio de uma mensagem de sete linhas. Depois que a reportagem estava no ar, foi enviado novo e-mail, transcrito abaixo.
A Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina (SES) informa que o cancelamento de atendimento no Centro Catarinense de Reabilitação (CCR) é uma medida protetiva para pacientes vulneráveis neste que é considerado o momento mais crítico da pandemia.
Além disso, justamente para atender as demandas de enfrentamento à pandemia os profissionais da unidade foram realocados para o Hospital Nereu Ramos, referência em infectologia, buscando ampliar as equipes de atendimento.
Tão logo haja uma retração dos casos e normalização da condição sanitária, os atendimentos serão retomados dando todo suporte à reabilitação na CCR. Ressalta-se que as atividades do serviço de oxigenoterapia e ventilação domiciliar do Centro seguem inalteradas.
A SES destaca que o trabalho de enfrentamento da pandemia tem sido feito de maneira estruturada, de forma a regrar as atividades sociais e econômicas como o funcionamento de shoppings. É esta articulação que garantiu a Santa Catarina o reconhecimento de melhor gestão da pandemia no país em 2020, por órgãos independentes.
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