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Jovens trans enfrentam preconceito no esporte e temem não poder competir

A atleta Maria Joaquina Reikdal, 13 - Arquivo pessoal
A atleta Maria Joaquina Reikdal, 13 Imagem: Arquivo pessoal

Leandro Vieira

Colaboração para o TAB

02/05/2021 04h00Atualizada em 05/05/2021 18h24

Em 2017, a jovem atleta de patinação artística Maria Joaquina Reikdal teve uma decepção. Durante uma apresentação oficial da modalidade na categoria feminina, os organizadores do evento anunciaram o nome masculino com o qual a adolescente trans não se identificava, apesar dos pedidos da família e da psicóloga da jovem. "Ela chorou um monte. Sentimos que existia um preconceito grande já nesse primeiro momento", conta o pai da atleta, Gustavo Cavalcanti, 39.

Em 2019, após ficar em segundo lugar na competição nacional, o nome de Maria também não constava na lista de convocadas para o torneio sul-americano — normalmente, o vice garante vaga direta para o evento.

Os pais chegaram a entrar na Justiça e conseguiram garantir o direito de a atleta participar, mas a decisão só chegou no dia anterior à competição. Até deu tempo de a família atravessar os mais de 130 quilômetros que separam Curitiba, onde vivem, de Joinville, onde o torneio aconteceria. Cavalcanti, no entanto, alega que Maria Joaquina, então aos 11, não recebeu o agasalho da seleção, não tirou as fotos oficiais nem fez o reconhecimento de pista. Além disso, a ordem de apresentação teria sido mudada de última hora. "Nesse campeonato, achei que ela ia parar de competir, de treinar", diz o pai.

As versões sobre o ocorrido em 2017 divergem. Em nota, a CBHP (Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação) afirma que foi informada da situação de Maria na véspera da apresentação. Um atestado médico dizia que Maria passava por uma transição de gênero. A confederação diz ter seguido os protocolos, anunciando o nome que constava nos documentos. "Frisamos que nenhum atleta pode ser chamado por apelido, e sim pelo seu nome correto", afirmou a instituição. O pai, no entanto, afirma que o atestado chegou às mãos da Confederação com uma semana de antecedência, e defende que Maria poderia ter sido chamada por um nome artístico.

A CBHP afirmou, na mesma nota, que os pais da menina não entregaram documentação para o registro no torneio sul-americano, em 2019, e o nome social não era permitido então pela Confederação Sul-Americana de Patinação — havia um processo para mudança oficial de gênero de Maria em andamento, ainda não aceito. "Os responsáveis apenas repassaram a responsabilidade para os outros, usando o vitimismo para tentar taxar os dirigentes da Confederação de transfóbicos e preconceituosos, como desculpa para sensibilizar a opinião pública em favor da menor", diz a CBHP.

A chegada de Maria

Em 2016, quando Cavalcanti e o marido Cleber Reikdal adotaram Maria, junto com os irmãos Talhia e Carlos, eles chegaram a raspar os cabelos longos da jovem, ainda identificada como menino. Só após um mês, no qual ela tentou furar sozinha a própria orelha usando o brinco da irmã, entenderam que havia uma questão de gênero envolvida. Com a orientação de uma psicóloga, então, deram início ao processo de transição.

Maria Joaquina Reikdal, 13, posa com a família - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Maria Joaquina Reikdal, 13, posa com a família
Imagem: Arquivo pessoal

A atleta conta que, aos 6 anos, já gostava de vestir as roupas da irmã, mas no abrigo onde ficava antes da adoção teve que esconder que se sentia uma menina. "Fiz isso para que as pessoas não tivessem medo e não rissem de mim." No entanto, para os novos pais, ela contou logo de cara. "Falei para eles no primeiro mês. De início não entenderam, mas foram se acostumando."

Ainda jovem, ela espelha as incertezas que cercam os direitos de atletas trans no esporte, cujo caso mais conhecido no Brasil atualmente é o da jogadora de vôlei Tifanny Abreu, que tem sido alvo de projetos de lei na tentativa de impedir sua participação em modalidades femininas.

A participação de Maria em competições oficiais segue incerta. Para participar do próximo campeonato nacional, o comitê da modalidade está exigindo um exame mensal de nível de testosterona — para Cavalcanti, não deveria ser necessário. "Ela faz um tratamento com bloqueador puberal desde os 12 anos, que bloqueia a produção de testosterona."

De acordo com a CBHP, o World Skate, órgão mundial oficial para esportes de patins, definiu em 2019 as regras para atletas trans. A confederação diz que vem solicitando os documentos, exames e o prontuário de Maria Joaquina, mas os pais se negam a enviar a documentação completa. "Há duas semanas, a Defensoria Pública do Estado do Paraná conseguiu nos enviar alguns documentos sobre o tratamento da menor, os quais encontram-se em análise por profissionais médicos vinculados à CBHP, para analisar se houve ou não o preenchimento das condições impostas. Frisamos que os genitores se negam a cumprir a regra, e ainda difamam a CBHP sem qualquer prova", diz em nota a confederação.

Cavalcanti nega estar difamando a instituição, mas diz que "falta empatia" e que "gostam de dificultar" a participação de Maria. "A confederação tem o laudo desse tratamento. Acharia uma irresponsabilidade levar a Maria a um laboratório todo mês, em meio a uma pandemia, para provar algo que já se sabe."

Além das fronteiras

A adolescente americana Rebekah Bruesehof, 14, começou a praticar hóquei na grama quando tinha dez anos. Em sua página no Instagram, é possível encontrar fotos da garota ao lado das colegas de equipe ou conduzindo uma pequena bola com um enorme bastão. Ela ainda não sabe se pretende seguir carreira no esporte — segundo a mãe, seus interesses são muitos e incluem a escrita, as ciências, a matemática e o ativismo —, mas foi por meio do hóquei que fez algumas de suas melhores amigas. Agora, no entanto, essa possibilidade pode estar com os dias contados.

Embora tenha sido aprovada recentemente para jogar no time feminino de sua nova escola no estado de Nova Jersey, a conquista parece ameaçada por uma onda que vem se alastrando pelos estados americanos. No momento, 34 deles estão discutindo legislações que, na prática, impediriam garotas trans de jogar em equipes femininas na escola. Cinco já baniram sua participação.

"Esse debate é estressante para minha filha e toda a nossa família", afirma a mãe Jamie Bruesehoff, 38, em entrevista ao TAB. "Nos preocupamos com a possibilidade de isso impactar como ela vai ser tratada. Agora ela fica nervosa de jogar com outras pessoas. Mais do que o impacto que isso vai ter em sua oportunidade de jogar hóquei, a parte mais difícil é que essa discussão questiona se ela é menina o suficiente para realmente pertencer a algum lugar. Todos os dias, pessoas estão debatendo sua identidade."

De acordo com Jamie, esse tipo de exclusão afeta todas as crianças transgêneras do país. Envia, além disso, a mensagem de que a sociedade não acredita que elas sejam quem dizem ser, o que pode causar sérios danos à sua saúde mental a longo prazo. "As pessoas precisam entender que crianças trans são só crianças. Elas querem ir à escola, praticar esportes e sair com os amigos como todo mundo. Não são uma ameaça."

Uma boa hipótese

Aquilo em que especialistas concordam é que ainda faltam estudos que definam com precisão se existe e qual seria a vantagem para mulheres trans no esporte. "Existe uma carência infinita de trabalhos sobre o tema. Com isso, o que se gera é sempre um ruído, e toda decisão tomada em cima de ruído pode ter erro", afirma o médico do esporte Roberto Teixeira Nahon.

O que alega muita gente crítica à participação de mulheres trans no esporte, especialmente as que fizeram a transição já adultas, é que elas teriam uma vantagem acumulada durante anos produzindo testosterona elevada, que teriam causado modificações importantes em seus corpos — e, portanto, uma vantagem na comparação com mulheres que sempre tiveram uma concentração menor do hormônio. Na falta de estudos contundentes sobre o assunto, essa é uma "boa hipótese", mas não passa muito disso, segundo Nahon, que é diretor de relações comerciais da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte.

Para a especialista em direitos humanos e das mulheres Mônica Sapucaia, a partir do momento em que o Brasil autoriza que pessoas se identifiquem com um gênero diferente daquele com o qual nasceram, e elas cumprem os parâmetros requeridos por instituições esportivas como o Comitê Olímpico Internacional, não há motivo para tentar suspender sua participação no esporte.

8 ou 80

"Qual é o debate? O estabelecimento de um padrão para determinar a partir de que ponto pode haver uma vantagem", explica a advogada. Portanto, no esporte profissional, que é de alto nível, as pesquisas devem estabelecer marcos para que os parâmetros exigidos sejam claros e objetivos. O que não teria ocorrido no caso da jovem patinadora. "Se você vai criando a bel prazer, essas decisões arbitrárias caem por terra. Provavelmente foi isso que aconteceu com a Maria Joaquina."

De acordo com a especialista, dentro dessa discussão, as coisas não são 8 ou 80. Tanto a jogadora de vôlei Tifanny tem direito de jogar quanto o debate sobre seu nível de competitividade segue relevante. Mas atualmente, diz Sapucaia, entre as mulheres trans permanecerem excluídas ou terem uma leve vantagem potencial no esporte, o ideal seria sempre tomar o caminho mais humano. "Ou começamos a discutir esses parâmetros claros, fáceis, acessíveis e não preconceituosos ou corremos o risco de iniciar uma guerra, oprimindo ainda mais uma população que já é bastante vulnerável."

Errata: este conteúdo foi atualizado
O texto foi atualizado para dar espaço à Confederação Brasileira de Hóquei e Patinação, em resposta aos dois fatos ocorridos com a atleta Maria Joaquina Reikdal.