Na pandemia, famílias de crianças autistas enfrentam desafios com EAD
No meio da tarde de uma terça-feira, Katia Piveta encaixa o fone de ouvido em cima da cabeça e liga a câmera do computador. Vinte alunos estão à espera da professora — alguns também com a câmera ligada, mas poucos com o microfone. Katia avisa a todos que aquele dia era um dia de cantar. A atividade do sétimo ano do Colégio Educar de Guarulhos, na Grande São Paulo, era um desafio musical.
Arthur, 12, pede para pegar o violão para cantar a sua música, "Amigo Estou Aqui", da animação "Toy Story". Enquanto ele se apresenta, a professora e outros colegas dançam na sala virtual e ligam os microfones para aplaudir quando ele termina. O violão nas mãos de Arthur foi uma surpresa para a Katia, já que não era parte da lição. "Isso acontece na maioria das aulas, tem coisas que nós não prevemos", comenta, no dia seguinte, em entrevista por telefone ao TAB.
Preparar aulas de forma remota não foi muito diferente de preparar aulas presenciais, diz a professora. O maior desafio foi lidar com o emocional abalado das crianças por causa da pandemia. Assim como os adultos, elas também sentiram o impacto da nova realidade, e muitas tiveram dificuldade para se adaptar ao ensino a distância. Mas, com Arthur, aconteceu o contrário. Ele evoluiu e se desenvolveu melhor podendo aprender do ambiente familiar. Além do desenvolvimento, outro diferencial de Arthur frente ao resto de sua turma é que ele é um aluno autista. Sua maior dificuldade não é intelectual, mas na fala.
"A maturidade dele é diferente e a fala dele era muito infantilizada", relata Ana Paula Freitas, mãe de Arthur. Sua forma de se comunicar era parecida com a de seu irmão, Davi, de 5 anos. No último ano escolar, tanto Ana Paula quanto a professora Katia notaram uma melhora. O interesse do menino pela escola remota também surpreendeu sua mãe. "No começo, achei que seria bem difícil ele querer fazer as aulas, eu tinha que acompanhar bastante, ficava em cima dele", conta. A maior dificuldade inicial era fazê-lo prestar atenção na tela. Apesar de gostar muito de telas, Arthur não conseguia se concentrar. Agitado, sua maior paixão é a mesma de muitos brasileiros: o futebol.
No YouTube, com ajuda de Ana Paula, Arthur criou um canal para falar sobre futebol. Seu sonho é ser jogador. Ana Paula incentiva o sonho do filho. Antes da pandemia, Arthur praticava o esporte no CEU de Guarulhos de manhã e ia para a escola à tarde. Com a nova realidade desenhada, a mãe passou a levar os filhos a uma praça perto de casa para correr e gastar energia.
A teoria de Katia é de que Arthur se sentiu mais à vontade no ensino virtual por estar num ambiente fisicamente confortável, em casa. "Na sala de aula, a atenção é dividida entre muitos, e ele tem a impressão de que em casa é uma aula mais personalizada", teoriza a professora. A atenção diferenciada para cada aluno, especialmente os autistas, é uma de suas preocupações. Experiente com alunos autistas, Katia foi quem introduziu a disciplina de projeto de vida e educação emocional na escola, em 2018.
A matéria é oferecida para todos os alunos, desde os pequenos até os adolescentes do ensino médio. É uma das favoritas de Juliana, 17. Estudante do segundo ano do ensino médio, ela também se adaptou bem ao modelo EAD. Filosofia, geografia e química também são disciplinas em que ela se dá bem. A mãe de Juliana, Claudia Brunetti, não tem dor de cabeça com as notas da filha. "Ela tira por mérito", conta, orgulhosa. O principal motivo da boa adaptação às aulas online é a possibilidade de se comunicar por texto.
Escrever e inventar histórias é uma de suas paixões. Juliana tem facilidade com idiomas. Além de português, entende bem o inglês e o japonês, por causa dos animes que gosta de assistir. A rotina de Juliana é muito regrada: "Acordo cedo, tenho a escola, faço lição de casa, almoço e brinco", lista, em videoconferência com a reportagem de TAB. Vaidosa, arrumou o cabelo para dar entrevista.
A rotina regrada é um dos principais cuidados com crianças autistas. Qualquer alteração nos horários ou nas atividades pode gerar estresse — e, consequentemente, uma crise. "Eles têm um desconforto muito grande com a quebra de rotina", explica Wânia Emerique Burmestes, pedagoga e mestre em psicologia da educação. "Se você está em um carro com um austista e o carro está em movimento, quando ele para, é difícil de assimilar essa informação, porque está fora do padrão", completa. O mesmo pode acontecer com o ensino remoto, já que a casa nunca foi lugar de aprender. A adaptação demanda tempo e dedicação da família.
"O que seria uma birra comum para uma criança, para um autista pode ser uma crise", diz Rafael Sallet, pai de Miguel, também uma criança autista. "Acham que a gente não sabe educar, mas não sabem a demanda de uma criança com autismo", frisa. A jornada escolar de Miguel tem sido um pouco mais sofrida do que a de Arthur. No final do ano passado, Rafael precisou entrar na Justiça para que o filho de 8 anos pudesse repetir de ano. 2020 não existiu na vida escolar de Miguel, diz o pai. Ele não frequentou a primeira série.
Assim como Arthur, Miguel tem dificuldade na linguagem. Por telefone, é difícil compreender o que ele diz quando o garoto pede para falar com a reportagem de TAB. "Ele fala poucas palavras, não consegue formar frases e nem tudo ele entende, mas coisas básicas ele compreende", explica o pai. Mesmo com dificuldade na fala, Miguel se mostrou muito comunicativo e curioso para conversar ao telefone. Diz que gosta da cor azul. Durante a entrevista, Rafael conta que ele não parou de demandar atenção do pai.
Miguel passou por várias escolas. Numa delas, teve um tutor individual e material adaptado, por isso, conseguiu aprender as letras do alfabeto, números e a escrever seu nome.
Com a crise econômica, os pais de Miguel resolveram colocá-lo em uma escola municipal em Curitiba (PR), onde moram. Lá, o menino encontrou melhores condições do que nas escolas privadas. O colégio tem um departamento de inclusão e uma política também de inclusão estabelecida por lei. O maior problema enfrentado por uma criança autista no cotidiano da escola, diz Rafael, é na socialização. Apesar de se dar bem com os colegas, muitas vezes é rejeitado por alguns. "As crianças nessa idade já têm determinadas regras sociais que ele não consegue entender. Miguel chega perto e os outros se afastam, mas ele não percebe", lamenta. "Quem sofre são os pais, dói na gente ver que os colegas não querem a presença dele."
O isolamento que a pandemia trouxe já era uma realidade na vida de muitas famílias com crianças autistas. "O Miguel tem uma desregulação sensorial que se manifesta como uma birra. Ele se joga, grita e ri nos momentos errados", explica Rafael. "São comportamentos que não seriam adequados socialmente, e que muitos autistas apresentam, por isso, muitas vezes, as famílias se sentem constrangidas e se isolam."
Mesmo sendo psicólogo de formação, foi difícil aceitar a realidade do filho. "Em casa de ferreiro, espeto é de pau, né?", brinca. "A gente sabe o que é, conhece as características, os sintomas, mas preferimos acreditar que era só uma fase. Não tem profissão, conhecimento, nada que ajude. Pai e mãe não querem acreditar quando o filho é diagnosticado como autista, parece que é uma coisa terrível."
Prestes a ser pai pela segunda vez, Rafael sonha com o dia em que Miguel será um adulto com autonomia. Por isso, estimula que ele faça as coisas sozinho e investe no atendimento necessário. Miguel tem uma agenda cheia: faz fonoaudiologia, acompanhamento com uma neuropediatra, uma psicopedagoga, uma psicóloga, faz terapia ocupacional e musicoterapia. Os custos são pagos por Rafael. "A gente procurou atendimento pelo SUS, mas a fila é gigantesca", reclama. O tratamento para uma criança autista deve ser intensivo. No único ambulatório da cidade que o oferece, o atendimento era de uma vez por semana, por meia hora. "Apertamos as contas e pagamos um plano de saúde."
As atividades que preenchem a rotina de Miguel são as que fazem parte de seu tratamento. A escola, por enquanto, está em segundo plano. O programa de aulas era composto por vídeos prontos, postados no YouTube, sem interação com os professores ou os colegas. O que já é difícil para uma criança sem TEA, ficou impossível para o Miguel. Os pais tentaram fazê-lo assistir pelo celular, por um tablet, tentaram eles mesmo assistir e depois ensinar ao filho, mas esse tipo de ensino está fora da realidade de Miguel. "Esse modelo é uma fantasia para uma criança com autismo", diz Rafael.
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