'É um povo muito transante': empreendedora cria sex shop para pessoas cegas
Há três anos, fazia calor na praia onde Thaís Coutinho passava o fim de semana. Ela olhava para o horizonte quando notou uma mancha de sangue no céu azul. Perguntou aos amigos se havia alguma coisa em seu olho, uma sujeira ou algo do tipo. Nada. Quando voltou a São Paulo, ficou preocupada. Foi ao hospital e disse que estava enxergando tudo meio embaçado, havia alguns dias. Na semana anterior, sentiu uma dor de cabeça insuportável. E, agora, via aquela mancha de sangue para onde quer que olhasse.
Precisou dilatar a vista. Enquanto esperava o resultado dos exames, passeou pelo shopping mais próximo e escolheu um presente para uma amiga que comemoraria o aniversário naquela noite. Era sexta-feira. Na volta, a cara do médico já deu pista de que alguma coisa não estava certa. Seu problema, que parecia grave, realmente era. Aos 28 anos, Thaís teve um AVC hemorrágico.
"Você vai ficar cega", sentenciou o médico. "Não tem o que fazer, você tem que se preparar", disse o oftalmologista. Por três horas, a jovem ficou sentada na porta do hospital, incrédula. Não sabia muito bem o que fazer, nem viu o tempo passar. Acordou de seu choque com o celular tocando.
Voltou para casa sozinha, arrumou-se e saiu para comemorar o aniversário da amiga. Em quatro meses, a previsão do médico se concretizou: Thaís foi perdendo a visão. Hoje aos 31, já a perdeu totalmente. No próximo dia 21, sexta-feira, completa exatamente três anos de cegueira. Por causa da pandemia, Thaís não poderá dar a festa "de aniversário" que gostaria. "Queria convidar todos os meus amigos cegos e meu ex-namorado gogo boy", conta, rindo.
A celebração de hoje seria muito diferente daquela que ela deu quando recebeu o diagnóstico — sim, ela conta ter torrado "todo o dinheiro numa noite só". "Foi uma despedida", relembra. "Joguei todas as minhas coisas fora, roupas, tudo. Tinha a sensação de que ia morrer."
Thaís quis aproveitar o máximo da vida. Viajou todos os finais de semana, terminou um relacionamento morno, deu uma festança e engatou um romance com um gogoboy. "Vivi um sonho maravilhoso", recorda. Mesmo por telefone, percebo por sua voz que ela sorri. Thaís gostava de exibir o namorado gostoso pelas baladas que sempre adorou frequentar. Foi com ele que conheceu o mundo do swing e deixou aflorar sua sexualidade. Na época, ela estava com baixa visão.
A festança e a vida de regalias aconteceu pouco antes de uma cirurgia para tentar conter a hemorragia causada pelo AVC. A ideia era inserir uma lente que pudesse fazer a função de sua retina, que havia sofrido um descolamento durante o acidente — causando a cegueira. A operação, supostamente, era simples, deveria durar uma hora. Mas Thaís ficou cinco horas no centro cirúrgico, onde teve mais três AVCs. "A médica não conseguia conter a hemorragia do meu olho, fiquei muito traumatizada", diz. Por quatro dias, ela não abriu a boca, não conseguia conversar sobre o que aconteceu. "A partir dali, virei deficiente visual."
Por nove meses, ela se dedicou à sua reabilitação. O período de uma gestação foi uma meta pessoal, Thaís queria criar uma nova vida para si, renascer. Ela frequentou o instituto Laramara, na Barra Funda, que promove reabilitação para pessoas com deficiência visual. "É a USP dos cegos", brinca Thaís. "A gente fala que ceguinho playboy estuda no Laramara", ri. Foi ali que ela aprendeu que sua deficiência era apenas uma limitação, não um problema. Ali, aprendeu realmente a viver como uma pessoa com deficiência visual. "A 'cegolândia' é muito legal", garante.
Sem modéstia, Thaís conta que aprendeu rápido. Teve ajuda de um amigo argentino que a ensinou a andar de bengala, de metrô, de ônibus e ir à balada. "Me ensinou tudo sobre a vida de uma pessoa cega com autonomia", conta. Depois da reabilitação, a vida teve que "voltar ao normal".
Antes de ficar cega, ela trabalhava com contabilidade, era gerente de um centro automotivo. Depois, se aposentou. Hoje, vive do auxílio BPC (Benefício de Prestação Continuada), um direito das pessoas com deficiência. O ócio, no entanto, a deixava incomodada. "Vou fazer o quê agora?", questionava-se.
Blind is sexy
Fora do horário de bater ponto, tudo na vida de Thaís era motivo para festa. Até seu divórcio virou uma celebração, foi com as amigas ao Clube das Mulheres, uma casa de shows eróticos voltada para o público feminino. "Quem se divorcia quer passar o rodo, né?" brinca. "Quando eu descobri que ia ficar cega, aí piorou", conta. Voltar à ativa romântica e sexualmente como pessoa com deficiência, no entanto, foi um desafio, mas que abriu caminho para uma nova perspectiva profissional.
Hoje, Thaís é empresária e dona de uma sex shop online focada no público cego, a Blind Sexy. Entre as clientes, ela é conhecida como Dona Blind. "Percebi que as minhas amigas cegas nunca tiveram oportunidade de explorar a sexualidade, elas ficam loucas de me ouvir contar minhas experiências", diz Thaís, que adora conversar e contar histórias. A loja é uma tentativa de ajudar as pessoas com deficiência a curtirem mais o sexo. "É um tabu, todo mundo acha que pessoas com deficiência são assexuadas. E tudo começa dentro de casa. Já é difícil falar de sexo com uma adolescente, cega ainda pior. Tem muito a questão da vulnerabilidade, acham que a menina cega pode ser abusada, a família poda muito."
De fato, Thaís se sentiu mais vulnerável depois de ficar cega, e sua família, mais preocupada. Sua confiança ficou muito abalada, diz. "A pessoa pode achar que pode fazer qualquer coisa comigo só porque eu sou cega", lamenta. Ela, que sempre gostou de usar mini saia, vestido e salto alto, hoje não se sente mais à vontade. "Me sinto mais vulnerável a sofrer violência", confessa.
Entrar em um motel sendo uma pessoa cega é outro constrangimento, diz Thaís, especialmente com um homem "vidente" (que não é cego). "Eles não sabem lidar com uma mulher cega, ficam com medo. No motel, enquanto estou transando, sou uma mulher comum, mas quando eu me levanto, parece que sou outra pessoa, eles querem me ajudar com tudo", diz. "Isso quebra o clima." Por isso, ultimamente Thaís só se relaciona com outras pessoas cegas. "É um povo muito transante", brinca. Na "cegolândia", todo o mundo se conhece. "Vai rolando um troca-troca."
Transar de novo, mesmo com outra pessoa cega, foi como perder a virgindade. Seu primeiro namorado cego teve uma paciência de Jó, diz ela. "A gente começou a namorar e eu tentava escapar de transar, chorava sempre. Mas quando rolou, foi muito bom", conta. "O sexo do cego é extremamente sensorial. Você não vê, então o importante é o toque, o cheiro, o gemido, a pegada." Thaís sentiu que o sexo ficou ainda mais gostoso depois de cega. "Tenho que me excitar com outras coisas, me atentar ao calor do corpo."
Foi por causa deste novo relacionamento que Thaís pensou em criar a Blind Sexy. Ela queria comprar uma fantasia sexy para agradar o namorado. Procurou em várias lojas por Diadema, onde mora, mas não achou seu tamanho. Foi constrangida por algumas vendedoras por causa de sua deficiência e também de seu peso. "Engordei depois que fiquei cega, meu corpo não é mais aquele bonitinho. Isso acontece com muitas meninas cegas, muitas são mais 'cheinhas'", conta.
Tentou buscar pela internet para evitar transtornos, mas se deparou com uma realidade desagradável: a maioria dos sites não tem ferramentas de acessibilidade adequadas. Sem a descrição exata do produto, ela não tinha como comprar o que buscava. Decidiu ir até uma loja no Brás, no centro de São Paulo. Saiu de lá carregada. "Ninguém no metrô podia imaginar que aquela mulher cega estava andando com um monte de pinto na sacola", conta, dando risada. O monte de vibradores e dildos que ela comprou, decidiu revender entre os amigos cegos.
O negócio fez sucesso. Thaís arrumou dois fornecedores, um em São Paulo e outro em Belo Horizonte, que entenderam suas necessidades e descrevem os produtos exatamente como são para ela por telefone. "Faço perguntas que ninguém nunca faz." Com o fornecedor de São Paulo, ela consegue visitar e sentir os produtos em sua mão. No Sebrae, fez um curso de empreendedorismo para mulheres, quer crescer ainda mais o negócio.
Vem de zap
No início, ela fazia visitas até a casa das clientes para que elas pudessem tocar os produtos e ter certeza de como eles eram. "Pegava uma sacola colorida, uma mala de viagem e fazia um 'chá de mulheres'", conta. Thaís também fazia entregas nas estações de metrô, que ela considera muito acessível para pessoas cegas. Na pandemia, passou a mandar os produtos pelo correio. "Meu volume de vendas caiu, não é todo mundo que quer pagar frete", lamenta.
Thaís trabalha com os preços mais acessíveis possíveis, já que muitos deficientes visuais vivem apenas do BPC. Outro ponto que a pandemia afetou a vida das pessoas cegas é com relação ao toque. Para se prevenir da contaminação por coronavírus, não é recomendado tocar superfícies. "A gente enxerga com as pontas dos dedos, tudo a gente precisa tocar", salienta.
O catálogo de produtos é disparado pelo WhatsApp pela própria Thaís em uma lista de transmissão. "Toda mulher adora batom!", escreve em uma das mensagens. "Confeccionado em plástico rígido em formato de batom e com uma vibração confortável, este estimulador pode ser utilizado a sós ou com aquele parceiro que ama o seu jeito de ser uma mulher sexy", descreve. O produto é um vibrador em formato de batom, que faz muito sucesso. No site da loja, há fotos que sua cunhada ajuda a tirar, além das descrições completas e os preços.
Toda sexta-feira, a empreendedora dispara na lista contos e áudios eróticos para divertir a clientela. "Estou gostando muito dessa história!", comemora.
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