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Novidade no Brasil, pornô com acessibilidade mexe com libido do público

Cena do filme "Sugar Daddy", que ganha adaptação com áudios e legendas descritivas no Sexy Hot - Divulgação
Cena do filme 'Sugar Daddy', que ganha adaptação com áudios e legendas descritivas no Sexy Hot Imagem: Divulgação

Leonardo Filipo

Colaboração para o TAB, do Rio

01/09/2020 04h00

Cego de nascença, Leandro Baptista, de 30 anos, "assistia" a filmes pornôs na adolescência. Pelos sons dos gemidos e do atrito dos corpos ele conseguia imaginar o que acontecia. No último mês, o músico do Rio de Janeiro recordou o passado de um jeito inédito no Brasil: ele fez parte de um grupo de deficientes visuais que avaliou os primeiros filmes pornôs lançados no país com audiodescrição — recurso que descreve as cenas para quem não enxerga ou enxerga pouco. A iniciativa é do canal Sexy Hot, que também oferece legendas para deficientes auditivos. A partir de "Desejo proibido" e "Sugar Daddy", os filmes produzidos pelo canal vão contar com esses dois tipos de acessibilidade.

"Ficou bem feito, a fala não ficou em cima da dos personagens. Senti falta de saber a posição do casal na hora da penetração. Mas deu pra curtir e pra me empolgar. Ainda bem que tenho a minha esposa aqui. Porque depois de assistir ao filme?", Baptista deixa no ar, em conversa com o TAB.

Sua esposa, Diana Flecha (26), não quis assistir ao filme. Mas aprovou o resultado: "Preferi saber a reação dele, como ele ia me pegar depois do filme. E a reação foi bem boa", disse a locutora, cega em decorrência de um glaucoma.

De acordo com a Ancine (Agência Nacional de Cinema), apenas 10% das cerca de 3.300 salas no Brasil oferecem acesso a deficientes visuais e auditivos — muito distante do que é proposto pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. Há uma determinação para chegar aos 100% de salas até 2021, algo improvável, principalmente por causa da pandemia de Covid-19.

Criada em 1975 nos Estados Unidos, a audiodescrição só chegou ao Brasil em 2003 e cobre apenas oito horas semanais nas emissoras de televisão, com escassas opções em serviços de streaming. No gênero pornô, o pioneirismo mundial em acessibilidade é do site Pornhub, a partir de 2016.

"Beijo na boca"

Segundo o Censo mais recente do IBGE, de 2010, o Brasil tem 7 milhões de deficientes visuais e 2,3 milhões de deficientes auditivos. Um vasto mercado a ser explorado que chamou a atenção de Joana Peregrino, diretora da Conecta, produtora especializada em acessibilidade em audiovisual. "Por que cego não vai querer ver filme pornô? Posso tornar qualquer tipo de gênero acessível. A questão do pioneirismo também foi importante" disse ao TAB.

Peregrino levou a proposta para o Sexy Hot, que topou investir em acessibilidade quando Cinthia Fajardo tornou-se a primeira mulher a assumir a direção do canal. "Uma pesquisa que fizemos apontou que um terço da população brasileira assiste a conteúdo pornô com frequência. A partir daí, quisemos ampliar nosso leque de consumidores, incluindo pessoas com deficiência auditiva e visual. Pela responsabilidade social queremos ser inclusivos e trabalhar a diversidade", explica Farjado.

Encontrar um narrador de audiodescrição que topasse fazer filme pornô não foi fácil, mas a atriz Virgínia Barcellos (43) não teve pudores. Ela topou a missão ao lado do consultor Felipe Monteiro, a quem conheceu no festival de acessibilidade audiovisual VerOuvindo, no Recife.

O trabalho é assim: ela descreve as cenas num roteiro, ele avalia se o conteúdo ajuda a formar imagens, sugere mudanças e devolve para ela gravar num estúdio no Rio de Janeiro. O áudio é mixado no filme e o consultor dá o último OK. Com experiência em audiodescrição de filmes, séries e desfiles de escola de samba, Barcellos se deparou com um universo de cenas recorrentes e vocabulário restrito. "É um trabalho de muita responsabilidade. Tem que ter cuidado para não ser repetitivo. No Brasil, só tem "punheta" e "masturbação", por exemplo. Por incrível que pareça, o que mais falo é "beijo na boca". E com carinho. Narrar uma cena de cinco caras fazendo sexo com uma mulher é um baita desafio. Tenho que ficar em equilíbrio entre falar o que acontece na cena, dar um tempo pra pessoa ouvir o som ambiente e, ao mesmo tempo, descrever sem ser sensual, já que eu não sou atriz do filme", resume.

Ela senta no pau dele. Ele faz carinho no corpo dela com as duas mãos. Ela cavalga. Desce com força. Ela com a bunda empinada apoia as mãos no peito dele. A mulher rebola. (som de gemidos). A mulher apoia nas pernas dele por trás e senta com força. Senta devagar. Eles trocam olhares. Se beijam. Colam os corpos. A mulher acelera. O homem levanta e abaixa o quadril. Ela aperta o lençol azul marinho. ("Vou gozar", avisa o homem). Desaceleram até parar. O homem abraça. A mulher está por cima dele com as pernas abertas. Trocam olhares, a mulher sorri. Se beijam novamente.
Trecho da audiodescrição do filme "Sugar Daddy"

O direito ao tesão

O consultor Felipe Monteiro, 42 anos, assistia a filmes pornôs com mais frequência antes de uma meningite lhe deixar com apenas 10% da visão, já adulto. Especializou-se em audiodescrição e se aprofundou no campo erótico ao apresentar um trabalho no festival VerOuvindo, onde descrevia uma cena do filme brasileiro "História da Eternidade" (2014), na qual uma idosa folheia uma revista pornô em um casebre nordestino. Tornou-se uma pessoa talhada para ajudar a construir esse tipo de imagem. Monteiro acredita que é preciso trabalhar a acessibilidade na pré-produção dos filmes e também na diversidade — ele é gay, e sente falta de filmes do gênero com esse recurso. Seus amigos fazem piada ao acharem que ele participa dos sets de filmagem. "Não é só pela excitação, mas para entender esse universo. A gente luta pra que a acessibilidade seja pensada na pré-produção. Para que os personagens tenham nome, por exemplo. Em um filme, tivemos que chamá-los de 'Mascarado 1' e 'Mascarado 2'", relembra.

Diante do pioneirismo desse tipo de trabalho no Brasil, antes do lançamento recente, a Conecta convocou 15 deficientes visuais para avaliarem os dois primeiros filmes. Além do casal Luciano e Diana, o TAB procurou outros três. A atriz baiana Iracema Vilaronga (41), percebeu que, sem a audiodescrição, perdia mais do que imaginava dos filmes pornôs. Ela espera que acessibilidade no gênero ajude a derrubar um velho tabu social. Sobre a exibição, sentiu falta de uma narração e vocabulário mais picantes, mas gostou tanto que espera o fim da pandemia do coronavírus para rever os filmes acompanhada.

"Quero chamar alguém pra ver comigo, com ou sem deficiência. Mas só depois que a pandemia passar. O filme com o recurso fez muita diferença, me excitou. Tem esse mito de que a pessoa com deficiência é assexuada, é santificada. Temos todos os sentimentos, raiva, prazer. A gente só não enxerga" conta Vilaronga, nascida com retinose pigmentar, que lhe tirou a visão a partir dos 5 anos de idade.

Já o audiodescritor gaúcho, Rafael Silva (41) voltou a assistir a um filme pornô depois de muitos anos. Para ele, o recurso deu um colorido às cenas que ele imaginava depois que um processo degenerativo o deixou com baixa visão na adolescência. O recurso também ajudou a professora de português Cláudia Rodrigues (32) a perceber algo que a incomoda nos filmes pornôs: "A audiodescrição ficou adequada e mexeu comigo. Mas, se antes eu já percebia a falta de naturalidade das cenas, agora me incomodou a venda de uma performance e de corpos perfeitos que se afastam da realidade. Tenho alunos que assistem a esses filmes e creio que eles vão se cobrar muito na primeira experiência sexual deles", opinou a também estudante de psicologia, que perdeu a visão totalmente aos 13 anos devido ao glaucoma.