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'A gente não gourmetiza': Ceilândia Muita Treta cobre caso Lázaro 'na raça'

Os integrantes do Ceilândia Muita Treta acompanham as investigações do caso Lázaro Barboza - Reprodução/ Twitter
Os integrantes do Ceilândia Muita Treta acompanham as investigações do caso Lázaro Barboza Imagem: Reprodução/ Twitter

Manuel Marçal

Colaboração para o TAB, de Belo Horizonte

19/06/2021 04h00

Michael Israel Barbosa da Silva, 35, não vê a hora de poder voltar a usar óculos thug life (igual do meme) para poder voltar a ser o Repórter Muita Treta. O personagem criado pelo humorista não vai entrar em cena enquanto não forem encerradas as buscas por Lázaro Barbosa, assassino foragido há dez dias e que mobiliza mais de 200 policiais de Goiás e do Distrito Federal.

Quem conhece a página de humor Ceilândia Muita Treta (CMT) — antes do caso Lázaro — estava acostumado a ver ocorrências policiais e outros fatos da cidade serem reportados com pitadas de humor e deboche. Mas isso mudou. Até mesmo quadros de maior audiência da página, como "Treta da Semana" e o "Treta Espetacular" (sobre esporte), foram deixados de lado nos últimos dias.

Isso porque aquilo que se iniciou como os primeiros relatos dos voos rasantes de helicópteros em Ceilândia na semana passada se tornou algo de proporção ainda maior. Eram as forças de segurança pública atrás de Lázaro.

Frente à enxurrada de boatos que circulam na internet e preocupados, os idealizadores da página sentiram a necessidade de dar informações mais apuradas sobre o caso. Estranhavam também, até aquele momento, a pouca cobertura do assunto por grandes veículos de imprensa.

Foi de Naldo Lopes, 34, humorista e o mais agitado do grupo, a ideia de iniciar - ainda que no improviso - a incursão da trupe em direção aos fatos. Tudo de forma amadora e com um único compromisso: não fazer graça do assunto. E desde segunda-feira (14) iniciaram a cobertura presencial nos locais onde estão as bases da polícia.

Os integrantes do Ceilândia Muita Treta acompanham as investigações do caso Lázaro Barboza - Reprodução/ Twitter - Reprodução/ Twitter
Os integrantes do Ceilândia Muita Treta acompanham as investigações do caso Lázaro Barboza
Imagem: Reprodução/ Twitter

"Ceilândia é a nossa quebrada"

No estilo 'Profissão Repórter' da TV Globo às avessas, eles possuem maneira própria de narrarem os fatos. Algumas expressões o público já conhece: 'ventiladores' é o mesmo que helicópteros. "Damos a notícia do nosso jeito. A gente não 'gourmetiza'. Nossos textos são como o linguajar do ceilandense", afirma Michael. "Mas sem fake news!" arremata em tom incisivo. "A gente averigua bastante antes de publicar qualquer coisa, temos um trabalho minucioso", pontua, soletrando em tom enfático a última palavra. "Levamos a cobertura do caso a sério, e a imprensa local e nacional tem reconhecido a credibilidade do nosso trabalho".

A 'equipe de reportagem' tem funções específicas. Luiz David porta uma câmera de mão e registra tudo para o documentário que estão produzindo. Reni, que se uniu ao grupo para somar esforços na missão jornalística, faz o papel do 'apurador'. Naldo e Michael fazem 'apuração' e 'reportagem'. Mas ao longo dos dias isso foi se misturando, e quem tinha internet e bateria fazia as lives.

Todos trajam boné aba reta; alguns, colar e pulseira de metal. De cores diferentes, cada um tem sua própria camisa do Ceilândia Muita Treta. A identificação ajuda, causa simpatia e graça entre policiais e moradores que conhecem a página. Volta e meia acabam sendo flagrados por alguma câmera da TV aberta.

Resgate das Vítimas ontem pic.twitter.com/nX5VFOxPYF

-- Ceilândia MuitaTreta (@ceimuitatreta) June 16, 2021

Enquanto houver 4G e combustível

Naldo sempre puxa as gravações quando os fatos esquentam: "Furo, furo! Bora, bora!", faz gestos com a mão convocando o parceiro, que às vezes, é pego desprevenido. O enquadramento, bom, vai do jeito que dá. Em alguns registros, Michael aparece ainda de boca cheia terminando de mastigar. Em outros, ainda está com comida agarrada no aparelho.

Os dois ancoram um ao outro. A expressão circunspecta de Naldo durante os registros em forma de selfie parece fazer um contraponto com a de Michael. Mais simpático, possui um sorriso preso no canto da boca, contrastado pela covinha na bochecha. Enquanto o primeiro inicia os vídeos com "Salve, Salve galera!", o outro finaliza a chamada com o bordão do seu personagem. "Vem comigo que é legal!". E seguem atualizando os seguidores.

Quando a sinal de internet fica ruim durante uma live, a audiência começa a reclamar. Junta o cansaço da noite e então fica difícil manter o bom humor. "Ave Maria! Galera, não estamos na cidade, não. Aqui é mato, pô, o sinal é ruim", responde Michael. "Não somos emissoras de TV, não. Aqui é amadorismo mesmo. Quem não estiver gostando, é só sair da live", rebate.

Para se locomoverem, usam o carro de Naldo. A Parati preta, modelo Track & Field, ano 2007, precisa de alguns reparos. O veículo consume muito combustível, está falhando na marcha lenta e o freio, segunda conta, está com um probleminha também — demora um pouco mais a brecar a depender da velocidade.

Ceilândia Muita Treta tem até "uniforme" próprio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ceilândia Muita Treta tem até "uniforme" próprio
Imagem: Arquivo pessoal

Sem vaga na oficina parceira da página, o conserto em forma de permuta vai ficar para outro momento. Enquanto isso, o jeito é ser prudente na estrada durante a cobertura do cerco policial. Naldo trocou a água e o óleo do veículo na última terça-feira (15). No mesmo dia, mandaram plotar o adesivo escrito "reportagem" no carro. Era para aumentar a segurança da equipe.

"Vai que a gente está em um local, o Lázaro aparece, vê escrito 'reportagem' e sai correndo. Então é para nos proteger", conjectura Michael. Ele fala ainda que a identificação é para evitar serem parados em barreiras policiais e serem vistos com menos desconfiança.

A gasolina é bancada pelos seguidores entusiastas da iniciativa. Já foram mais de R$600 doados via PIX. De Ceilândia (DF), onde residem, até as cidades goianas de Edilândia e Cocalzinho de Goiás, onde se concentram as buscas policiais, são mais de 50 km de distância.

Fazer jornalismo dá trabalho

Acordar cedo e chegar em casa de madrugada tem sido a rotina deles desde o início da semana. E já contabilizam inúmeros perrengues. No primeiro dia de cobertura, resolveram pegar um caminho alternativo para fugir da barreira policial e se embrenharam na mata à noite. Quase ficaram perdidos e tiveram medo de topar com o assassino, então acharam melhor não repetir a aventura. Tais registros, prometem, estarão no documentário.

E não para por aí. Os membros da equipe já enfrentaram frio, sol escaldante, fome, comida gordurosa, sede, dor de barriga e — em momentos em que até Deus duvida —, reuniram forças para segurar o intestino para fugir de vaso sujo. Intempérie essa que forçou o grupo a voltar mais cedo para casa, sem esticar muito pela madrugada.

Até por ataque de abelhas eles foram pegos desprevenidos. Michael, que tem deficiência em uma das pernas, saiu em disparada com os colegas. Lembra-se do fato rindo. Detalhe: o episódio não ocorreu no mato, mas em uma passarela de pedestres na BR-070.

Sinal de telefone e internet é outra dor de cabeça. Por isso, fazem amizades com moradores das imediações para conseguir senha de wi-fi e recarregar as baterias. Na última quinta-feira, um morador de Cocalzinho de Goiás doou dois carregadores portáteis para a trupe.

Apoio à grande mídia

Houve momentos também de satisfação ao livrar os outros do sufoco. Sem sinal de telefonia, a equipe de reportagem da TV Record pediu o celular de Michael para poder contatar a produção. Logo após entrar ao vivo, o jornalista lhe devolveu o dispositivo.

Em outro instante, foram abordados pela equipe do SBT, que estava com problemas nos equipamentos de filmagem. Emprestaram a câmera e, na hora de repassar o microfone de mão, retiraram a canopla do Ceilândia Muita Treta.

Para eles, a sensação é de estar ajudando. Na segunda e na terça-feira dessa semana, abasteceram a imprensa local e nacional com informações e vídeos que recebiam das suas fontes — forças policiais e moradores da região.

PMDF não está mais no caso.
Se tava difícil, agora piorou. pic.twitter.com/jrDtLAHJ9F

-- Ceilândia MuitaTreta (@ceimuitatreta) June 16, 2021

O material chega pelo WhatsApp e redes sociais. Eles precisam filtrar para não cair em fake news. "Estamos 'macaco véio' nisso já", brinca Michael.
Entre filmagens próprias e postagens no Twitter, deram furos e tiveram acesso a informações exclusivas. Nas redes sociais, os seguidores torcerem o nariz para a imprensa tradicional como forma de exaltar o 'jornalismo raiz' dos quatro.

Na terça, por exemplo, ao gravarem vídeo para o documentário, eles fizeram imagens do momento exato em que o helicóptero do Corpo do Bombeiros pousou num campo de várzea transportando um policial que foi ferido na troca de tiros com Lázaro.

Na quarta-feira, com a saída dos policiais do DF da operação, sentiram mais dificuldade de obter informações com a mesma facilidade de antes. Em Goiás, não são tão conhecidos — mas isso não impediu que fossem rompendo barreiras e criando vínculos com as fontes.

Ao longo da semana que marca 10 dias de caçada a Lázaro, perceberam crescer o número de curiosos e influenciadores digitais no local. "Tinha até blogueira de maquiagem lá quinta-feira fazendo cobertura para ganhar like", lamentava Naldo. Para ele, está virando espetacularização, e a população está banalizando o caso.

Os rapazes do Ceilândia Muita Treta estão exaustos e ansiosos pelo desfecho do caso. "Apesar disso tudo, estamos aqui firmes e fortes. Seguimos aqui, na caçada? na caçada de informações, né?", esclarece Michael. "Quando isso acabar, voltaremos à programação normal", finaliza, com voz cansada.