Por que método de abstinência sexual falha tanto contra a gravidez precoce
Dois projetos de lei muito parecidos estão em tramitação na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa de São Paulo. São propostas para que programas de abstinência sexual sejam inseridos no calendário oficial de campanhas, tanto municipal quanto estadual, visando a prevenção da gravidez precoce entre adolescentes.
Os projetos levam o nome "Escolhi Esperar" e foram propostos respectivamente pelo vereador Rinaldi Digilio e a deputada estadual Leticia Aguiar, ambos do PSL. Embora o discurso da abstinência sexual como método educativo esteja inerentemente ligado a grupos religiosos e conservadores, Digilio nega relação da sua proposta com preceitos religiosos. Ele defende que a abstinência seja ofertada como um dos métodos de prevenção da gravidez entre adolescentes.
Oferecido em 2019 pelo vereador bolsonarista, o PL nº 813/2019 já passou por votação na Câmara dos Vereadores e recebeu um parecer favorável da Secretaria Municipal de Saúde. No entanto, estudiosos de diversas áreas — em especial, da educação e proteção dos direitos da criança e do adolescente — se posicionaram contra os projetos, alegando que campanhas assim podem causar impactos negativos na população jovem.
A abstinência sexual oferecida como método preventivo para crianças e adolescentes não iniciarem suas vidas sexuais precocemente é uma discussão antiga, parte de uma teia complexa envolvendo religião, saúde básica, políticas públicas e educação sexual.
TAB conversou com duas especialistas que defendem que a educação sexual seja pautada unicamente em dados científicos. Elas explicam o que está por trás da ideia da abstinência.
O que a abstinência sexual prega? Ela visa orientar adolescentes a iniciarem a vida sexual mais tarde. Em grande parte, é defendido que o sexo só pode acontecer depois do casamento.
Mas a abstinência não leva a menos gravidez precoce? A questão é que o apelo à abstinência não tem eficácia. Nos EUA, onde ainda existem programas de abstinência financiados pelo governo, há fartas evidências de que essas iniciativas são falhas, em diversos pontos. Programas com esse intuito, por exemplo, fornecem informações incompletas sobre relações sexuais seguras e consentidas. Além disso, não contemplam adequadamente alguns temas fundamentais da sexualidade, como métodos contraceptivos. Estudos indicam que esses programas acabaram não contribuindo com a diminuição da gravidez na adolescência e na redução do contágio de ISTs/HIV.
O que falta neles? Projetos que preconizam a abstinência também não levam em consideração outros problemas sociais — como o abuso sexual de menores de idade, a pobreza ou o respeito à diversidade, especialmente quanto a orientação sexual e identidade de gênero. "Eles reforçam estereótipos de gênero quando focam a educação sexual na relação sexual, no casamento, na reprodução e na virgindade, em vez de discutirem temas fundamentais como relacionamentos saudáveis, diversidade sexual, orientação sexual, masculinidades alternativas, consentimento, planos de vida, empoderamento de meninas e prevenção de violência sexual", critica Caroline Arcari, mestra em educação sexual e escritora.
Como surgiram os programas de abstinência sexual? A valorização da virgindade e a condenação do sexo antes do casamento já são conceitos antigos, muito presentes em países predominantemente cristãos. No entanto, foi a partir dos anos 1980 que a abstinência sexual passou a ser oferecida como educação sexual para crianças e adolescentes norte-americanos. Por trás dessas propostas estavam grupos conservadores. A abstinência sexual e a valorização da virgindade são temas tão fortes naquele país que tiveram impacto até na cultura pop. Lembra do Jonas Brothers? No começo da carreira, os irmãos ostentavam alianças douradas na mão esquerda, chamadas de "anéis da pureza", sinalizando que só fariam sexo depois do casamento. Os anéis foram abandonados pelos artistas, anos depois.
Isso é novo no Brasil? Por aqui, o movimento mais conhecido foi criado em 2011 pelo casal de pastores Nelson Junior e Angela Cristina, sob o nome "Eu Escolhi Esperar" — emprestado pelos políticos do PSL para nomear seus respectivos projetos de lei. O movimento prega a "preservação sexual e a integridade emocional" de jovens cristãos, por meio da abstinência sexual antes do casamento. Nos últimos anos, o movimento ganhou projeção nacional e é reconhecido pelo logotipo que traz uma mão com uma aliança, indicando a preservação da virgindade. Segundo Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, o aparecimento de propostas do tipo são comuns quando surgem governos mais conservadores. "Desde que o STF derrubou diversos projetos de lei implementados pelo movimento Escola Sem Partido, grupos semelhantes têm avançado em outras agendas que envolvem currículo escolar e conscientização e educação de Direitos Humanos", diz. Em 2020, Damares Alves, pastora e ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, lançou uma campanha similar, que defende que a abstinência sexual seja ensinada como forma de evitar a gravidez de jovens adolescentes. O material da campanha não faz menção a outros métodos contraceptivos.
Se não funciona, por que querem ensiná-la? Para Pellanda, "a abstinência é um autoritarismo sobre os corpos e possui uma base ideológica muito forte". Embora o vereador Rinaldi Digilio negue que seu projeto tenha cunho religioso, reproduziu conceitos muito usados por grupos religiosos acerca da sexualidade. "Estamos vivendo em uma sociedade hedonista, que vive a valorização do prazer sexual, apenas", defendeu em uma audiência pública em 8 de junho. "Ao dar à abstinência ênfase tão grande, tira-se o foco da escolha, da autonomia e da responsabilidade que deve surgir a partir da informação de qualidade", rebate Caroline Arcari.
Qual seria a forma correta de combater a gravidez precoce? Especialistas defendem que a educação sexual deve ser pautada em dados científicos e ter uma abordagem compreensiva e favorável ao acesso a informações. Esses parâmetros são previstos e defendidos por diversas organizações, como a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), que lançou um documento oficial com orientações para a educação sexual no Brasil para crianças e adolescentes. "O currículo de educação sexual nas escolas deve se comprometer com informação de qualidade, pautada na ciência, de modo que os jovens tenham autonomia e responsabilidade para iniciar a vida sexual ou adiá-la. Ambas as decisões devem ser legitimadas e respeitadas. Educação sexual na escola se faz com ciência, não com discursos moralistas", diz Arcari.
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