Idosos contam como é não ter para onde ir: 'Morar nas ruas é sofrimento'
Passa das 11 da manhã e ainda há gente em situação de rua dormindo nas barracas espalhadas pela praça da Sé. Os que acordaram mais cedo estão sentados na escadaria da Catedral Metropolitana de São Paulo, em pequenos grupos em frente à igreja, ou abandonaram seus cobertores no chão e caminham, agora, pelas ruas do centro.
Embora sejam muitos, eles quase não conversam. O barulho fica por conta do trânsito agitado e de músicas populares, vindas de lojas e bancas de camelôs. Assim que a equipe do TAB é notada, um deles se aproxima. É Carlos Alberto da Silva, 62, disposto a quebrar o silêncio que é seu companheiro diário.
O sotaque revela que ele veio de longe. Passou boa parte da vida em Garanhuns, no agreste pernambucano, ao lado dos pais e das irmãs. Sentindo-se solto no mundo, já que não tinha esposa nem filhos, um dia decidiu tentar a sorte em Aquidauana (MS). Ficou sete anos por lá, trabalhando em fazendas da região. De sol a sol dirigia tratores, pescava, tirava leite de vaca e cuidava do gado. Até que o Pantanal foi tomado por um grande incêndio, em meados de 2020. A casa de Carlos também queimou, junto da vegetação e dos animais. Perdeu tudo o que tinha.
E se antes já era difícil conseguir um emprego, depois do incêndio ficou praticamente impossível. A única porta que se abriu foi a do tráfico de drogas, mas Carlos recusou a oferta. Preferiu ir a Campo Grande, onde passou a vender tachos e flechas para indígenas num mercado. Como o dinheiro só pingava, logo desanimou. Juntou os poucos pertences e pegou a estrada. "Estava fazendo igual ao Moisés, procurando a terra prometida. E vim pra cá", conta. Era outubro de 2020.
Assim que chegou ao Terminal Rodoviário do Tietê, de madrugada, Carlos foi roubado e viu sua sanfona ser queimada. Quando reclamou com os policiais, foi acusado de desacato. Sem respeito nem emprego, fez das ruas seu endereço. Como não gosta do ambiente dos albergues, procura lugares afastados para dormir porque tem medo dos perigos da noite, já que não é raro um morador de rua roubar, agredir e até matar o outro. "Fica um monte de gente esparramada pela cidade. Parece até guerra." Quase um ano depois, ele ainda não se conformou com essa vida. Faz bicos aqui e ali, mas o que ganha é insuficiente para pagar um aluguel barato.
Carlos faz questão de se manter apresentável e sem vícios, para conseguir um emprego e porque sempre foi assim. Toma banho e lava as roupas que ganhou em tendas da prefeitura, depois pede para um amigo que mora no Brás guardá-las. Também cuida da mente. Além da Bíblia, lê notícias em bancas de jornais e compra livros quando tem dinheiro. É com essas leituras que ele se mantém informado sobre o que acontece no mundo. E também com o programa "Brasil Urgente", que assiste na casa do amigo, em bares ou lojas. É fã de José Luiz Datena, pois o apresentador diz o que ele pensa. "Para a sociedade, a gente é invisível. Acham que não somos capazes de nada", reclama.
Andando com uma mochila vazia nas costas, ele para de repente e aponta o dedo para os violões, violinos e violoncelos que estão na janela de uma loja de instrumentos musicais. Seus olhos azuis profundos brilham quando se lembra das músicas sertanejas que tocava na sanfona, e a vontade de comprar uma nova fica mais forte. Carlos está esperançoso essa semana, pois um homem prometeu arrumar um barracão para ele. Está cheio de planos. Um deles é conseguir pedra-sabão para fazer esculturas. Quer viver de arte.
Embora não tenha dinheiro, Carlos se considera rico porque tem saúde. A bronquite ele tira de letra. Sua outra riqueza é a fé. É dela que ele extrai a certeza de que vai viver o milagre de sair das ruas. "A minha revolta é com esses políticos ladrões e com o pessoal religioso que só quer dinheiro e não faz nada. A Constituinte diz que todo brasileiro tem direito a uma moradia. Mas isso é só no papel. Quero que a gente tenha governantes honestos. Alguém que seja homem e olhe para o povo que vive nas ruas, nas favelas", desabafa. Essa é a terra prometida de Carlos.
Corpo e mente que sofrem
Apoiando os braços em duas ripas, que usa como muletas, José Aldo Andrade, 66, atravessa a fileira de bancas de camelô da rua General Carneiro. Com dificuldade, deixa os dois pedaços de madeira no chão e apoia o corpo na calçada, porque a perna e o braço esquerdo doem muito. Nem por isso perde o bom humor. Perguntado como foi parar nas ruas, se apressa em responder. "Por sem-vergonhice. Não valho nada", diz, com ar travesso.
Cansado dos desentendimentos dentro de casa, José Aldo abandonou a família em Orós, no interior do Ceará, onde nasceu. Quando destranca as emoções desse episódio, elas jorram num choro copioso. As palavras falham e só alguns trechos de sua história ficam claros.
"Filha, o que o pai passou você não sabe nem a metade... A gente combinou. Não vou te maltratar e você não vai me maltratar... Ela não me quis. Não me quis e pronto. Se é assim, eu não volto mais nunca. Nunca mais", conta. Movido pela mágoa, foi embora e não viu mais a família. É por ela que o senhor maltratado pelas ruas derrama tantas lágrimas. E também pela saudade que sente dos pais.
Mas seu passado não é de todo triste. Ele se recorda com empolgação da época em que foi ferramenteiro e repete várias vezes o nome das empresas onde trabalhou. Tudo isso ficou para trás, assim como o bom humor do início da conversa.
As feições de José Aldo ficam sérias quando ele relata as agruras de não ter casa há quatro anos. "Morar nas ruas é sofrimento. Estou aqui sem poder andar, comendo o que os outros dão. Se estou num lugar que não tem comida, fico com fome. Como arroz e feijão e nem penso em carne. Quero morrer."
À medida que o tempo passa, essa realidade fica mais pesada. "Chega na minha idade, o negócio é feio. E bota feio nisso", frisa "Perequetê", como é conhecido na região.
Apesar de sentir dor, ele não vai ao médico e não toma remédio. Nem sabe o que tem na perna e no braço. Só se lembra do dia em que caiu no chão e se machucou. Um funcionário de uma loja revela que o morador de rua tem um irmão, mas não aceita a ajuda dele. Prefere a ajuda e o carinho de quem trabalha no comércio local. O motivo de José Aldo ser tão querido no pedaço, segundo ele, é o seu bom coração. Depois de enterrar a esperança de ver a família novamente, preencheu o buraco que ficou na alma com um sonho mais fácil de realizar: comer, beber e fumar. Nas atuais condições, felicidade para ele é isso.
Frio e solidão
É sexta-feira à noite. Amilcar, 61, entra num restaurante perto do largo de Santa Cecília e pede um copo de água. Seus gestos, jeito de falar e andar são de um cavalheiro, daqueles à moda antiga. Além de ter bons modos, ele é um homem que se preocupa com o bem-estar dos outros. Prefere não revelar o sobrenome para não causar problemas à família.
No passado, Amilcar trabalhou como gerente comercial em grandes empresas. Apesar da posição social, a vida não estava exatamente como ele queria. Por isso, começou a beber e foi demitido. Sem conseguir outro emprego, passou a fazer bicos. Mas não ganhava o suficiente para manter o padrão de vida. Quando se deu conta, não tinha mais nada.
Separado da esposa e sem filhos, recebeu o convite da irmã para morar com ela em São Miguel Paulista, na zona leste da capital. Mas o irmão mais velho se opôs. Com o orgulho ferido, foi para a rua, onde mora há seis anos.
Amilcar já não tem forças para viver sem endereço. Como ele, muitos idosos têm dificuldade de aguentar o tranco. Apenas 11,1% das pessoas que vivem nas ruas têm 60 anos ou mais, de acordo com o Censo da População em Situação de Rua 2019.
"Não desejo a minha vida nem para o meu pior inimigo. É um dia a dia mesquinho, improdutivo. Ando para baixo e para cima, mas não cresço um centímetro além do que já fiz. É uma monotonia. Às vezes ando de madrugada e falo comigo mesmo. Tenho que andar para ver se passa esse trauma, essa situação. Às vezes dá vontade de acabar comigo. Só não faço isso porque não tenho coragem", admite.
Nessas longas caminhadas, a resistência de Amilcar é posta à prova. Para suportar as baixas temperaturas que têm feito em São Paulo, ele imagina um calor que não existe. Mas não sofre apenas com dias e noites gelados. Também sente na pele a frieza das pessoas que passam por ele, pois são raras as que o tratam com gentileza.
Durante a entrevista ao TAB, um homem bêbado se aproxima e chama o morador de rua de "lixo". Por mais que doa, não são as privações, agressões ou indiferença que mais castigam o morador de rua. É ser sozinho. Sem ter um amigo sequer, o que lhe resta é conviver com a solidão. "Ela é amiga de quem não tem teto. De quem não tem ninguém", afirma.
Quando o isolamento dói demais, ele se apega às memórias boas, como a lembrança de um amor. Amilcar não diz o nome da mulher por quem passou a vida apaixonado porque teme prejudicá-la. Conta apenas que ela era uma moça educada e que trabalharam juntos na área financeira de uma empresa.
O namoro terminou por causa de uma briga envolvendo as mães de ambos. Para cessar o conflito, abriu mão da amada. Pouco depois, ela se casou com outro homem. "Eu não quis interferir nesse relacionamento porque não seria ético da minha parte. Mas não esqueço dela nem um minuto. Mesmo na pior situação que eu esteja, estou me lembrando e orando por ela e pelo filho dela", confessa.
Amilcar é um romântico assumido. Acredita que o romantismo é a mola que move a humanidade. Leitor assíduo que foi no passado, um de seus livros preferidos é "Romeu e Julieta", de William Shakespeare.
Apesar da crueza das ruas, ele é um homem leve, que não carrega arrependimentos. "O que eu fiz, está feito. A vida é um grande balé. Como dizia a nossa querida e saudosa Elis Regina, vivendo e aprendendo a jogar. Nem sempre ganhando, nem sempre perdendo, mas aprendendo a jogar."
À medida que vai envelhecendo, sua esperança de mudar de vida míngua a cada dia. Hoje resta apenas um fiapo. Mas se agarra a ele. Sonha acordado com a vida de outrora e com a que terá no dia em que der a volta por cima. Se imagina na sala de aula de uma faculdade de psicologia e empregado, envolvido em reuniões e palestras. Quando volta à realidade, o morador de rua sonhador segue a longa viagem que faz a pé todos os dias.
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