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Bombeiros contam como foi o dia seguinte do incêndio no Parque do Juquery

 Voluntários do Grupo de Resgate de Animais em Desastre no Parque Estadual Juquery  - Ricardo Matsukawa/UOL
Voluntários do Grupo de Resgate de Animais em Desastre no Parque Estadual Juquery Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Breno Castro Alves

Colaboração para o TAB, de Franco da Rocha (SP)

01/09/2021 04h00

As botas do educador ambiental Rodrigo Dias, 28, pisam sobre as cinzas pretas que cobrem as colinas do Parque Estadual Juquery, no município de Franco da Rocha, na Grande São Paulo. Era manhã de sábado (28), um dia após terminar o incêndio que consumiu quase mil hectares de cerrado do parque. A chuva pesada não elimina o cheiro borralhento, que embrulha o estômago.

De repente, as botas aceleram. Avistaram um pequeno rastro de fumaça. Rodrigo encontra algumas brasas ainda acesas, protegidas da água no solo cheio de carvão. Ele remove a cobertura com o pé, expõe as brasas para a chuva terminar o serviço.

As chamas começaram seis dias antes, no domingo (22), quando um balão colidiu e incendiou as copas secas das árvores. No dia seguinte, mais de 300 voluntários compareceram ao parque para ajudar a controlar o incêndio, na retaguarda.

Incêndio no Parque Estadual Juquery, em Franco da Rocha, na Grande São Paulo - Bombeiros do Parque Juquery/Divulgação - Bombeiros do Parque Juquery/Divulgação
Incêndio que atingiu o Parque Estadual Juquery, em Franco da Rocha, no dia 22 de agosto
Imagem: Bombeiros do Parque Juquery/Divulgação

Rodrigo foi a campo uma última vez nesse sábado chuvoso, acompanhado pelos colegas Douglas Paschoaleti, oceanógrafo de 25 anos, e Emanuel Maciel, analista de sistemas de 39 anos. Os três são membros do GRAD (Grupo de Resgate de Animais em Desastre), que reúne 60 voluntários com experiência em resposta à fauna atingida por desastres. Atravessam a paisagem calcinada buscando sinais de vida em um local onde tudo é carvão e lama.

Para tanto, os voluntários instalaram três câmeras com sensor de movimento na região. Em frente à primeira, eles deixaram frutas, que amanhecem intocadas, e ovos de galinha, que agora são apenas cascas chupadas — indicando a presença de répteis comedores de ovo como o teiú, ou algum de seus primos menores.

Voluntários do Grupo de Resgate de Animais em Desastre no Parque Estadual Juquery - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Voluntários do Grupo de Resgate de Animais em Desastre no Parque Estadual Juquery
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Fome cinzenta

A câmera está atada a uma árvore queimada. A poucos metros, algumas tocas com a entrada limpa, trechos cor de terra que contrastam com o cinza preto constante do campo nauseante. "Deve ser tatu limpando a porta de casa. E olha as brachiarias nascendo por todo lado", aponta Emanuel, referindo aos infindos brotinhos verdes que despontam sobre o solo carbonizado.

"O pior de tudo é a fome cinzenta", diz Rodrigo. O educador está com o GRAD desde 2015, desde o desastre da Samarco que destruiu o rio Doce. No pantanal, ano passado, viu a fome cinzenta, quando o fogo passa e só restam cinzas. Não há comida para a maior parte das espécies.

Os três voluntários trabalham com equipamento próprio e sem salário, moram em cidades distantes e se hospedam na casa da veterinária Luciana Guimarães, 42, a meia hora do parque, em Guarulhos. Sua casa está cheia de lama e cinzas, ela se orgulha.

"Escreve aí o mais importante. A população não pode alimentar os bichos. Sabe herpes? Vírus normal entre os humanos, mas mata macacos. Mata. Outro dia encontraram um monte de pão velho jogado pra dentro do parque, isso só atrapalha. Melhor doar pra quem tem experiência", alerta Luciana, que atua no GRAD desde 2011.

Luciana é acompanhada por duas voluntárias independentes, a bióloga Fabiana Padilha, 36, e a bióloga e veterinária Caroline Machado, 36. Enquanto esquenta uma dose de leite e se prepara para a amamentação de um porco-espinho bebê, Fabiana argumenta que "a relevância de qualquer vida não é mensurável, nem de um inseto. Reconheçam os humanos ou não, todo animal é fundamental".

Porco-espinho bebê resgatado no Parque Estadual Juquery - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Porco-espinho bebê resgatado no Parque Estadual Juquery
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

Elas não deram nome ao bichinho, para não se apegarem. Mede um palmo, tem pelo branco e olhos completamente vermelhos, um filhote assustado que se agarra a um toco de madeira. Os primeiros espinhos despontam entre a penugem. Bebe leite morno, a seringa sai toda mordida. É o derradeiro animal atendido pelo posto emergencial que os voluntários ali montaram.

Foram os últimos movimentos da maior mobilização comunitária que o Juquery já viu. O geógrafo Adriano Candeias, 35, gestor do parque, relata o volumoso apoio de populares como cozinheiros, mecânicos, professores e muitos outros dispostos a ajudar na retaguarda. Um senhor trouxe baldes cheios d'água em seu Fusca. Vieram também muitos bombeiros e outros brigadistas com treinamento, os únicos que somavam às equipes que atuavam diretamente nas linhas de fogo.

'O céu vai encher de balão'

O cerrado tem uma relação próxima com as chamas, diz Adriano. Algumas sementes só brotam após uma queimada. "O fogo natural é raro e um raio, que pode iniciar um incêndio, vem acompanhado de chuva. Mas aqui é sempre balão, lixo queimado, palha queimada. Isso bota muita pressão", relata.

Os bombeiros do parque testemunharam o começo do incêndio. Em suas torres de observação, acompanhavam mais de 20 balões nos céus, um número comum para a região. Viram quando um deles perdeu altitude e se chocou com a copa das árvores secas.

Havia seis bombeiros e três brigadistas trabalhando naquele dia. O bombeiro Williams da Rosa, 37, foi um dos primeiros a chegar ao fogo. Relata que, em qualquer fim de semana, "quando para o vento da manhã pode ter certeza, o céu vai encher de balão. E é cedinho".

Resgatar o objeto no ar para apagá-lo antes que toque o solo é prioridade para evitar que o fogo se alastre. Mas, desta vez, o balão colidiu com o topo das árvores, iniciando o temido fogo de copa, fora do alcance das mangueiras dos homens. As copas em chamas cuspiram folhas acesas que caíram rodopiando sobre um capim seco pelo inverno e extrasseco pela geada que recentemente sofreu.

O bombeiro Denis Estevão de Oliveira, 36, explica que o vento é o inimigo que altera a posição das chamas. A linha de fogo tem a cabeça, a direção para onde está correndo, e o rabo, onde o pior já passou. Denis relata que é muito perigoso enfrentar a cabeça pois um vento imprevisível pode mover muito calor e fumaça - ele queimou o nariz por dentro já no primeiro dia, apenas por respirar ar quente soprado para longe das chamas.

 Parque Estadual Juquery (SP) - Ricardo Matsukawa/UOL - Ricardo Matsukawa/UOL
Parque Estadual Juquery (SP)
Imagem: Ricardo Matsukawa/UOL

"O combate a esse tipo de incêndio deve ser também cultural. A função social da unidade de conservação precisa se ampliar", avalia Adriano, o gestor. "Toda essa gente, os voluntários. Todo dia tinha alguém chorando, foi como se queimasse um avô da comunidade."

Soltar balão é crime desde 1998, mas a proibição não impediu que o parque queimasse. Para Adriano, as cinzas do Juquery abrem espaço para um debate mais profundo sobre o papel cultural e político que as unidades de conservação podem ter. "Os baloeiros poderiam receber a pena alternativa de integrar equipes de brigadistas em unidades de conservação, para que vejam as consequências da prática e, quem sabe, possam transformar suas comunidades."