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Em protesto inédito, médicos de UBS em SP narram rotina de exaustão

Protesto de médicos da rede municipal de saúde, em São Paulo, na tarde de quarta-feira (19) - Manuela Azenha/UOL
Protesto de médicos da rede municipal de saúde, em São Paulo, na tarde de quarta-feira (19)
Imagem: Manuela Azenha/UOL

Manuela Azenha

Colaboração para o TAB, de São Paulo

20/01/2022 07h11

"Estou péssima, exausta, não aguento mais", afirmou em desespero a médica N.*, 32, profissional de uma UBS (Unidade Básica de Saúde) de São Paulo, que preferiu não ser identificada por medo de sofrer retaliações. Ela participou do protesto organizado pelo Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo) nessa quarta-feira (19), em frente à Prefeitura da capital paulista. O ato reuniu cerca de 100 pessoas.

A mobilização reivindica novas contratações de profissionais da saúde nas UBSs, serviço que sofre especial sobrecarga com a nova onda de casos de covid-19. Uma greve estava programada para o mesmo dia, mas foi proibida de ser realizada por liminar da Justiça de São Paulo.

O grupo caminhou rumo à Secretaria Municipal de Saúde, região central, onde terminou o protesto. Sindicatos de outras categorias da saúde, movimentos populares e alguns parlamentares também compareceram, como o deputado estadual Carlos Gianazzi (PSOL) e as vereadoras Juliana Cardoso (PT) e Luana Alves (PSOL).

"Quando começou a pandemia, nós, profissionais da saúde, abraçamos a população, e não deixamos de trabalhar. Mesmo com medo de nossos entes queridos adoecerem e morrerem, e de nós mesmos adoecermos e morrermos. A classe política, porém, nos abandonou, sim. Faz 2 anos que estamos lutando. Vemos que nada mudou em relação a melhorias de qualidade de saúde, só piorou", lamenta a médica.

Augusto Ribeiro Silva, 30, psiquiatra de uma UBS de Itaquera e diretor do Simesp, no ato de quarta-feira (19) - Manuela Azenha/UOL - Manuela Azenha/UOL
Augusto Ribeiro Silva, 30, psiquiatra de uma UBS de Itaquera e diretor do Simesp, no ato de quarta-feira (19)
Imagem: Manuela Azenha/UOL

Médicos que adoecem

Segundo Augusto Ribeiro Silva, 30, psiquiatra de uma UBS de Itaquera e diretor do Simesp, a baixa adesão de profissionais ao ato se deu justamente por causa da liminar que impediu a paralisação da categoria. Ele afirmou que, apesar disso, a mobilização sindical conta com um apoio inédito da categoria. "Fizemos assembleias com mais de 150 médicos. Ontem tivemos 200", conta. O sindicato se reunirá novamente com o secretário municipal de saúde, Edson Aparecido dos Santos, em 27 de janeiro, e já existe a possibilidade de uma greve da categoria acontecer no dia seguinte, caso as reivindicações não sejam atendidas.

"O fardo do atendimento dos casos leves, que são os predominantes nesse momento da pandemia, está caindo totalmente nas costas da atenção primária. É um aumento gigantesco da demanda, com muitos profissionais afastados e sem reposição. No município há 3.000 médicos afastados, em janeiro. Há médicos atendendo até 8 pacientes por hora. Não conseguimos dar conta da demanda da UBS de fato, que é atender os pacientes crônicos, os que não podem sair de casa, que precisam de visita domiciliar", explica Augusto.

N. relata que os pacientes atendidos por ela antes da pandemia estão com a saúde muito pior do que a de dois anos atrás. "Estou na minha UBS há três anos e é como se não estivesse nem pisado lá. Meus pacientes simplesmente não conseguem me encontrar porque estou dando atenção a pacientes com covid-19. Essa demanda não deveria mais ser minha, dois anos depois. Tenho de voltar a fazer minha função, que é cuidar de gestantes, idosos, pacientes crônicos, acamados. Essas pessoas morrem em silêncio. Ninguém vê", lamenta a médica, que acredita ser simples a solução. "É só a Prefeitura criar 'gripários' e colocar equipes especiais para atender covid. A UBS volta a ser UBS e a gente volta a cuidar dos nossos pacientes."

Protesto de médicos da rede municipal de saúde, em São Paulo, na tarde de quarta-feira (19) - Manuela Azenha/UOL - Manuela Azenha/UOL
Protesto de médicos da rede municipal de saúde, em São Paulo
Imagem: Manuela Azenha/UOL

Marco Antonio dos Santos, 44, médico de saúde da família e de comunidade, trabalha em uma UBS e faz parte de uma equipe que cuida da comunidade indígena Pankararu. Ele relata que, em janeiro, a unidade chegou a atender 40 pessoas numa manhã. "Isso passa muito do limite adequado. Deveríamos atender 4 pessoas por hora, ou seja, uma consulta a cada 15 minutos — que já é pouco tempo. Mas agora estamos atendendo o dobro disso." De uma equipe de nove médicos da UBS, dois estiveram afastados no início de janeiro e outra pediu demissão.

Na UBS da zona oeste de São Paulo onde S*, 30, trabalha, deveria haver sete médicos, mas há somente 5 contratados. Três deles estão afastados por sintomas respiratórios, aguardando os resultados dos testes. "Ou seja, somos dois médicos trabalhando no lugar de sete", conta a profissional da saúde, que acaba de voltar após uma semana afastada por ter contraído influenza.

Gripada no final de 2021, N. passou 14 dias em casa. Ela relata, no entanto, que outros profissionais ficam doentes e continuam trabalhando para não sobrecarregar os colegas, já que não há reposição.

P*, 32, médica de uma UBS da zona leste, diz que o esgotamento atinge a todos os profissionais da saúde. Segundo ela, a vacinação para covid-19 foi realizada por profissionais da enfermagem, sem que novas contratações fossem feitas, mesmo diante de uma demanda que não existia antes.

"Os enfermeiros estão iguais ou até mais cansados e estressados do que nós, porque a unidade de saúde funciona sem médico, mas não funciona sem enfermeiro. Não tem nenhum enfermeiro aqui no ato porque estão na unidade trabalhando. A gente adoece ou por covid-19 ou por excesso de trabalho. A gente cuida da saúde dos outros, mas ninguém cuida da nossa saúde. Ninguém se importa", lamenta.