'A gente não sabia dos contaminados', diz passageiro do navio Preziosa
A temporada dos cruzeiros começou em mar revolto e acabou sendo interrompida temporariamente devido ao surgimento dos casos de covid. O navio Preziosa da MSC atracou na manhã desta quarta-feira (5) no cais do porto, região central do Rio de Janeiro.
A suspensão temporária da atividade dessas embarcações foi uma recomendação da Anvisa na última segunda-feira (3) e vai até 21 de janeiro. O Preziosa atracou com pelo menos 81 infectados, sendo 61 tripulantes e 20 passageiros, dos quais 16 são brasileiros (apenas dois moradores da cidade do Rio de Janeiro) e quatro de outra nacionalidade.
A rota do navio seria Rio de Janeiro, Ilhéus, Salvador e Maceió, com retorno para o Rio no dia 9. Na noite de segunda-feira, entretanto, o comandante anunciou que as autoridades de Ilhéus e Salvador não haviam autorizado o desembarque por causa das chuvas no Sul da Bahia. Outro motivo seria os casos de covid e "problemas com a Anvisa". Aos passageiros, a MSC prometeu reembolso integral do valor pago ou, para quem preferir, uma carta de crédito no mesmo valor para um cruzeiro futuro.
Protocolos a bordo
De férias na embarcação, o médico Marcelo Domingues D'Ávila, 52, e a esposa Cláudia Garcia Albornoz, 50, são cruzeiristas com direito a itinerários pelo Caribe e uma travessia de Recife a Barcelona em 2019. Desde então, por conta da pandemia e com os cruzeiros suspensos, as férias foram adiadas: "Como trabalhei na linha de frente em minha cidade, a ideia era descansar e recarregar as baterias, uma vez que a própria Anvisa havia liberado a temporada de cruzeiros e estamos com a carteira vacinal completa, as 3 doses", disse Marcelo ao TAB.
O médico conta que, para embarcar, ele e a esposa precisam apresentar carteira vacinal completa, teste diagnóstico para covid negativo com antecedência de 48 horas (PCR) ou 24 horas (antígeno), além de preencher um questionário da Anvisa.
O médico acredita que a suspensão dos cruzeiros tenha sido prudente e necessária, mesmo seguindo os protocolos estabelecidos pela própria Anvisa -- que havia liberado a temporada. "Esses casos foram detectados porque há testagem nos navios. Na Europa e nos Estados Unidos, há distribuição gratuita de testes para que a população faça autotestagem em domicílio. Aqui nada disso ocorre. O problema é que o país não está testando. Inclusive a própria base de dados do Ministério da Saúde continua com problemas para atualização", refletiu.
As próximas férias ainda não têm data, mas o casal pretende voltar. "Sempre fica uma certa frustração. Não sabemos quando poderemos viajar novamente, mas com certeza queremos voltar pelo menos uma vez por ano".
Na data de partida, cerca de 300 passageiros foram testados no terminal de embarque. Diariamente, 10% dos ocupantes do navio, entre passageiros e tripulantes, eram testados por sorteio. Caso alguém testasse positivo, tanto o infectado quanto quem teve contato com ele eram isolados num deck — até mesmo quem testasse negativo.
Passageiros 'podem tudo'
Em quarentena por 15 dias, um funcionário do cruzeiro relatou ao TAB a rotina de regras, confinamento e as dificuldades ao lidar com o público. Com a aparição de casos, todas as áreas sociais para funcionários foram fechadas — academia, bar e piscina. A regra é "trabalho e cabine", diferente dos passageiros, que segundo ele, "podem tudo".
Após o desembarque no Rio, os tripulantes contaminados e aqueles que estão sob suspeita de contágio ficarão isolados por 15 dias, mas muitos deles ficam em cabines sem janela, acesso à luz do dia ou ventilação. "Estar aqui era um sonho, mas continuar vai contra muita coisa em que acredito. Hoje era pra ser meu teste de covid, mas cancelaram porque a companhia quer esconder casos positivos", disse o tripulante que preferiu não se identificar.
Com experiência na área de turismo, o rapaz estava em busca de um trabalho e viu a retomada dos cruzeiros como uma boa oportunidade. Assim que embarcou, mesmo com teste negativo, precisou permanecer em quarentena por 7 dias, dentro de uma cabine sem janela. "Já tem várias pessoas aqui com depressão. A sensação de confinamento é o que mais me deixa mal. E ainda tenho que explicar aos passageiros porque precisam usar máscara".
Enquanto passageiros que conversaram com a reportagem elogiaram a tripulação, a visão do outro lado era bem diferente: "Pra pegar bebida no bar, eles até colocam máscara, mas se você pede pra eles colocarem, eles te xingam, falam que não vão colocar, que estão pagando muito caro para estar ali. Eu até rezo para que pare isso aqui, porque está um caos. A gente tem uma vida aqui super restrita, aí os passageiros saem do barco, trazem o vírus pra cá e contaminam a gente. A Anvisa está no pé porque eles estão percebendo isso. Tem mais regras para os tripulantes", relatou.
Em nota ao TAB, a Anvisa disse que está monitorando todas as operações de cruzeiro e irá apurar qualquer irregularidade e desrespeito aos protocolos firmados com as companhias marítimas. Segundo a agência, o descumprimento dos protocolos sanitários constitui infração sanitária.
Sentimento de segurança
A agente de viagens Fernanda Kuhn, 39, estava sem férias há dois anos — desde o início da pandemia, quando precisou remarcar as viagens de seus clientes, já que o setor de turismo foi um dos mais afetados. A expectativa para as férias era grande, e como a mãe Terezinha Kuhn, 68, ama cruzeiros, decidiu proporcionar esse momento para as duas.
A dupla aguardou por cinco horas a saída de pessoas da outra embarcação para realizar o teste exigido pela Anvisa e, então, ter acesso ao Preziosa. "Viagens de avião, ônibus, hotéis, em nenhum desses lugares é pedido teste de covid. Nós fizemos para entrar no navio, teve gente que foi testada três dias seguidos por causa do sorteio. Hoje o foco está sobre os cruzeiros, mas amanhã pode estar sobre outro setor", opinou Fernanda.
Ela relata que toda a tripulação usava máscara, luvas para manusear os alimentos, limpeza sendo feita com diferentes produtos, tudo muito correto, mas as falhas ficaram por conta dos passageiros: "Eu e minha mãe tomamos todos os cuidados, mas vai do bom senso de cada um. Vi pessoas bebendo e conversando sem máscaras, aglomeradas, mas isso poderia acontecer em qualquer lugar. Nos ambientes fechados era obrigatório o uso de máscara, mas nos abertos, como a área da piscina, não. Fora dali, se você for em um parque, uma praia, as pessoas não iriam usar mesmo. Então eu percebi uma cobrança muito forte em cima dos cruzeiros".
Dentro da embarcação, Fernanda conta que as pessoas estavam felizes, seguras e aproveitando o ambiente, partindo do princípio que todas as regras estavam sendo seguidas. Covid não era o foco: "Eles não ficavam anunciando quantas pessoas estavam contaminadas, então aparentemente o que foi determinado pela Anvisa estava sendo cumprido — que os contaminados ficariam em isolamento", disse Fernanda.
Diagnósticos discretos
De férias com a família, o advogado Renato Porto, 48, viajou embarcado com a esposa e os dois filhos pela primeira vez. Ele relata que todos os protocolos eram seguidos, os funcionários usavam máscara e que inclusive os tripulantes precisam chamar atenção mais dos brasileiros do que dos europeus.
De tudo o que aconteceu nos últimos dias, Renato relatou que houve falha na comunicação: "Não existiu nenhuma informação de que havia pessoas contaminadas, o número de passageiros. Essa suposição se deu porque minha mulher falou que não conseguiu seguir em frente ao corredor porque estava fechado, dizia que ali era uma área de isolamento. Foi então que a gente imaginou que havia pessoas com covid. Sobre o número de contaminados, eu só soube quando saí da embarcação", disse Renato.
De volta para casa, o advogado no primeiro momento achou que a MSC era mais uma vítima de tudo isso, devido aos problemas sanitários e ao bloqueio da Anvisa. "Mas assim que apurei melhor, descobri que dois navios passaram pelo mesmo problema e um deles, o anterior ao nosso, tinha ficado retido em Santos. Então eu imagino que a MSC pagou pra ver, decidiu colocar as pessoas e os tripulantes em risco", refletiu.
Espirro sem máscara
Em março de 2020, um cruzeiro da Índia a Dubai foi cancelado por conta da pandemia. Por muito pouco, a enfermeira Celia Massa, 58, e o marido não ficaram presos na embarcação. Com a chance de remarcar, os dois decidiram curtir a viagem pelo Brasil. No dia 26 de dezembro, o casal embarcou no Preziosa e retornou neste domingo no Rio. "O que eu vi lá foram pessoas sem máscara, como se não houvesse covid, o amanhã. Os tripulantes tomaram todos os cuidados, tudo muito bem higienizado, mas vi muita gente sem educação", disse Celia.
A enfermeira foi uma das pessoas sorteadas para testar na embarcação. Com exame negativo, viu outras com resultado positivo e cerca de três sendo levadas para outro ambiente, acompanhadas por funcionários de roupas brancas e aplicação de fumaça sanitizadora num corredor.
"Não vi defeito nenhum no cruzeiro, nos funcionários, nas comidas, mas o problema eram as pessoas. Eu fiquei com a minha [máscara] n95 o tempo todo, só tirei para fazer fotos. Esse foi meu primeiro cruzeiro dentro do Brasil e fiquei horrorizada, as pessoas espirravam sem máscara e não colocavam nem a mão na boca. Uma pena, porque isso acabou com o passeio de todos", disse.
Procurada pela reportagem, a MSC disse que foi forçada a encurtar o cruzeiro do Preziosa devido aos desastres naturais que afetaram a Bahia recentemente. "Por conta disso, conforme comunicado pelas autoridades locais, os portos ficaram indisponíveis e o navio retornou ao Rio de Janeiro antes do previsto. Esperamos retomar os cruzeiros em águas brasileiras após o dia 21 de janeiro, sob a proteção do protocolo de saúde e segurança, que é líder da indústria", diz a nota. Sobre o tratamento dos funcionários confinados, a empresa preferiu não se manifestar.
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