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De origem punk, professor antifascista de boxe dá aulas coletivas em SP

Guilherme Miranda é antifascista e dá aulas coletivas de boxe na Zona Oeste de São Paulo  - Reinaldo Canato/UOL
Guilherme Miranda é antifascista e dá aulas coletivas de boxe na Zona Oeste de São Paulo
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

26/01/2022 04h00

Antes do sol intenso começar a queimar o asfalto e as cabeças dos paulistanos, Guilherme Miranda, 32, chega de bicicleta ao som de uma faixa de reggae jamaicano em uma praça da Vila Anglo, bairro da Zona Oeste da capital. Na quadra de basquete vazia, seus alunos aguardam o início do treino coletivo de boxe ministrado por ele. Enquanto caminha até o centro da quadra, Miranda muda a trilha sonora no celular e logo a voz de Greg Gaffin, vocalista do Bad Religion, passa a ecoar pela praça.

Depois de um longo aquecimento, as luvas entram em cena e jabs cruzados e ganchos são repetidos centenas de vezes. Todos são homens e tatuados. "Não é sempre assim", se diverte Miranda sobre a predominância masculina no dia. "Tem épocas em que a presença de mulheres está mais equilibrada e outras que em só tem mulheres, praticamente".

Batizado de Boxe Vila Anglo, o projeto de Miranda é focado em aulas de boxe coletivas no bairro. Atualmente, as aulas são a principal atividade de Miranda, que é formado em Comunicação e trabalha ocasionalmente com audiovisual. Para participar, é preciso apenas trazer as luvas e vontade de treinar pesado. O valor varia de acordo com a condição financeira de cada aluno. "Tem gente que paga o valor integral, tem gente que paga uma parte e um pessoal que não paga nada".

Miranda não tem um espaço físico próprio para o projeto e isso, além de ser mais em conta, também foi uma decisão consciente. "A ideia é ocupar espaços públicos. Principalmente, incentivar que as pessoas possam conviver e saiam um pouco de suas zonas de conforto. Aqui, todo mundo sabe que não é um espaço que permite atitudes racistas, sexistas e preconceituosas", explicou o professor. Para não restar dúvidas, ele mandou confeccionar a camiseta oficial do projeto com os dizeres "Pela paz em todo mundo", notória frase vinda banda punk Cólera.

treino - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Alunos de Miranda treinam na praça Doutor Vicente Tramonte Garcia, no bairro da Vila Anglo Brasileira
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Punk de origem operária

Nascido e criado no Jardim Sônia Maria, bairro na periferia de Mauá, na região metropolitana de São Paulo, o treinador de boxe contou que "ser de esquerda" era algo natural na sua família e de muitas pessoas do bairro. Os Miranda são de classe operária e têm raízes baianas. Sua principal inspiração, conta, foi o tio Daniel, que cresceu e vive no mesmo bairro até hoje. "Maloqueiro, motoboy, inteligente e antifascista", resume Miranda sobre o tio, também o responsável por apresentá-lo à cena punk no ABC Paulista.

"Tudo o que eu faço está ligado ao punk, uma das minhas primeiras escolas. Foi no punk que aprendi a sempre trazer o contexto político para os lugares e tentar passar isso adiante", explica o professor.

Além do punk, Miranda também se apaixonou pelo futebol quando ainda era moleque. Em 2006, começou a fazer parte da Fúria Andreense, a maior torcida organizada do ABC Paulista do Esporte Clube Santo André, da qual faz parte até hoje. Foi ali que começou a treinar boxe e chegou a competir em 2016, aos 26 anos, na categoria médio-ligeiro de 64 kg.

Miranda também lutou na Forja de Campeões, um dos campeonatos mais importantes no boxe amador. "Comecei a competir velho para o boxe. E é um esporte duro, porque exige dedicação. Não é nada romântico", conta.

O punk e o futebol, dois ambientes predominantemente masculinos, foram essenciais para a formação de Miranda. Quando aprendeu mais sobre política, passou a questionar a tendência à violência que esses ambientes podem promover. Também afirma ter passado por um longo processo para aprender a enxergar um universo além do bairro em que cresceu. "O confronto sempre foi algo muito presente na periferia", relembra. "Mas nunca me meti em brigas de torcida organizada e acho que nós sempre tentamos fazer as coisas diferentes na torcida. Porém, não deixa de ser um questionamento constante".

Saber lutar boxe também foi essencial para que se afastasse de brigas. "É algo que te faz evitar situações violentas e desnecessárias. O meu professor, por exemplo, dizia algo simples: quando um lutador entra em uma briga, tem dois caminhos. Ele pode bater, o que não é surpresa nenhuma, ou apanhar e passar vergonha. Nenhum caminho tem mérito algum."

Boxe político

Atualmente, apesar de estar lidando com as dificuldades para gerenciar projetos sociais, espera conseguir ao menos trazer pequenas mudanças e questionamentos para o universo da luta. Também reconhece que esses ambientes tendem a serem hostis e não muito atrativos para mulheres e pessoas LGBTQ+. "Até eu, quando comecei a treinar, senti esse clima", admite.

Miranda não é o primeiro e nem o último lutador a trazer política para o pugilismo. Na Itália, um dos países com mais medalhistas do esporte do mundo, academias populares de boxes em centros social começaram a ser criadas a partir dos anos 1970 em resposta ao longo relacionamento que o esporte nutria com o fascismo desde o começo do século 20. Popular até hoje no país, o pugilismo era ligado aos ideais de masculinidade e virilidade, muito caros ao fascismo italiano.

boxe - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Miranda observa o treino, onde pessoas de todos os níveis no boxe são bem-vindas
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Interessados pela luta passaram a se reunir para treinar e trazer um contraponto à política de extrema-direita que dominava as academias mais tradicionais do esporte e, assim, nasceram em Roma as palestras populares, que oficialmente passaram a se organizar no início dos anos 1990.

Miranda acredita que a atração do boxe ao antifascismo no Brasil também decorre da forte presença de lutadores e treinadores negros em academias e centro de lutas. "Pode não parecer, mas o boxe tende a ser um esporte mais popular por conta disso", explica. "Na história do boxe, existe também uma grande presença de lutadores que questionaram muitas coisas, como o próprio Jack Johnson".

Johnson foi um pugilista norte-americano e o primeiro boxeador negro campeão mundial dos pesos-pesados. Em 1910, enfrentou uma das partidas mais importantes na história do boxe e da sua carreira. Ele lutou com o ex-campeão James Jeffries, que deixou a aposentadoria para encarar Johnson e provar que "homens brancos são melhores do que negros". No auge das leis segregacionistas do supremacista branco Jim Crow, Johnson derrotou Jeffries perante milhares de espectadores. A comemoração da vitória em comunidades foi recebida com violência, gerando ataques racistas em diversas cidades. A importância do pugilista negro e a partida, chamada de " A Luta do século", foi resgata décadas depois por Muhammad Ali e o movimento Black Power nos anos 1970.

'A visibilidade me incomoda'

As aulas coletivas no Boxe Vila Anglo são apenas uma faceta da sua trajetória no pugilismo. Quando ainda era lutador amador, ajudou a fundar o projeto Boxe Autônomo em 2015, onde deu aulas para jovens na Casa do Povo, no Bom Retiro.

Até 2021, organizou treinos na Ocupação Alcântara Machado, na Zona Leste, e em bairros periféricos da capital como Capão Redondo, na Zona Sul. Todos foram focados em atingir crianças interessadas pelo esporte. Os projetos também receberam apoio também de Vivi Torrico — uma das criadoras do Solidariedade Vegan, que distribui marmitas veganas para pessoas em situação vulnerável e possui uma atuação social intensa nas ruas ao lado do padre Júlio Lancellotti. Além disso, também trouxe o boxe para a Casa Florescer, criada para abrigar pessoas da população LGBTQ+.

No final de 2021, no entanto, Miranda decidiu suspender os projetos para repensar sua abordagem. "É difícil ocupar esses lugares porque você acaba se envolvendo com muitas outras coisas que estão presentes. A cada treta que você tenta melhorar, vem mais dez pra te puxar pra baixo", conta. "O contexto social da molecada já não é fácil, então é muito complicado trazer a pessoa pro esporte. Ainda mais o boxe, que exige da pessoa um tempo de dedicação".

A visibilidade trazida não também o deixou confortável. "Me incomoda porque eu não quero ser exemplo de nada. Só quero que todo mundo tenha acesso ao boxe", resume. Ainda assim, acredita que as aulas de boxe podem ajudá-lo a descobrir alguém que queira lutar profissionalmente. Sua intenção é usar os contatos que criou durante os anos no pugilismo como trampolim para uma nova carreira.

"Só de fazer a molecada sair um pouco do bairro, trazer algumas delas para treinar aqui, já foi importante. Porque, assim como aconteceu comigo, existe um mundo enorme pra fora de uma região ou bairro que elas vivem", conta.

Mesmo que um pouco pessimista com a situação atual do país e um tanto resistente às aparições na imprensa, Miranda ainda fala do potencial do pugilismo para mudar vidas em tom de esperança. "O boxe é a ferramenta que eu tenho para tentar mudar o mundo."