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'Perdi meu país': artista russa vive em SP e teme voltar para rever família

Lena Kilina, artista russa vivendo no Brasil - Gsé Silva/UOL
Lena Kilina, artista russa vivendo no Brasil
Imagem: Gsé Silva/UOL

Daniel Lisboa

Colaboração para o TAB, de São Paulo

09/04/2022 04h01

Lena Kilina decidiu ampliar seus horizontes assim que teve a oportunidade. Metaforicamente e na prática, pois trocou a imensidão das estepes por alguns dos maiores aglomerados de concreto do planeta.

De uma hora para outra, a artista visual que vive em São Paulo se vê no papel de exilada involuntária: com sua postura antiguerra, que ela não esconde nas redes sociais, não pode voltar ao seu país. Ou até pode, mas tem a convicção de que será presa se o fizer.

"Com certeza eu teria problemas se voltasse hoje. Eles sabem que sou contra a guerra, e você pode ir preso na Rússia por isso", diz Lena. "Pensei que voltaria esse ano para ver meu pai. É muito triste. Penso que perdi meu próprio país."

Kilina, de 34 anos, saiu da minúscula Zabaikalski, no extremo-oriente siberiano, para viver, estudar e trabalhar em Xangai, na China, e depois em São Paulo, onde vive desde 2019.

Conversar com a artista visual é o equivalente mental a tentar abater o pernilongo que fica zunindo ao redor da cabeça. Tentamos capturar algo sobre sua identidade, algum ponto de partida para decifrá-la, mas terminamos com cara de bobo batendo palmas no ar.

Porque Kilina é russa, mas é siberiana. É siberiana, mas cresceu na fronteira de China e Mongólia e tem muito do extremo-oriente em sua identidade. Nasceu e viveu em um lugar ermo e isolado, mas é mais viajada e cosmopolita que muitos dos mais viajados e cosmopolitas hipsters paulistanos.

'Foi um choque'

"Sabe que eu nunca tinha pensado nisso?", diz a russa de 34 anos, ao ser questionada sobre essa particularidade biográfica. Lena parece estar sempre em busca de maximizar sua referência de "espaço". Ou de "lar".

A russa conversou com o TAB em um boteco pé-sujo no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo. Antes, a reportagem a acompanhou no templo Lohan, onde há aulas de kung fu. Ela optou por fazer as fotos no local porque admira e estuda a cultura chinesa.

"Chegar a São Paulo foi um grande contraste, um choque. Muito suja e vertical. Não me senti perdida porque já morei em Xangai e Tóquio e porque descobri a Liberdade. Sempre procuro pelo bairro oriental quando chego a uma cidade. É meu lugar de poder", explica.

Ela foi morar em Xangai em 2008, depois de estudar ciências sociais na Rússia. Lá, conheceu a capoeira e teve seu primeiro vislumbre de encantamento pela cultura brasileira. Até então, suas referências vinham basicamente do Carnaval e das novelas. Sim, as novelas brasileiras chegam à Sibéria. Lena se lembra de ter assistido, por exemplo, a "O Clone", da TV Globo.

"Comecei a aprender português com as cantigas da capoeira", conta a artista com um português impecável. "O que mais me atraiu na capoeira foi seu ritmo e sua filosofia de resistência. Virou um modo de vida. Sempre que eu viajava, para a Suécia, para a Espanha, a primeira coisa que procurava era um grupo de capoeira."

Lena Kilina, no bairro da Liberdade, em São Paulo - Gsé Silva/UOL - Gsé Silva/UOL
Lena Kilina, no bairro da Liberdade, em São Paulo
Imagem: Gsé Silva/UOL

Dragão sem cabeça

O estranhamento inicial da russa com São Paulo tem a ver com sua paixão pela capoeira. Ela esperava encontrar na cidade mais brasilidades e teve de se contentar com um paliteiro cinzento banhado em fuligem e gente em situação de rua. Mas Lena Kilina agarrou com força um símbolo da degradação urbana.

Depois de passar um tempo na Suécia, onde fez mestrado em antropologia e sociologia, Lena voltou à China decidida a encaixar o Brasil em seus estudos. Conseguiu: em 2014, a Unicamp (Universidade de Campinas) lhe concedeu uma bolsa de estudos para um doutorado.

A ideia era pesquisar alguma questão relacionada aos Brics (agrupamento de países emergentes — Brasil, Rússia, China, Índia, África do Sul), mas o foco mudou com seu crescente interesse em urbanismo e depois que foi apresentada ao Minhocão.

"Um amigo me falou que tinha esse espaço interessante aqui. Fui lá caminhar e comecei a pesquisar a respeito", diz Lena. "O Minhocão é um lugar meio único no mundo. Nem em Xangai tem algo assim. Na verdade, São Paulo é como um dragão sem cabeça, com o centro totalmente abandonado."

Durante cinco meses, a pesquisadora dormiu e acordou respirando seu objeto de estudo. Com ajuda da Associação Parque Minhocão, morou em um apartamento de frente para o viaduto. Sua tese traçou um paralelo entre o Minhocão e um distrito de Xangai, que foi demolido, chamado Red Town.

Em seu artigo a respeito da tese, Lena explica suas intenções: "o contraste entre o Minhocão e o Red Town de Xangai procurou identificar alguns fatores-chave em relação a como um espaço 'funciona' e o outro não", escreve a pesquisadora.

No caso, ela identificou que Red Town não funciona nem como um polo artístico nem como área de lazer — ao contrário do Minhocão, que, apesar de tudo, consegue promover interação entre a região, moradores e visitantes.

Antropologia multimídia

Lena não gosta de cidades pequenas. Ela não tinha muito o que fazer durante sua infância na Sibéria. Um dos poucos passatempos da família era atravessar a fronteira com a China para mudar de ares.

Qual era o passatempo de uma criança siberiana? Alguma brincadeira específica? Um rio para nadar no verão, talvez? "Não, nada", responde.

A aridez geográfica e metafísica da terra natal não significou, no entanto, aridez espiritual. As artes sempre fizeram parte dos estudos e interesses. Hoje, ela começa a arriscar uma mescla, ainda incipiente, de antropologia com fotografia e performance.

Autodidata, Lena tem conseguido apresentar seus números. Uma reportagem de abril do ano passado do site "Russia Beyond" a colocou como uma das responsáveis por fazer a "performance radical russa" ganhar fôlego no Brasil.

Lena aparece na reportagem ao lado do performer russo Fyodor Pavlov-Andreevich, que costuma se apresentar totalmente nu em locais públicos de grande circulação. Na época, ele ficou sentado sobre um monte de pedras em uma esquina da rua Oscar Freire, em São Paulo.

Não à culpa coletiva

Lena aguarda a publicação de sua tese de doutorado e tenta renovar seu visto de estudante. Ela foi aceita para uma residência artística no Teatro Oficina e conta com isso para permanecer no Brasil. Até porque não tem planos de deixar o país, muito menos de voltar para a Rússia.

Ela é contra Putin, mas também é contra a ideia de "culpa coletiva" que o mundo vem aplicando ao seu país. "Para os ucranianos e para as pessoas em geral, Putin é sinônimo de Rússia. Isso é um absurdo."

Diferentemente de muitos no Ocidente, Lena não alimenta ilusões sobre uma possível queda de Vladimir Putin. Ela acha que isso só aconteceria se a situação política na Rússia se deteriorasse ao extremo. Nesse caso, a deposição de Putin viria por meio de uma revolução.

Caminhando até o prédio onde Lena vive, ao lado da Praça da Sé, a reportagem menciona a paranoia ocidental sobre a possibilidade de Putin vir a usar armas nucleares. Infelizmente, para a russa, não se trata de uma paranoia assim tão desarrazoada. "Tenho medo de ele fazer isso para mostrar que é 'macho'."