Em tempos de vacas magras, carne bovina quase some dos PFs de São Paulo
Brás é o lugar de São Paulo que tem as calçadas mais congestionadas que as ruas. As lojas populares do bairro têm concorrência logo na porta. Camelôs esticam lonas junto ao meio-fio e oferecem todo tipo de quinquilharia pirateada. Também tem gente vendendo quentinha, produto que não é falsificado, mas com PF (prato feito) diferente do original: falta a carne.
Essa é a condição para manter o preço da marmita a R$ 8, explica Rodrigo Lopes de Souza, 40. As refeições têm arroz, fritas e frango ou porco. Carne bovina, nem de segunda. A salada também foi limada do cardápio. Assim como as grandes indústrias de alimentos reduziram o tamanho do pacote de bolacha para não subir o preço, Souza reduziu o tamanho da marmita de 850 ml para 750 ml. O comerciante ressalta que não escondeu a informação do cliente.
"Parte da clientela reclamou, mas eles têm que entender que por esse preço é o que conseguem comprar."
O que mais assusta o vendedor é que o valor está inacessível para parte do público. Para os bolivianos que trabalham na feirinha da madrugada, 9h já é hora de almoço, mas eles passaram a comer no serviço. Haitianos, nigerianos e peruanos também sumiram. Os brasileiros ainda compram, mas às vezes é preciso fazer malabarismos. De tempos em tempos, aparece alguém oferecendo mercadoria, como uma peça de roupa, em troca de arroz, fritas e um naco de carne de frango ou porco.
Quando economistas dizem que os mais pobres são os mais prejudicados pela inflação, é da clientela de Souza que estão falando. De tanto trocar roupa por comida, ele anda trabalhado nas marcas: camisa polo da Lacoste, calça Tommy, boné Quiksilver e pochete Oakley. Tudo made in Brás.
Com a prévia da inflação de abril batendo 1,73%, índice mais alto desde 1995, o ambulante continuará restringindo as opções. O tradicional cardápio de São Paulo — virado à paulista na segunda-feira; bife a rolê na terça; feijoada na quarta etc. — já foi para o espaço. Ficou só uma versão popular da feijoada. "Não tem carne seca, paio e estas coisas. Foi tudo substituído."
Regiane Andrade, 44, está do outro lado do balcão. Funcionária dos comércios do Brás, ela substituiu o almoço por um lanche. Com tanta gente fazendo o mesmo, os restaurantes do Brás começaram a oferecer combos. Pelo menos duas vezes na semana, a principal refeição do dia da vendedora é um sanduíche de queijo com refrigerante.
Já faz tanto tempo que é assim que o estômago acostumou e não reclama de fome durante a tarde. Ela gosta mesmo é de arroz, feijão e carne, mas enfrentando uma crise financeira particular desde a pandemia, quando almoça PF a mistura é frango, linguiça ou ovo. "Não é aquilo que eu queria comer, mas é o que eu posso."
Fantasma que voltou
Fazer refeições regulares é um desafio em toda a natureza. Boa parte dos documentários sobre a vida selvagem mostram a luta pela sobrevivência enfocando a busca por comida. Mesmo a espécie no topo da cadeia alimentar, o ser humano, penou por centena de milhares de anos para ter acesso a três refeições diárias.
Boa parcela da humanidade conseguiu, mas comer mais de uma vez por dia ainda é uma questão a ser resolvida em muitos lugares. Por um período, pareceu que a fome tinha deixado de ser um problema no país. Só pareceu. A pandemia escancarou a forma precária com que muitos brasileiros têm se alimentado. Quem não consegue comer direito perde saúde, sossego e relações sociais.
O casal Camila Gomes, 25, e Ricardo Augusto, 22, encara essa realidade quando chega o meio-dia. Vendedores em lojas do Brás, eles vão ao restaurante e pedem uma marmita para dividir. Ela come primeiro, tomando o cuidado de não devorar tudo. O que sobra fica para o marido.
É assim todas as vezes que o patrão oferece oportunidade de fazer hora extra. O dinheiro é bem-vindo, mas eles chegam em casa tarde e não conseguem cozinhar e levar comida para o trabalho no dia seguinte. Para a renda extra não virar fumaça, controlam as vontades do estômago.
Os restaurantes se adaptam como podem. O estabelecimento que Raphaela Machado, 30, gerencia não trabalha mais com cardápio tradicional. "A gente não faz mais porque não tinha saída." No lugar, vai o que tiver mais barato no dia.
Nas paredes foram colados cartazes amarelos com bordas vermelhas, iguais aos dos supermercados populares. A função é a mesma: anunciar as promoções do dia. "Geralmente é frango", diz Raphaela. Ela explica que, pela lei não escrita do Brás, pode-se mudar o cardápio. Diminuir o tamanho dos pratos seria sacrilégio.
Aperto em bairro de classe média
A Lapa é um bairro de lojas mais sofisticadas e imóveis em melhor estado de conservação que o Brás. A convergência entre os dois lugares é o malabarismo feito pelos restaurantes. Aberto em novembro de 2021, o Carlão Pub's precisou de pouco tempo de funcionamento para descobrir que precisava adaptar o cardápio.
"A gente vendia o comercial por R$ 17,90, mas precisamos lançar um PF com menos comida no prato por R$ 15", explica o gerente Francisco Matias, 54.
Na Zebu Grill e Churrascaria, aberta próxima ao Mercado da Lapa, deveria haver movimento às 14h, mas as almas no salão eram de funcionários zanzando sem muito a fazer e um homem atarracado atrás do balcão com expressão sisuda.
"Você quer saber se o movimento caiu?", pergunta o homem. "Não caiu, não. Só uns 80%", diz, com a ironia amargurada de quem chegou ao limite. "Não estou conseguindo pagar nem as contas de água e luz. Eu tinha uns 500, 600 clientes por dia. Hoje tenho 50, 60."
Jorge Umbelino, 56, é um chafariz de rancor e desesperança. O proprietário fala com convicção que não há mais saída com a inflação nesses níveis. Há um ano, ele cobrava R$ 24,99 para o bufê livre. Hoje, quem quiser comer à vontade precisa desembolsar R$ 49,99.
Fígado toma lugar da picanha
O impacto da inflação complicou outro elo da cadeia da alimentação, os açougues. A placa para atrair clientes ao Atacadão das Carnes, no Brás, informa que o mocotó custa R$ 7,99. O freezer voltado para a rua tem linguiça, frango inteiro, costela suína e uma única carne bovina: acém, opção de segunda. O gerente Carlos Eduardo Miranda, 36, conta que o campeão de vendas é o sarapatel, prato de origem nordestina feito de fígado, bofe, língua, goela e coração de porco. O chamariz é o preço, R$ 5,99.
"Os haitianos levam bastante. Vendemos 200 quilos por semana."
Fígado de boi é outro miúdo que tem saída, coisa de 100 quilos por semana. A picanha só encontra alguns clientes na quarta-feira, dia da promoção. Miranda conta que o açougue atende moradores e restaurantes do Brás e há dois meses o cenário é esse. Ele afirma que os efeitos do auxílio emergencial ainda não chegaram ao bairro.
O que chegou foi a demanda por ovo. Há quatro meses, o açougue começou a vender e a saída é cada vez melhor. O mesmo acontece no restaurante de Expedito Azevedo Aguiar, 42. O proprietário diz que todo dia aparecem muitos clientes perguntado se ele aceita fazer prato de arroz, feijão e ovo por R$ 10. "Você vai deixar de vender?"
Expedito declara que a variação sem carne está cada vez mais comum. Das 100 refeições vendidas no almoço, 20 são com ovo. No restaurante de Elenice Ferreira, 42, não há mais opção de prato com filé mignon e picanha. O cardápio tradicional aparece no menu só para constar. "Pessoal quer comida de R$ 15. O que vende é fígado, costela, frango e ovo."
No meio da crise, Celso Manoel da Silva, 49, gerencia um lugar em que o faturamento cresceu 10%. Ele vende coxinha a R$ 1,99. "Meu diferencial é o preço."
O novo normal é matar a fome com um salgado.
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