'É fã ou é hater?': jovem atinge topo das paradas com disco de mentira
Foi numa segunda-feira de abril que Valéria Almeida alcançou o primeiro lugar no iTunes, entre os álbuns e músicas mais vendidos da plataforma. Por um dia, ela deixou para trás Elton John, Harry Styles e Anitta, esteve no topo das músicas virais do Spotify, figurou na lista dos tópicos mais comentados do Twitter e foi parar no telão do programa "Encontro com Fátima Bernardes", que costuma repercutir os assuntos da rede social.
Completamente alheia às conquistas, a tal artista começava mais uma semana de labuta e dobrava peças de roupa numa loja do Polo Shopping, em Indaiatuba (SP), quando o celular passou a vibrar sem parar. Eram mensagens e notificações com a boa nova: seu álbum de estreia, "Secrets", estava entre os mais comentados e ouvidos — mesmo que ela nunca tenha gravado uma música sequer.
Valéria achou que se tratava de meme — seria apenas mais um entre tantas montagens com fotos suas que correm os rincões digitais há pelo menos dois anos. Foi checar no Spotify. Ali, seu rosto pequeno (com o formato de uma borboleta sobreposta) aparecia na capa de um disco que nunca imaginou lançar, mas que alcançaria, ainda naquela semana, mais de 100 mil ouvintes, número que muitos artistas independentes lutam para alcançar.
A loja parou. A equipe também estava incrédula. "Fiquei muito chocada. Só acreditei quando vi com meus próprios olhos. Pensei, 'meu Deus, como assim? Eu realmente fiquei conhecida'", conta. Na praça de alimentação, na hora do almoço, a balconista fez um stories para seus pouco mais de 20 mil seguidores. Estava mais feliz do que intrigada: "Tô passada até agora", disse.
O álbum misterioso rendeu inúmeras citações em sites de fofoca e blogs que perguntavam: "Quem é Valéria Almeida?". A ficção deu conta do resto. Uma enxurrada de posts e montagens imaginavam a "revelação" vivendo situações dignas de uma diva pop: na festa de lançamento do álbum, no Grammy, na prateleira das grandes lojas de discos. Teve até quem analisasse a obra a sério: "Inesperadamente experimental, muito coeso em seu estilo", diz o youtuber Zane, no canal "One Take Reviews", ao notar a boa nota do disco no Rate Your Music, banco de dados colaborativo que cataloga e avalia álbuns do mundo todo.
Apesar das resenhas e da aparente seriedade, o "álbum" foi feito à revelia. As faixas não são bem músicas, mas vinhetas que misturam batidas genéricas, samples conhecidos e a voz abafada de Valéria, retirada de seus stories e vídeos. Era uma brincadeira de seus "fãs", um grupo anônimo que se dedica a manter o nome de Valéria vivo nas rodinhas virtuais, manipulando seus rastros na internet — nem sempre de forma positiva. Até um "Portal Valéria Almeida" foi criado para gerar barulho.
Em tempo de fanfic, o episódio revela uma história de amor e ódio que começa em 2020, quando Valéria ascendeu ao Olimpo memético do Twitter como uma espécie de sósia da cantora norte-americana Selena Gomez. Desde então, ela passou a "conviver" com pessoas que a acompanham online e na vida real, sem nunca entender suas intenções. "Parece que são duas personalidades, uma hora é fã, outra hora é hater. Não entendo até hoje", desabafa à reportagem do TAB.
Duas vidas
"Vamos falar rapidinho, daqui a pouco eu tenho que ir", diz Valéria, ao celular. Duas semanas depois da explosão midiática, a rotina da jovem de 24 anos permanecia a mesma. Ela tinha exatamente meia hora para se arrumar e subir no ônibus rumo ao shopping onde trabalha — antes, dava expediente num fast food de frango frito; agora, numa franquia de roupas masculinas.
Folga apenas às quintas-feiras. É quando costuma ir aos karaokês de Indaiatuba e região para "treinar", sempre maquiada e com penteado. "Desde criança meu sonho é ser cantora", diz. Quem frequenta sabe da fama como sósia de Gomez, que começou a carreira ainda criança. "Me acham famosa, fico muito contente."
Os vídeos em que dublava músicas da norte-americana viralizaram no TikTok por causa das tais semelhanças. "O povo começou a comentar que a gente era parecida e pensei: por que não aproveitar isso?", conta. "Quando era mais nova parecia bem mais, tinha um rosto mais inchadinho, digamos."
Já sobre o gogó, ela é consciente das próprias limitações. "Eu ligo o foda-se. Penso na Pabllo Vittar. No início, ela não cantava nada e hoje a gata está como? Maravilhosa. Sou fã dela e tenho ela como exemplo."
Como um bom meme, é difícil explicar por que Valéria viralizou, mas, na época, até a atriz Bruna Marquezine repostou o vídeo da "impersonator" explicando, em inglês, sua paixão por Gomez. Aos poucos, surgiram grupos e perfis dedicados à artista cover, simulando fã-clubes. O álbum é a cereja do bolo na construção dessa realidade paralela.
Os pais de Valéria não entendem muito bem o que todas essas mensagens e posts significam. A mãe, ela conta, é a mais preocupada. Até hoje, os chamados "portais" e "centrais" fazem comentários que ironizam sua corporatura e aparência. Não raro, divulgam fotos que distorcem seu rosto. Outras imagens, dignas de paparazzi, parecem ter sido feitas às escondidas, na praça de alimentação do shopping. São sempre acompanhadas de histórias mirabolantes. Nas últimas semanas, um nude alterado foi usado nas publicações: "Olha! Nossa diva no OnlyFans!", dizia um post.
Algumas mensagens a afetam. Quando isso acontece, Valéria desativa seus perfis nas redes sociais.
'Você é fã ou hater?'
"Existem dois tipos de pessoas que consomem isso. Tem um grupo que está ali pelo meme, acham-na divertida, e a história, inusitada. Mas há um grupo organizado e muito grande que está ali para fazer chacota da forma mais negativa que você possa imaginar", explica Kaerre Neto, líder de comunidades para agências e marcas.
Essa sinergia funciona em fóruns, comunidades e grupos de WhatsApp e Telegram e costuma reunir jovens de 20 e poucos anos, interessados em música pop, notícias de celebridades e posições nas paradas de sucesso. Ali, tanto faz falar bem ou falar mal. "Ter fama é ter assunto", explica Kaerre. "Organicamente eles criam assuntos por dispararem coisas sincronizadas num curto intervalo de tempo."
Esse engajamento poderoso é visto como ouro para marcas, empresas e artistas como Anitta, que emplacou "Envolver", uma música de verdade, no topo das músicas mais ouvidas globalmente no Spotify graças ao trabalho de seu fã-clube. "O Spotify é um consumo em massa, a galera insere o meme dentro dessa cultura e cria uma carreira musical pra ele, pra isso: virar assunto."
Kaerre nota, no entanto, uma tendência: comentários humilhantes e misóginos passaram a ser comuns nesses espaços. "Quem tem o poder de virar isso a favor dela é a própria pessoa", defende. Ele dá o exemplo da cantora Pepita, que viralizou com memes sobre sua aparência. Na época, a base de fãs também criou músicas fictícias. Hoje, ela mesma lança seu conteúdo em streaming e se tornou influenciadora digital. "Ela tomou controle da própria imagem e é um ícone."
Valéria afirma que não sabe os nomes dos membros desse "fã-clube" às avessas: os perfis realmente são anônimos e não mostram o rosto. Hoje, fala sem pesar (e falsa modéstia). "A pessoa por trás da rede social pode achar uma coisa ou outra, cada um tem sua opinião. Eu me acho maravilhosa", explica. "Nem a Selena Gomez tem paciência, porque eu vou ter?"
Sua preocupação agora está nos direitos autorais. Ainda que não seja um álbum de verdade, para uma música integrar uma plataforma de streaming é preciso cadastrar créditos de produção e composição. O nome da balconista aparece ali, embora ela não tenha recebido dinheiro pelas reproduções das músicas. "Eles ficaram de picuinha comigo e eu não consegui até agora saber o quanto se ganha. Era uma brincadeira, mas eu deveria estar ganhando por isso."
Após questionamento sobre possíveis lucros, o Portal explicou que o disco era, sim, de mentira, mas as bases são de outra autoria. "Ela mesma sabia disso e entendeu que, se houvesse lucro, a distribuidora iria reverter em 45 dias", diz a mensagem no Twitter. O TAB tentou contato com o Portal, sem sucesso. O Spotify também não respondeu à reportagem.
Desde então, o grupo decidiu romper com Valéria, afirmando que ela não aceita "ser lembrada por ser um meme". Por isso, o álbum mais ouvido naquele 11 de abril, será retirado gradativamente das plataformas. "Muitas pessoas pediram para [nos] dedicar a outra subceleb/meme, mas nossa intenção no momento é desativar por completo!"
Antes de encerrarem as atividades, fizeram um "exposed" com mensagens antigas de Valéria no Twitter, com cunho racista e de apoio ao presidente Jair Bolsonaro — conteúdo inaceitável pelos seguidores. Ela se defende: "Sou bem diferente da Valéria do passado".
Fato é que agora ela quer lançar um disco próprio. "Já escrevi a primeira letra, é sobre minha história, sobre superação e amor próprio, mas sei que preciso crescer fazendo covers primeiro", explica. Para isso, diz contar com a ajuda de um amigo com tino empresarial. "Ele estava vendo de conseguir me levar no Ratinho."
Enquanto esse dia não chega, ela vive pequenos lampejos da fama inesperada, mas teme os efeitos na sua rotina mundana. "Alguns fãs vão lá no trabalho. Tem quem liga na loja para falar comigo, fica uma situação chata. A gerente já veio conversar comigo sobre isso, ela não curte", diz, antes de bater o ponto em mais um dia de trabalho.
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