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'Dano por ricochete': fiéis dos Arautos do Evangelho processam por 'ofensa'

Arautos do Evangelho - Jefferson Coppola/Folhapress
Arautos do Evangelho
Imagem: Jefferson Coppola/Folhapress

Do TAB, em São Paulo

27/06/2022 04h01

Nos primeiros dias de junho, a empregada doméstica Maria Salete Schroeder, 52, de Joinville (SC), foi surpreendida por uma notícia: tinha sido condenada a pagar R$ 11,5 mil de indenização aos Arautos do Evangelho.

Há três anos, a organização católica é alvo de denúncias de assédio e violações de direitos humanos. Os Arautos oferecem cursos e atividades extracurriculares a crianças e adolescentes em escolas e centros juvenis, espalhados pelo país. As denúncias são feitas por ex-integrantes e seus familiares e compõem um processo da Defensoria Pública de São Paulo, que corre em segredo de Justiça. Salete é uma delas.

A filha de Salete foi interna do colégio paulista dos Arautos entre 2012 e 2018. No último ano, a mãe trabalhou em serviços de limpeza e na cozinha do internato, onde diz ter testemunhado o assédio a estudantes.

"Eles diziam que o mundo ia acabar. Eu via até criança chorando com medo", lembra. Em 2019, Salete pediu demissão e a filha também quis se afastar da escola. "Um dia, comentei no Facebook que não apoiava os Arautos. Passei a contar a outros pais o que tinha visto e o que minha filha tinha passado lá dentro."

A indenização que Salete foi condenada a pagar é uma das ações que os Arautos do Evangelho e seus fiéis abriram contra quem os denuncia. Um levantamento inédito feito pelo TAB identificou ao menos 20 processos e inquéritos por calúnia e difamação à organização religiosa.

Onze dessas ações são dirigidas à corretora de imóveis Patrícia Sampaio, 38, de Águas Claras (DF) — uma queixa-crime aberta pelos próprios Arautos na Vara Criminal de São Paulo e outros dez processos por danos morais movidos principalmente por pais de alunos no Juizado Especial de diversas cidades, totalizando R$ 280 mil em pedidos de indenização.

As ações descrevem Patrícia como "mãe de ex-aluno do Colégio Arautos do Evangelho que, inconformada com as regras e disciplina que regem as atividades desenvolvidas na instituição de ensino, passou a orquestrar desde o ano de 2019 uma campanha difamatória contra a Ordem Religiosa".

'Fui pega de surpresa'

Em 2017, integrantes dos Arautos visitaram a escola onde estudava o filho de Patrícia. Fizeram um sorteio de uma bolsa de estudos no programa de música "Futuro e Vida" e ele foi o escolhido. Pouco tempo depois, foi contemplado com outra vaga: mudaria-se do Distrito Federal para o colégio em Cotia, na Grande São Paulo.

O filho de Patrícia passou quase dois anos no internato e, nesse período, ela lembra, era muito difícil conversar com o adolescente. Em 2019 ela decidiu buscar o garoto de 14 anos, após ver vídeos de exorcismo gravados nas instalações. "Não é um lugar em que uma criança deva estar, né?", diz ao TAB.

Na queixa-crime, protocolada em São Paulo, os Arautos acusam Patrícia e Maria Salete de difamá-los no blog Ex-Arautos do Evangelho, página que reúne textos, vídeos e fotos com denúncias contra a instituição.

"Muitas pessoas precisavam do anonimato, mas alguém precisava colocar o blog no ar", conta Patrícia. "Foi quando recebi meu primeiro processo", explica a corretora. "Depois, quando mostrei o rosto em uma reportagem do 'Fantástico' [em outubro de 2019], começaram a aparecer as outras ações."

Em 2020, foi a vez de Maria Salete se tornar ré em uma ação por danos morais de R$ 50 mil em Joinville. Foi condenada a pagar R$ 10 mil, mais 15% de honorários advocatícios, uma decisão judicial por revelia, o que quer dizer que a ré não se defendeu a tempo. "Desconhecia esse processo", Salete relata ao TAB. Ela ainda perdeu o prazo de recurso da decisão. "Fui pega de surpresa."

Patrícia Sampaio e o filho dela, ex-Arautos, no colégio da instituição em São Paulo, em 2018 - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Patrícia Sampaio e o filho dela, ex-Arautos, no colégio da instituição em São Paulo, em 2018
Imagem: Acervo pessoal

ArautoLeaks

No início de novembro de 2019, Fátima* recebeu em sua casa, no Canadá, uma carta assinada por um escritório internacional de advogados. Era uma notificação extrajudicial por difamação contra os Arautos do Evangelho e seu fundador, João Scognamiglio Clá Dias, ex-membro da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade).

Num vídeo que gravou e divulgou no site ArautoLeaks, ela relata que, quando fez parte do grupo conservador, entre 2004 e 2014, foi abusada sexualmente em "numerosas ocasiões" por Clá Dias, inclusive no confessionário. Ela diz que o líder religioso tocou em seus seios e nádegas, a contragosto, e a beijou na boca e no pescoço — alguns dos beijos, em público.

A correspondência exigia uma retratação, mediante uma declaração juramentada e a gravação de um novo vídeo, em até dez dias. Caso contrário, eles iriam processá-la criminalmente.

Ela não se retratou. Mas, desde então, prefere não comentar o assunto.

João Clá Dias, fundador dos Arautos do Evangelho - Reprodução/Arautos do Evangelho - Reprodução/Arautos do Evangelho
João Clá Dias, fundador dos Arautos do Evangelho
Imagem: Reprodução/Arautos do Evangelho
João Clá Dias realiza ritual para libertar de possessão jovem fiel dos Arautos do Evangelho - Reprodução - Reprodução
João Clá Dias, em 2017, durante ritual de exorcismo em jovem fiel dos Arautos do Evangelho
Imagem: Reprodução

Dano 'por ricochete'

Além das queixas-crime e dos processos abertos pela própria organização, as demais ações foram abertas por simpatizantes do grupo, pais de alunos e ex-alunos, e dois deles por autores que se identificam como "participantes ativos" dos Arautos, vivendo "uma vida segundo a crença e a religiosidade". Um dos argumentos levantados é dano moral indireto, "por ricochete".

Protocolados em Miracema (RJ), os dois processos contra Patrícia alegam que os autores se sentem prejudicados "diuturnamente" com os questionamentos e as "vexações" publicadas em reportagens.

Repetem-se argumentos de que a repercussão causou "grave dano à imagem da Associação/Ordem e do Colégio e, de modo reflexo, causou grave dano à vida pessoal do Autor", citando questionamentos no trabalho "ou onde quer que vá".

Além de São Paulo, Joinville e Miracema, foram abertas ações em Cuiabá, Cantagalo (RJ), Riacho Fundo (DF) e Núcleo Bandeirante, cidade-satélite de Brasília. Nos processos constam trechos idênticos como "tudo isso tem causando máculas indeléveis e danos irreparáveis que jamais serão cicatrizados" — o que, para João Eberhardt Francisco, pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, pode indicar uma ação coordenada. "Isso seria um indicativo de que há alguém por trás."

Segundo Rosiley Piva, advogada que defende Patrícia, trata-se de uma "estratégia de intimidação". "Eles querem mostrar que não é só a associação Arautos que está indignada, que os simpatizantes também se sentem assim." Rosiley é tia de uma ex-aluna dos Arautos e também citada na queixa-crime de São Paulo.

Nas contas da advogada, ao todo foram abertas 25 ações cíveis e criminais contra pessoas que denunciaram os Arautos.

'Vão para o inferno'

A sobrinha de Rosiley estudou no colégio dos Arautos em Caieiras (SP). Quando foram divulgados os vídeos de exorcismo, a advogada foi convidada a entrar num grupo de mães no WhatsApp para discutir o que acontecia na instituição.

Abaixo-assinado de fiéis dos Arautos convocando outras pessoas a "reagirem" contra denúncias - Reprodução - Reprodução
Abaixo-assinado de fiéis dos Arautos convocando outras pessoas a 'reagirem' contra denúncias
Imagem: Reprodução

Rosiley diz que deu apoio jurídico informal aos pais e ex-estudantes que decidiram denunciar os assédios. "A primeira intimidação é dentro da associação: eles fazem uma retaliação espiritual baseada na culpa e no medo. Se as pessoas demonstram desejo de sair, passar um tempo na casa dos pais, eles dizem que elas vão para o inferno", relata. "Depois, quando esses ex-membros decidem denunciar, eles [Arautos] acabam entrando com medidas judiciais."

O TAB procurou os advogados dos Arautos do Evangelho para comentar as ações. A reportagem também perguntou se há investigações internas para apurar possíveis violações de direitos humanos.

Os advogados Marcelo Knopfelmacher e Felipe Locke Cavalcanti, que respondem pela associação, declararam, em nota, que "os processos da Instituição dos Arautos do Evangelho sob nossa responsabilidade se encontram sob segredo de Justiça, razão pela qual não podemos comentar estratégias processuais ou mesmo o estágio em que se encontram e suas respectivas decisões".

No e-mail seguinte à nota, Felipe escreveu: "Oi, Marcelo, eu não falaria em estratégias processuais." O TAB foi o destinatário da mensagem.

Seminaristas do colégio vocacional dos Arautos do Evangelho, em Caieiras (SP) - Lalo de Almeida/Folhapress - Lalo de Almeida/Folhapress
Seminaristas do colégio vocacional dos Arautos do Evangelho, em Caieiras (SP)
Imagem: Lalo de Almeida/Folhapress

'Estratégias processuais'

O que corre em segredo de Justiça, na verdade, é o processo da Defensoria Pública de São Paulo contra os próprios Arautos.

Daniel Palotti Secco, responsável pelo caso, afirma que o Judiciário e a Polícia Civil vêm sendo utilizados como "instrumentos de intimidação" contra as vítimas.

"A imensa maioria das ações é julgada improcedente, pois fica óbvio que não há base jurídica", afirma ele. De fato, ao menos 12 já foram arquivadas.

Para Daniel, ajuizar ações em comarcas diferentes e por intermédio de terceiros é uma estratégia para tornar a defesa das vítimas ainda mais trabalhosa. "Isso não é novo e já foi utilizado por outra igreja, inclusive, contra jornalistas que publicaram reportagens críticas", diz.

Em 2008, a Igreja Universal do Reino de Deus foi acusada de orientar seus fiéis a processar jornalistas e veículos em diversas cidades, após a divulgação de denúncias relacionadas à instituição.

À época, a advogada Taís Gasparian atuou na defesa da jornalista Elvira Lobato, da Folha de S.Paulo. Segundo Gasparian, essa "técnica de intimidação tem sido detectada no mundo inteiro" em processos abertos por "pessoas que se dizem ofendidas por algo que foi noticiado".

"Elas não estão interessadas no resultado do processo. O objetivo é causar constrangimento", afirma. "Essas pessoas procuram esconder o que fazem. E é uma questão de interesse público saber o que faz uma associação com tanto poder e tantos fiéis."

* Nome alterado para preservar a identidade da testemunha