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Colado nos muros, jornal mais antigo de São João Del-Rei (MG) faz 70 anos

Cláudio José Monteiro, o ex-técnico em mecânica que faz sozinho o Jornal do Poste em São João Del-Rei - Lucas Lanna/UOL
Cláudio José Monteiro, o ex-técnico em mecânica que faz sozinho o Jornal do Poste em São João Del-Rei
Imagem: Lucas Lanna/UOL

Lucas Lanna

Colaboração para o TAB, de São João Del-Rei (MG)

09/07/2022 04h01

Todas as quintas-feiras pela manhã, Cláudio José Monteiro desce os 22 degraus que separam sua casa da redação do Jornal do Poste, um boletim semanal de notícias em São João del-Rei (MG).

Os movimentos são sempre os mesmos: ele chega, acende um cigarro de palha, liga o computador de tubo no qual está conectada a impressora de papel contínuo que imprime o jornal e em seguida liga o notebook para checar e-mail. Confere os informes da polícia, dos bombeiros e de assessores de imprensa. Vez ou outra, liga o rádio. Separa, então, os assuntos que considera mais importantes e começa a montar o noticiário, que será impresso no dia seguinte.

O jornal que Cláudio edita seria apenas mais um se não tivesse uma singularidade: as quatro páginas de notícias que o compõem são coladas em murais dispostos nas ruas da cidade. Elas ficam fixadas por tachinhas e fitas adesivas em placas de madeira de cerca de 1 x 1,40 m.

"Faço isso sozinho há 30 anos. Costumo falar que trabalho numa 'euquipe'", conta, dando gargalhadas. Aos 50 anos, ele ostenta um jeito bonachão e irônico, que acaba transparecendo nas matérias que escreve para criticar o poder público e autoridades.

"Agora, por exemplo, estou escrevendo um texto sobre o Damae [sigla do Departamento Autônomo Municipal de Água e Esgoto, responsável pelo serviço de saneamento básico da cidade]. Já tem uma semana que o bairro Tijuco está sem água e o Damae não faz nada. Vem aqui, inventa um monte de desculpa e vai embora sem resolver o problema. Aí, estou fazendo um texto chamado 'Damae e a loteria do caminhão-pipa', porque aqui, para você ter acesso à água do caminhão, é igual loteria, tem que ser sorteado", brinca.

Mesmo na contramão da modernidade — afinal, hoje são as informações que vão até as pessoas, e não o contrário —, o Jornal do Poste conta com número considerável de leitores. Com frequência as pessoas vão até a redação para pedir algum tipo de informação.

Imóvel onde funciona o Jornal do Poste, em São João Del-Rei (MG) - Lucas Lanna/UOL - Lucas Lanna/UOL
Imóvel onde funciona o Jornal do Poste, em São João Del-Rei (MG)
Imagem: Lucas Lanna/UOL

Serviço público

Enquanto conversava com a reportagem do TAB, Cláudio foi interrompido por um morador que queria saber se o problema da água já havia sido resolvido. Ao ouvir a negativa do editor do jornal, o morador se animou e, antes de ir embora, encorajou: "Escreve mesmo! Assim vão resolver o problema da gente rapidinho".

"Isso acontece direto", ressalta Cláudio. "O pessoal vê meu número no jornal e liga pra perguntar ou comentar notícias que foram publicadas. Em vez de achar ruim, eu acho bom, porque isso significa que as pessoas estão lendo o que escrevo."

Cláudio não mentiu e nem exagerou. Em uma hora, enquanto conversava com a reportagem, recebeu quatro ligações e uma mensagem, todas de leitores que queriam saber de uma vaga de emprego oferecida pelo CRAS (Centro de Referência da Assistência Social) divulgada pelo Jornal do Poste.

Ao longo das três décadas à frente do periódico, também já teve de lidar com vandalismo. Na maioria das vezes eram pessoas que rasgavam as notícias ou pichavam os murais. Houve casos em que os vândalos foram justamente os protagonistas dos artigos, mostrando, de maneira primitiva e rudimentar, a insatisfação com a liberdade de imprensa na cidade.

Rudimentar, no entanto, não é apenas o comportamento dos críticos. O próprio método que Cláudio usa para pregar as notícias nos murais é singelo, embora não deixe de ser original. Com uma colher de sopa na mão, ele tira as tachinhas que mantinham presas as folhas da semana anterior e as reaproveita para pregar as novas notícias.

A troca se dá em, no máximo, dois minutos. Tão logo Cláudio sai de perto do mural, leitores já se aproximam. São, na maior parte, homens com mais de 60 anos e, quase todos, extremamente retraídos.

"Eu sei que tenho um público que sempre lê o jornal, mas meu maior desafio é atrair a atenção das pessoas que não estão acostumadas a parar em frente aos murais para ler as notícias. Tenho que encontrar algo que atraia essas pessoas para que elas, de fato, leiam as matérias", afirma.

Cláudio José Monteiro, com a versão impressa -- a única -- do Jornal do Poste - Lucas Lanna/UOL - Lucas Lanna/UOL
Cláudio José Monteiro, com a versão impressa -- a única -- do Jornal do Poste
Imagem: Lucas Lanna/UOL

'Clickbait' analógico

Por isso, toda semana Cláudio tem que pensar em estratégias que tornem o Jornal do Poste chamativo para os pedestres. A solução foi apelar para fotos e notícias sensacionalistas. Crimes e ocorrências da Polícia Militar e dos Bombeiros estão presentes em todas as edições do jornal.

Embora esteja à frente do Jornal do Poste há décadas escrevendo e editando textos, Cláudio não é formado em jornalismo. Nem sequer pensou em seguir carreira no mundo das letras. Quando adolescente, fez curso técnico em mecânica pensando em trabalhar no setor industrial.

Nessa época, quem editava o Jornal do Poste era seu pai, José Firmino Monteiro, que sempre pedia uma ajuda na produção do periódico.

Em 1991, José Firmino morreu em decorrência de um AVC. Sentindo-se, então, na obrigação de continuar com o trabalho do pai, Cláudio abriu mão do desejo de trabalhar no ramo industrial para se dedicar exclusivamente ao Jornal do Poste.

Cláudio José Monteiro, o ex-técnico em mecânica que faz sozinho o Jornal do Poste em São João Del-Rei - Lucas Lanna/UOL - Lucas Lanna/UOL
Imagem: Lucas Lanna/UOL

Origens do Jornal do Poste

Apesar de estar há duas gerações na família de Cláudio, o Jornal do Poste foi comprado por José Firmino. O periódico foi criado em outubro de 1952 por Joanino Lobosque. À época, Lobosque tinha um bar em São João del-Rei chamado Bife de Ouro. Durante as madrugadas, ele se encarregava de escutar o noticiário noturno das rádios e transcrever as matérias que considerava de maior relevância para fixar nas paredes do bar no dia seguinte.

"Com o passar do tempo, tinha mais gente no Bife de Ouro querendo ler as notícias do que para consumir qualquer coisa de lá", afirma Cláudio, rindo. Vendo, então, essa mudança no perfil dos frequentadores, Lobosque decidiu fechar o bar e se dedicar exclusivamente ao jornal, inicialmente colado nos postes da cidade.

O atual editor do periódico explica que o nome é referência a uma senhora que viveu na cidade na década de 1910. Ela tinha como hábito escrever à mão notícias, poemas e crônicas de sua autoria e pregá-las nos postes. Seus escritos já eram conhecidos entre a população da cidade como Jornal do Poste. Lobosque, portanto, imitou essa senhora e profissionalizou a iniciativa.

Ele editou o Jornal do Poste até morrer, em 1985. Seu sucessor foi um amigo, o pai de Cláudio, que já escrevia artigos para o periódico e, de vez em quando, ajudava Lobosque na edição. Assim, no intuito de manter o legado de Lobosque, Monteiro propôs a compra do jornal.

"Joanino Lobosque era uma pessoa excêntrica", afirma Cláudio. "Ele tinha um serpentário ao lado da redação. Uma vez, o Hélio Garcia, ex-governador de Minas, foi sozinho visitar o Jornal do Poste. No meio da conversa, uma das cobras subiu pelas pernas dele. O homem tomou um susto, pulou da cadeira e saiu xingando, enquanto Joanino ria", destaca Cláudio. A cobra era inofensiva.

A guerra das placas

Embora a maioria das histórias do Jornal do Poste desperte em Cláudio lembranças positivas e bem-humoradas, há uma em especial que ele compartilha com um sentimento misto de alívio e aflição. Em 2017, o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) exigiram a retirada imediata dos jornais de muro — na esteira do Jornal do Poste, surgiram outros periódicos publicados em murais na cidade —, sob a justificativa de que eles contribuíam para a poluição visual do centro histórico da cidade.

As entidades tomaram a decisão com base no Artigo 18 do Decreto-Lei 25, de 1937, que diz que "sem prévia autorização do Iphan, não se poderá na vizinhança da coisa tombada fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade nem nela colocar anúncios ou cartazes sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirado o objetivo, impondo-se, neste caso, a multa de 50% do valor do mesmo objeto".

Resguardados pela prefeitura, que não concordou com as exigências das entidades de preservação, os editores dos jornais de muro não cumpriram a determinação, o que fez com que o caso fosse judicializado e denominado na cidade como a "guerra de placas".
"O Jornal do Poste, que é o mais antigo de São João del-Rei, vai fazer 70 anos. Não faz sentido nenhum acabar com ele agora, depois de décadas desde sua fundação", reclama Cláudio.

A "guerra das placas", no entanto, excedeu a esfera judicial e foi parar na Câmara Municipal. Enquanto o embate ainda ocorria nos fóruns, os vereadores decidiram, por unanimidade, aprovar projeto de lei que transformava os jornais de muro em patrimônio da cidade.

"Em momento nenhum pensei em desistir", afirma Cláudio. "Comprei a briga e hoje dou continuidade ao legado do Joanino e do meu pai. Passei por momentos difíceis, mas considero o jornal minha vida. Enquanto eu estiver vivo, ele vai continuar sendo publicado", afirma.

Depois da conversa, o silêncio imperou. Foi quebrado, contudo, pela voz de Sandra de Sá que, num radinho ligado em volume bem baixo, cantava: "Você vai me conhecer. Vai me ver de um jeito que nunca viu" — sintetizando, em duas frases, tudo o que Cláudio contou.