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Depressão, 4 UTIs, 20 kg a mais: João Gordo tenta pagar 'faturas da vida'

João Gordo na barbearia Buena Vista, na Vila Madalena, em São Paulo - Lucas Lima/UOL
João Gordo na barbearia Buena Vista, na Vila Madalena, em São Paulo
Imagem: Lucas Lima/UOL

Adriana Terra

Colaboração para o TAB, de São Paulo

19/08/2022 04h01

Em março de 2020, João Gordo já tinha certeza de que ninguém sairia melhor da pandemia de covid-19. "Eu saí muito pior, saí completamente louco", diz ele. Pudera: a pandemia do músico havia começado antes. No segundo semestre de 2019, o vocalista do Ratos de Porão pegou uma pneumonia e passou por longa internação. Em dezembro daquele ano, fazia fisioterapia para recuperar o fôlego e, quando se sentiu melhor para subir ao palco com a banda, veio o coronavírus.

"Entrei em parafuso, depressão, engordei 20 quilos e, para piorar, chegaram as faturas todas da vida. Tô numa batalha aí", diz. A luta é feita de confrontos quase diários até hoje. Foi e voltou da UTI quatro vezes. No fim de junho, Gordo postou uma foto fazendo nebulização depois de passar mal. Na legenda da foto no Instagram, postou: "quilômetros de cigarro e montanha de maconha, alguns passam ileso, outros não. Pulmãozinho veio de guerra".

Ainda hoje afirma subir aos palcos "meio enfermo, meio doente". Cancelou parte da turnê internacional porque, além de ter engordado, os aviões ficaram menores. O joelho apita. A coluna também dói. "Tenho artrose. Ou eu vou de pimpão na classe boy ou não vou, não dá pra ir."

Depois de uma entrevista a Rafinha Bastos, foi procurado pelo dono de uma clínica de emagrecimento. "O cara trata o vício da obesidade como compulsão, e eu aqui passando mal, tendo uma vida horrível. Ele falou: 'ou vai ou racha', e me mandou para o psiquiatra. Na primeira piada que soltei, ele disse: 'você tá rindo do quê? Isso é uma bomba-relógio, vamos tratar essa porra aqui."

João Gordo quer chegar aos 60 — ele está com 58 anos. Para isso, tem tido acompanhamento médico que inclui profissionais de nutrição e psiquiatria. Apesar da postura pessimista, descrente de uma melhora do país e do mundo como em um passe de mágica, o músico paulistano criado nos anos 1960 no Tucuruvi, na zona norte de São Paulo, vive bastante o presente e olha para frente, com projetos e uma rotina de trabalho social que se intensificou nos últimos dois anos.

No período de reclusão na pandemia, lançou quatro álbuns. Entrava no estúdio de casa, compartilhava músicas no WhatsApp, chamava parceiros. Fez um projeto de death metal com Antonio Araújo, do Korzus, chamado "Lockdown". Um trabalho com o Asteroides Trio, banda do Arujá (SP), de versões rockabilly de músicas do Ratos. Um disco novo da sua banda, "Necropolítica", reflete sobre a situação política e social brasileira. E, talvez, a ideia que pareça mais inusitada, mas que dialoga muito com sua história: um projeto de música brega em versão punk com o guitarrista Valdério Santos (Viper e Toyshop) que deve render um segundo álbum.

16.ago.2022 - João Gordo durante entrevista na Barbearia Buena Vista, Vila Madalena - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

Chão de terra, discos do pai e rádio AM

"Cara, isso é demais. Umas músicas lindas, eu tenho que cantar", pensou João quando o amigo guitarrista contou que estava gravando canções como "Fuscão Preto" e "Ciganinha". "Eu tomei as versões dele", ri. "Gravamos 35 músicas. Só que aí eu comecei a pirar e cantar MPB, então já tem um disco pronto de MPB hardcore, que é muito mais legal, com Ednardo, Alceu Valença, Kleiton e Kledir... Eu tenho uma memória boa dos anos 1970, que vivi intensamente", conta.

Dessa época, nas redondezas de uma Vila Gustavo ainda de chão de terra em que se brincava de futebol, pipa e se colocava calça ("bermuda só na vila") para "ir à cidade" (como a região central de São Paulo era e, em alguns lugares e para algumas pessoas, ainda é chamada), João lembra também de ouvir Zé Bettio e Gil Gomes em programa de rádio. "Toda a vizinhança escutava. A rádio AM era onipresente, aí tocava essas músicas bregas e o rock era uma constante também, tocava Suzi Quatro, Alice Cooper, Rita Lee, Zé Rodrix, Silvio Brito, Raul Seixas", lembra.

16.ago.2022 - Retrato de João Gordo com sua esposa Viviana - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
João Gordo com sua esposa Viviana Torrico
Imagem: Lucas Lima/UOL

Em casa, recorda-se da coleção de discos do pai, um sargento da Polícia Militar nascido em Piraju (SP), casado com uma cabeleireira vinda de Lins, no interior paulistano. "O meu pai tinha de tudo, calypso, música colombiana, Roberto Carlos, muito compacto... Ele tinha um gravador de rolo com um monte de coisa aleatória que eu não sabia o que era, anos 1960, B.J. Thomas", conta. O "rock pauleira" veio na adolescência.

Da vizinhança, ele se lembra de um amigo alguns anos mais velho que, quando chegava o fim de semana, colocava as caixas de som para fora de casa tocando Rush. "Arrasava o quarteirão. Eu falava: deixa eu subir aí. E comecei o meu aprendizado roqueiro, com ele e o pessoal da escola. Conhecer Led Zeppelin, Kiss, e aí teve a explosão do movimento punk quando eu era adolescente e não teve jeito."

O desvio dos planos familiares rendeu "guerra em casa". Chegou, entretanto, a se formar torneiro mecânico e quase foi aprovado para a Academia de Polícia Militar Barro Branco. "Eu estava passando em todos os testes, estava com medo, mas fui reprovado no físico", diz, aliviado. "Eles queriam que eu arrumasse um emprego de qualquer jeito, mas comecei a usar droga, beber. Caí no buraco do movimento punk, virei punk de rua, até aí pra entrar no Ratos de Porão [em 1983, aos 19] foi pouco tempo. Aquelas épocas eram poucos meses, mas parece que esse rolê durou anos. Era muita coisa acontecendo, muito louco", rememora.

Após uma viagem a Salvador com o Ratos na qual ficou duas semanas a mais na cidade, perambulando, já que não o contratante não havia pago a passagem de volta, retornou para casa para ser expulso pelo pai, falecido em 2011, com quem pode "zerar" em vida, como postou no último dia 14 de agosto.

16.ago.2022 - João Gordo durante entrevista na Barbearia Buena Vista, Vila Madalena - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

Um 'filho da puta em desconstrução'

A saudade de uma relação pai e filho que não teve é um estímulo para João no dia a dia com os filhos adolescentes, Victoria e Pietro, fruto do casamento com a professora argentina Viviana Torrico. "Eles são ótimos, super conscientes do que está acontecendo. Minha filha está estudando para [fazer faculdade de] moda e o Pietro é músico. Eles estudam em escola alternativa, é tudo bem aberto", conta.

Apesar de uma consciência política que reverbera em discos do Ratos desde os anos 1980, João entende que amadurece com seus filhos, e acredita ser um "filho da puta em desconstrução".

"Até pouco tempo atrás eu tinha atitudes de bolsominion, não politicamente, mas eu fazia brincadeiras escrotas. Fui criado assim, não tinha consciência disso. 'Traveco' para mim era a palavra que designava travesti. A minha filha abriu meus olhos pra isso e muita coisa que veio acontecendo nos últimos anos foi abrindo meus olhos", diz ele.

Para o músico, os debates no campo progressista são uma abertura importante, "porque a gente era tão ignorante quanto esse povo [de extrema direita]. Só que agora é moda ser assim. O imbecil, o bobão da vila falava merda no boteco, aí de repente ele junta uma galera e um vira presidente porque pensa igual a eles. 'Farsa Nacionalista' (de 1989) na época era música pros carecas fascio, agora é pra todo mundo", acredita.

16.ago.2022 - Retrato de João Gordo  - Lucas Lima/UOL - Lucas Lima/UOL
Imagem: Lucas Lima/UOL

João conta que costumava votar nulo, fruto de um ceticismo no sistema, mas que votou em Lula duas vezes e irá repetir em 2022. "Eu tenho necessidade de não deixar esse fascista ganhar." Tem admirado a forma como Anitta tem se posicionado contra Bolsonaro. "Ela tá lá em primeiro lugar na Billboard, bombando e peitando fascista aqui. Acho super importante. A Anitta faz o que as bandas de rock deviam fazer, as bandas todas reaças. E tem os isentões. A essa altura do campeonato, se você ficar em cima do muro você é de direita", diz ele.

Apesar de ter dito não acreditar que ninguém sairia melhor de uma pandemia, fato é que João tem se engajado mais em discussões e ações políticas práticas. Com a família, tem o projeto Solidariedade Vegan, capitaneado por Vivi, que desde o dia 1º de abril de 2020 tem entregue refeições para pessoas em situação de rua diariamente, buscando um diálogo de igual para igual, e não uma postura assistencialista, frisa ela. O projeto se desmembrou em outros, como uma plataforma para auxiliar a encontrar empregos e brinquedotecas em parceria com ocupações. "Sou antinazi, sempre fui, e o resto eu tô aprendendo."