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'Pedaço de mim': a dor de perder um irmão gêmeo, em 3 histórias

Os irmãos gêmeos João Antônio (à esq.) e João Gabriel Fontella (à dir.), numa festa de casamento em 2020. Em 2021, Antônio faleceu de covid-19 - João Gabriel Fontella / Arquivo Pessoal
Os irmãos gêmeos João Antônio (à esq.) e João Gabriel Fontella (à dir.), numa festa de casamento em 2020. Em 2021, Antônio faleceu de covid-19 Imagem: João Gabriel Fontella / Arquivo Pessoal

Sibele Oliveira

Colaboração para o TAB, de São Paulo

29/10/2022 04h00

Foi tudo inesperado. No começo de junho de 2021, João Gabriel Fontella, 21, tinha passado dias felizes na Chapada dos Guimarães (MT), comemorando o aniversário do padrasto com parte da família. Ao voltar a Cuiabá, onde mora, pegou covid-19 do irmão mais velho. Seu padrasto e o irmão gêmeo, João Antônio, também ficaram doentes. O gêmeo foi internado em 17 de junho — véspera do aniversário dos dois.

No dia 18, os gêmeos conversaram por videochamada e passaram o dia trocando mensagens. João Gabriel tirou uma foto da cesta de café da manhã que ganhou da mãe e perguntou se podia tomar o Toddynho do irmão. Foi a última conversa deles, cheia de brincadeiras, como sempre. Na manhã seguinte, o estudante universitário pegou o celular e viu algumas mensagens de João Antônio apagadas. Não entendeu o porquê. Logo depois, também foi internado. O Toddynho ficou na geladeira.

Não encontrou o irmão porque ele não estava mais na enfermaria — fora transferido para a UTI. João Gabriel teve alta duas semanas depois, mas o alívio durou pouco. A mãe o chamou para conversar e contou que João Antônio estava intubado. Descobriu que as mensagens foram apagadas antes do irmão ser levado para a UTI. "Nunca descobri o que eram essas mensagens, o que ele queria ter dito. E fico até hoje pensando o que era", relatou ao TAB.

Ia ao hospital e via João Antônio, que estava sedado, à distância. Sofria por não tocá-lo nem falar com ele. Tentava se preparar para o pior, mas torcia por um milagre. Ele, que não era religioso, se apegou à fé. Uma noite, estava em casa e fez uma oração diferente. "Falei que, se fosse o momento de ele partir, para ele ir, que a gente ia ficar bem aqui, que ia ficar tudo certo."

Não conseguiu dormir. Quando o padrasto abriu a porta, não precisou ouvir nada e pediu para que ele saísse.

O estudante de arquitetura da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso) sentia que tinha três vidas: a dele, a de João Antônio e a dos dois. Faziam praticamente tudo juntos.

Antes de dormir, ficavam conversando até o sono chegar, cada um na sua cama de beliche. Até hoje João Gabriel se questiona por que não foi no lugar do irmão, por que não melhorou. Tenta viver um dia de cada vez. Uns são mais difíceis. "Guardo isso até chegar a um ponto que não tem mais como guardar. São os piores momentos. Aí eu prefiro ficar sozinho porque consigo pensar, lidar com isso, chorar, gritar e colocar todo esse sentimento pra fora."

Dois cálices amargos

Fabiane Zenatti, 38, saiu de casa e entrou no portão ao lado para passar os últimos momentos de 2015. Reuniu-se com as pessoas que amava na residência de Fábio Zenatti, seu irmão gêmeo, em Lajeado (RS). Apesar dos fogos de artifício e da mesa farta, o clima de festa foi interrompido e as promessas do ano novo ficaram em segundo plano, porque o anfitrião começou a sentir uma dor estranha nas costas. Não havia de ser nada, todos pensaram. Só que as dores persistiram e ele começou a emagrecer.

Convencido pela família, em junho foi ao pronto-socorro. Os médicos pensaram que era um problema no fígado sem gravidade e Fabiane se despreocupou. Infelizmente, estavam enganados. Fábio estava com câncer nos pulmões, coluna e ossos. Como era metástase, a cirurgia estava fora de cogitação. A quimioterapia também não adiantou. No hospital, tomava morfina de hora em hora para suportar a dor. Como não havia mais o que fazer, foi para casa. Doía em Fabiane ver o irmão de 32 anos naquela condição.

Fabiane fez o que pôde por ele. Colocava bolsa de água quente em suas costas, fazia massagens sentindo os ossos de Fábio, que quando era saudável pesava mais de 100 quilos, distribuídos em 1,90 m de altura. Queria colocá-lo no sofá ou na calçada para tomar ar. Comovido com o esforço da irmã, ele tentava tornar o clima mais leve, brincando que era o Fido Dido (personagem de um desenho). Quando o sofrimento apertou, foi levado de volta ao hospital. Apesar do afeto da família e da namorada, que nunca o deixavam sozinho, ficou triste por não suportar a dor. Então foi sedado.

Duas semanas depois, Fabiane recebeu uma ligação e correu para o hospital. Assim que a família entrou no quarto, Fábio parou de respirar. A motorista caiu embaixo da cama e só recobrou os sentidos no corredor. Seis anos depois, ela ainda tem a sensação de que Fábio está viajando, o que costumava fazer com frequência devido ao trabalho. "A minha vida, depois que ele faleceu, ficou escura, muito escura. Tomo remédio para depressão desde o dia que ele faleceu. Não posso parar."

Se não bastasse o sofrimento de ter perdido o que considera uma parte de si, Fabiane reviveu o sofrimento 58 dias depois. Por volta das 18h, passou na casa de Anderson Zenatti, o outro irmão, e juntos brincaram com as crianças no gramado. De madrugada, ouviu batidas em sua janela. Era a última notícia que queria ouvir: Anderson tinha ido a um baile. Na volta, teve um infarto e bateu o carro numa árvore.

Fabiane se apega ao casal de filhos para continuar vivendo. Quando está trabalhando com o marido, até consegue se distrair, mas a dor sempre volta. A saudade é tanta que a motorista vive vendo homens parecidos com os irmãos na rua.

As gêmeas Cristiane (à esq.) e Annelise Lopes Peralta Herradone. Cristiane faleceu em 2018 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
As gêmeas Cristiane (à esq.) e Annelise Lopes Peralta Herradone. Cristiane faleceu em 2018
Imagem: Arquivo Pessoal

Sinais que trazem conforto

"Parei Campo Grande", contou Annelise Lopes Peralta Herradon, 52. A frase do médico fez a pedagoga revirar a capital. "Vem pra cá que o caso é sério. Corre contra o tempo. Não temos muito tempo. Precisamos de sangue e plaquetas."

Não era fácil conseguir as doações no inverno, mas ela mobilizou amigos, redes sociais e imprensa. Apareceu tanta gente que o Hemosul pediu para ela parar, pois não havia mais lanche para oferecer aos doadores. "Eu levo", argumentou. Ouviu que o sangue podia estragar. "Mande para outros municípios", sugeriu.

O empenho era para salvar a irmã gêmea. Ao conseguir um volume tão grande de sangue, ficou emocionada e teve certeza de que a missão de salvar vidas era de Cristiane. No começo, a organizadora de festas confundiu a falta de ar que sentia com os sintomas da gripe H1N1, pois havia um surto na cidade. Levou um susto quando soube que estava com leucemia mieloide aguda. Annelise fez os exames para doar a medula para a irmã, mas Cristiane precisava estar mais forte para enfrentar a cirurgia. Era junho de 2018.

A pedagoga ficou o tempo todo com a irmã. Estava em casa quando recebeu uma ligação do médico informando que as plaquetas de Cristiane tinham subido. Saiu correndo com a família. "Cadê a minha irmã?", perguntou ao entrar na UTI. Viu a maca, mas não Cris. O médico a aconselhou a rezar. Quando abriu os olhos, a organizadora de festas a olhou e Annelise começou a chorar. "Por que você está passando a sua força pra mim?", perguntou. No dia seguinte, voltou ao hospital, que estava lotado.

Quando Cristiane partiu, 26 dias depois do diagnóstico, Annelise desmaiou. Ela só soube que era 100% compatível para doar medula à irmã depois da morte. "A gente se amava. Um amor além dessa vida. Ser irmão gêmeo é muito forte. Ela era a minha metade." Não conseguia olhar no espelho. Queria fazer as caretas da irmã para que o reflexo desse a sensação de que ela estava ali.

Como Fabiane, Annelise também perdeu o outro irmão em 2021. Fernando gostava de cuidar da saúde e andava de bicicleta havia décadas. Um dia saiu para pedalar à tarde. Estava na estrada, perto de casa, quando a luz do sol cegou o motorista do carro que passava no momento. Foi atropelado e morreu aos 54 anos.

Mais uma vez Annelise se fez forte para amparar a mãe. Católica, ela se apega a Deus e à família harmoniosa que tem para não esmorecer. Adotou os filhos da irmã como seus. Depois da morte de Cris, o hospital a convidou para falar da campanha de doação de sangue. Foi agradecer quem a ajudou. Lá, viu um cabideiro e perguntou para a funcionária porque estava ali. Soube que era para pendurar lenços, bonés e chapéus doados para pacientes com câncer. Na hora, decidiu fazer uma iniciativa parecida e a batizou de "Projeto Lenços de Luz". No momento de entrega dos acessórios, ela aproveita para conversar com os pacientes.

Quanto aos irmãos, acredita que eles não se foram para sempre. Cristiane a chamava carinhosamente de Brabuleta. Certa vez, Annelise estava em Trancoso, na frente de uma igreja. Uma borboleta pousou em sua mão e ali permaneceu por um longo tempo. Sentiu como se a irmã estivesse ali. Depois disso, ficou atenta aos sinais. Um dia, saiu da empresa, sentou-se num muro pequeno e viu outra borboleta. "Você está linda hoje", disse. O inseto aterrissou na mão da pedagoga, que a beijou.

À noite, ao pegar o carro para ir embora, viu um vulto que parecia um morcego. Quando ele encostou no vidro, percebeu que era um beija-flor preto, igual ao que frequentava a casa de Fernando, todos os dias. "Não existe beija-flor à noite", pensou. A ave voou em direção ao céu e Annelise começou a chorar, grata por saber que os irmãos estão bem.