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Antes rara, metanfetamina dá as caras com emojis e ofertas de sexo por apps

Francisco Bianchi/UOL
Imagem: Francisco Bianchi/UOL

Do TAB, em São Paulo

16/11/2022 04h00

É uma tarde amena no Largo do Arouche, no centro de São Paulo, quando Marcos* surge um pouco ofegante. "Preciso comprar uma água", diz. Ele justifica a pressa: estende os braços mostrando as veias saltadas e três pontos roxos, com aparentes marcas de agulha.

São vestígios de um encontro sexual que teve horas antes e que não saiu como planejado. "Não tenho coragem de pegar minha veia. O rapaz estava 'brisado' e também não conseguiu", lamenta. "Caiu um pouco fora e está formigando", diz, mostrando as vermelhidões.

Marcos entra na fila de um mercadinho com rosto impassível, porém, apesar da tentativa mal feita, há metanfetamina correndo em seu corpo. "Se der um beijo, fico com tesão na hora. Basta um toque."

Há outros indícios da ação da droga. Na pele, pequenas bolinhas brancas indicam arrepio. No antebraço, uma veia tem inchaço desproporcional. "Às vezes saem feridas. Uma vez saiu uma no meu pênis. A garganta às vezes incha. É sempre uma surpresa", conta. Ele abre uma garrafa de suco de laranja e dá um longo gole. "É o corpo tentando expulsar. Vai sair pelo suor ou pela urina."

Marcos tem 34 anos e até 2021 nunca tinha transado sob efeito de drogas. Queria agora, nas suas palavras, "gourmetizar" uma prática cada vez mais corriqueira, o chamado "chemsex" ("sexo químico", em inglês).

Os aplicativos de encontro têm desempenhado papel importante na popularização do sexo aditivado — e o cardápio disponível está cada vez mais diverso. Há o GHB (entorpecente quase idêntico à gama-butirolactona, usada como solvente industrial), a quetamina (anestésico geral utilizado em procedimentos cirúrgicos) e combos inalados, feitos a partir de misturas que incluem até Viagra, identificados por apelidos como "Calvin Klein" e "Regina".

Nos apps, a oferta de drogas é facilitada: cada substância é identificada por um emoji usado na descrição do perfil para indicar as preferências.

A metanfetamina tem aparecido com frequência, muitas vezes em sua forma clássica (pequenos cristais), e virou uma espécie de "Santo Graal" na busca por euforia sensorial e sexual. Popularmente conhecida como "Tina" ou "Cris", seus emojis pipocam nos apps de pegação nas madrugadas e finais de semana.

Metanfetamina e os aplicativos de sexo - Francisco Bianchi/UOL - Francisco Bianchi/UOL
Imagem: Francisco Bianchi/UOL

Entre seringas e cadarços

O emoji de anel indica que a pessoa procura usar metanfetamina derretida e fumada por meio de "bongs" (tubos de vidro ou acrílico com água na base) e cachimbos. Já a imagem de um foguete simboliza a prática do "slam" (gíria para metanfetamina injetável). "É o mais perigoso, mas o mais sensacional", pontua Marcos.

Ele conheceu "Tina" numa sauna. Ligou o aplicativo e logo encontrou um garoto de programa que entregava a droga e fazia "slam" no local. Muitos desses vendedores oferecem ao parceiro um kit com seringa lacrada, soro, álcool, algodão e um cadarço que faz as vezes de torniquete.

O efeito em Marcos foi imediato. Ele sentiu uma pressão quente no coração, que pulsou veloz por todas as veias até as extremidades, instalando-se também na região da virilha, num intenso formigar. É o chamado "rush".

A sensação era de ter saído do próprio corpo. "Você acha que vai morrer", resume. As vozes pareciam distantes, como eco. A testa franze, os olhos arregalam. Muitas vezes não há ereção e os testículos diminuem. Nada parece importar. O olfato é atiçado e o que todos contam é que qualquer toque causa sensação de orgasmo. Não há fome, sono, nem controle de horário. "Nunca tinha experimentado nada assim na vida. Se você tem 'Tina', você vai ser o cara mais gostoso da face da Terra", resume Marcos.

Bem 'Breaking Bad'

Até 2019, o psiquiatra Bruno Branquinho só tinha visto os pequenos cristais pela TV. "Era bem 'Breaking Bad' mesmo", afirma, referindo-se à famosa série sobre um professor de química que passa a fabricar metanfetamina, após receber diagnóstico de câncer.

Se nos EUA a metanfetamina se tornou popular nos anos 2000, por aqui ela parece ter sido transmutada dos filmes e séries direto para as camas. "Ela é usada em festas de sexo. As pessoas relatam que ficam dias transando com múltiplos parceiros e fazendo o que de repente não conseguiriam fazer sem o uso da droga", observa Branquinho.

Quem bate na porta do consultório do psiquiatra conta histórias parecidas com a de Marcos, com relatos de dependência química e emocional: problemas no emprego, afastamento dos amigos e família e uma incapacidade de lidar com o mundo real — a rotina, os encontros e o toque sem a droga. "Toda semana chegam pelo menos dois novos casos."

No geral, os usuários têm entre 25 a 40 anos, são gays, bissexuais e homens que fazem sexo com homens. O preço elevado do cristal (o grama chega a custar R$ 400) também reforça outro recorte. "São pessoas que já trabalham, têm o seu dinheiro, são mais de classe média."

Branquinho observa que há muitas explicações para a droga circular com facilidade entre esse público. "Por causa do estigma, esses homens procuram na droga uma maneira de superar barreiras sociais e emocionais", observa. "Você fica menos cansado, dorme menos, tem menos apetite, fica mais desinibido, não se preocupa com a performance, com o corpo. Só que isso cobra um preço muito alto."

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Imagem: Francisco Bianchi/UOL

Um mundo à parte

"Enquanto a gente está conversando, tem 'dealer' fazendo entrega, tem gente fazendo suruba. Isso acontece 24 horas por dia. É um submundo com pessoas legais e outras não tão legais. Gente que rouba, que furta, ameaça, vende metanfetamina misturada com sal e gente que está lá só pra se divertir."

Carlos*, 27, viveu intensamente essa realidade paralela durante todo o tempo da pandemia em São Paulo. Conheceu a metanfetamina pouco antes do isolamento social na cidade. "Comecei a descontar toda minha frustração no aplicativo."

O uso desenfreado só parou no fim de 2021, quando um grupo de amigos fez uma intervenção. "Ficava virado uma semana, ia trabalhar com sono, chorando. Você acaba com seus neurotransmissores, então fica uma depressão química. Meus amigos perceberam isso e eu concordei", relembra, durante conversa por vídeo.

Entregou o apartamento na capital, pediu licença do trabalho e voltou a morar no interior com os pais, com quem teve uma conversa franca. O "detox" incluiu ficar dois meses longe do celular. Para evitar antigas conexões, mudou o número de telefone e deletou perfis nas redes. "Me afastei tanto que não sei mais nada. Não sei como estão ou se alguém morreu." No início do ano, teve uma recaída. "Ainda é uma ladeira grande a ser percorrida para reconstruir, ficar bem do corpo e da mente. É algo que mexe com nossa autoestima."

Mais recentemente, Carlos voltou a marcar encontros. "Às vezes é legal, às vezes é ruim, como tudo. Tem sido uma redescoberta, o lance é que eu preciso aprender a me relacionar de novo sem a metanfetamina." O desconforto ainda se dá quando ele se depara com os emojis na procura. "Nunca passa despercebido. E agora parece que está tudo mais escancarado."

Amostra da metanfetamina, em formato de pequenos cristais, no Núcleo de Análise Instrumental da Polícia Técnico-Científica de São Paulo - Raquel Cunha/Folha Press - Raquel Cunha/Folha Press
Amostra da metanfetamina, em formato de pequenos cristais, no Núcleo de Análise Instrumental da Polícia Técnico-Científica de São Paulo
Imagem: Raquel Cunha/Folha Press

Na hora do rush

"Não gosto de enrolação."

A mensagem chega pelo Grindr, aplicativo de encontro mais popular na comunidade gay, numa sexta-feira à noite. Embora as diretrizes do app indiquem banimento de perfis que fazem "qualquer discussão de compra/venda de drogas", é por lá que um rapaz de cabelos raspados oferece seus serviços como "boy", com as imagens do foguete e do anel na descrição: "Tenho Tina, topa?"

A reportagem demonstra interesse e o rapaz passa a mandar áudios. Com voz calma, explica que não há como prever como cada organismo funciona durante o uso de metanfetamina, mas ele sugere reservar quatro horas para o encontro. "Você tem que sentir confiança pra fazer comigo. Tem um monte de coisas boas, mas não vou querer te convencer. É importante saber os efeitos colaterais, se você tem problema cardíaco..."

Ele conta que há dois meses morava no Rio, onde a metanfetamina começa a circular agora. Em São Paulo, nota que a prática tem acontecido em quartos de hotéis da região central da cidade — e pra onde ele pretende me levar.

Um dos pontos mais famosos para a prática de sexo químico fica na região da Bela Vista e é conhecido pelo entra e sai frenético durante o dia. Na página de avaliação do estabelecimento, no Google, um usuário indica, de forma cifrada, que ali é um lugar comum para o uso de metanfetamina: "Uma experiência inesquecível! Esse hotel é um PUMP de alegria. Não perca a Hora do rush!!!" "Pump" é o nome dado à prática de introduzir metanfetamina diluída em soro no ânus.

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Imagem: Francisco Bianchi/UOL

Conexão líquida

No Largo do Arouche, Marcos olha o celular. Há várias mensagens no aplicativo. "Já tem gente oferecendo uma próxima rodada", avisa. "Aqui tem gente que fica a semana inteira assim, só fazendo isso. Você tem a droga, você oferece e a pessoa vai, nem importa quem seja. Às vezes vira festa com 3, 4 pessoas. O Deus, o artista principal da festa, é o entorpecente."

Estamos a alguns metros da cracolândia e um usuário de crack saca um cachimbo do bolso. Ele chama atenção e compara: "[A metanfetamina] é o crack da elite", diz. "Muitos estão aproveitando disso para ter sexo em troca."

É o que Karin Di Monteiro tem ouvido em sua pesquisa sobre "chemsex". "É essa a armadilha. Você tem que se sujeitar a determinadas coisas. Muitos garotos de programa começam a trocar serviços pelo uso e isso não está restrito aos homens. Essa bolha, com suas peculiaridades, já está explodindo."

Coordenadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa no Centro de Convivência "É de Lei", ela atua na promoção da redução de riscos no "chemsex" e alerta que os cristais têm ganho cada vez mais protagonismo na cena. "Em relação ao que a gente tinha em 2018, foi uma explosão o que aconteceu aqui no Brasil. Tem usuário que diz que é o mundo líquido ao extremo. Tudo muito rápido e intenso. Imagina o rebote que vem depois", alerta.

Os vínculos desaparecem após a névoa de prazer e torpor. Marcos* lembra uma vez em que trocou declarações entusiasmadas durante a prática. "Você se apaixona pela pessoa toda vez. É algo tão intenso que você não acredita que aquilo seja químico. Parece uma conexão milenar, de almas."

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Imagem: Francisco Bianchi/UOL

Na rebordosa

Se antes drogas como maconha, cocaína, LSD e MDMA representavam quase 99% do universo de substâncias apreendidas em operações policiais, de 2019 para cá esse campo ganhou mais de cem novas substâncias sintéticas, muitas inéditas, como metanfetamina e opioides sintéticos — que lidera o número de overdoses nos EUA.

"Toda semana chega um saquinho de metanfetamina, seja em comprimido ou cristais", observa Alexandre Learth Soares, diretor do Núcleo de Análise Instrumental da Polícia Técnico-Científica de São Paulo. As análises indicam uma produção cada vez mais interna.

A Secretaria da Segurança Pública informa um aumento de 91,2% na quantidade de drogas sintéticas apreendidas nos primeiros oito meses de 2022, ante o mesmo período em 2020. Segundo o Denarc (Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico), os números de metanfetamina ainda são muito baixos, mas, para Di Monteiro, os serviços de saúde estão em alerta com a fatia crescente desse consumo.

"Muitos profissionais não viveram a época das drogas injetáveis e não sabem mais como lidar com as estratégias de prevenção e redução de danos entre esses usuários", explica. Ela nota que a forma fumada traz danos à boca, pulmão, garganta e dentes, mas destaca riscos ainda maiores com o uso de seringas.

"O risco é errar a mão e ter overdose, além de transmissão de hepatite, HIV e várias outras contaminações. A preocupação não é só o efeito da droga em si", observa.

No final daquela tarde malsucedida, Marcos* voltaria para sua cidade natal, a seis horas de distância, e já previa a rebordosa. No começo de outubro, ele chegou a parar no hospital com febre de 39°C e desidratado. "Quando bater o cansaço vai ser pra me derrubar. A imunidade vai lá embaixo e vem a depressão profunda", diz, resignado.

O celular volta a apitar. Um novo candidato insiste na proposta, após saber da tentativa mal sucedida. "Cola aí que a gente faz um decente", diz a mensagem. Ele se despede, deixando no ar se aplicaria mais um pouco de "Tina" antes da viagem.

Pergunto se ele consegue controlar o uso e a vontade na sua cidade, onde ele diz que a cena é inexistente. "Eu tento", sorri, com desconcertante consciência. "Até eu não conseguir mais."

* Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados