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'Estão honrando Zumbi': poema de Carlos de Assumpção vira samba de Péricles

O cantor Péricles e o poeta Carlos de Assumpção, em Franca (SP) - Paulo H. Cardoso/Divulgação
O cantor Péricles e o poeta Carlos de Assumpção, em Franca (SP)
Imagem: Paulo H. Cardoso/Divulgação

Do TAB, em São Paulo

20/11/2022 04h01

Aos 95 anos, Carlos de Assumpção tem muita história para contar. É alguém que se dedica, por horas a fio, a relembrar seu passado e a fazer críticas ao presente. Negro, neto de africanos escravizados, formado em direito e letras, ele vive há mais de 50 anos em Franca, no interior de São Paulo, e é celebrado hoje como um dos principais autores negros da literatura brasileira.

"Minha poesia é coletiva", diz ele. "Falo também de meu povo, que está numa situação precária, excluído. Dizem por aí que não existe preconceito no Brasil, mas infelizmente existe sim. Nós somos aqui no país mais da metade da população e não vemos representação em parte alguma. Isso faz mal para a gente, para os brancos, para os indígenas. Porque enquanto não se resolve a desigualdade socioeconômica, nós vamos patinar."

Assumpção nasceu em Tietê, também no interior, e cresceu na capital paulista. "A gente morava em Santa Cecília, mas quando as coisas foram ficando caras, mudamos para a periferia", lembra. A paixão pelas histórias veio de família. Ainda criança, via a mãe organizar saraus com crianças da Sociedade Beneficente 13 de Maio, em Piracicaba, e se atentava às histórias contadas pelo pai e o avô, analfabetos — este último, beneficiado pela Lei do Ventre Livre, lhe narrava episódios da escravidão.

Assumpção enveredou pela literatura ouvindo poetas populares e lendo obras de intelectuais negros como Luís Gama, Machado de Assis e Lima Barreto, que o inspiraram artística e politicamente. Antes das duas graduações — que fez já adulto —, ele concluiu o curso normal e passou a dar aulas no ensino fundamental, formando gerações de novos leitores e escritores.

Filho e neto de integrantes da Sociedade Beneficente 13 de Maio e da Frente Negra Brasileira, transformou os textos em militância da luta antirracista, por meio dos quais celebra a ancestralidade. As suas criações guardam memórias repassadas pela tradição oral dentro da própria casa e são uma espécie de grito e protesto a favor da liberdade.

"Tenho uma poesia que fala assim: 'Também sou brasileiro. O país também é meu. Eu ajudo a construir desde quando ele nasceu. O país nasceu nos meus braços e nos meus braços cresceu. Ninguém ama esse país mais do que eu. Mas tem muitos brancos tolos, mas tem muitos brancos maus, que acreditam que o país é apenas seu. Eu também sou brasileiro, o país também é meu", declama o poeta ao TAB, por telefone.

Doutor honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) — título concedido em fevereiro deste ano —, traduzido em mais de quatro idiomas, incluindo holandês e francês, Carlos de Assumpção ficou, porém, invisibilizado no Brasil até bem pouco tempo atrás. "Me chamam de invisível, mas na verdade a minha obra é que é invisível", pontua ele, que agora, no auge de uma fase de descoberta e valorização de suas criações, foi surpreendido com uma homenagem "inusitada", diz: "Nunca imaginei que minha poesia desse samba."

O poeta Carlos de Assumpção, 95 anos - Ricardo Benichio/Folhapress - Ricardo Benichio/Folhapress
O poeta Carlos de Assumpção, 95 anos
Imagem: Ricardo Benichio/Folhapress

Deu samba

A obra de Carlos de Assumpção não só deu samba como deu um samba cantado por Péricles, a quem o poeta chama de "uma pessoa doce, muito simples" e cujo trabalho admira.

No último dia 18, na semana da Consciência Negra, o sambista lançou "Eclipse", com versos do poeta paulista sobre a tentativa de apagamento da identidade afro-brasileira. "Olho no espelho e não me vejo. Não sou eu quem lá está. Senhores, onde estão os meus tambores, onde estão meus orixás. Onde, Olorum. Onde o meu modo de viver, onde as minhas asas negras e belas com que costumava voar", diz o poema que agora virou música.

Péricles foi apresentado à poesia de Assumpção por sua equipe de trabalho. "Tínhamos visto uma matéria na TV sobre seu Carlos e os poemas dele. A reportagem mostrava a relevância que ele tem na luta por um melhor posicionamento dos negros na sociedade brasileira. Achei maravilhoso, e vi na entrevista o jeito e a propriedade com que ele fala sobre o assunto", conta o cantor.

No caso de "Eclipse", diz ele, a letra é tão atual que "parece ter sido escrita na semana passada". "Faz com que a gente enxergue melhor quem a gente é nesse universo. Queremos a nossa identidade, nos enxergar representados."

No dia 3 de novembro, os dois se conheceram pessoalmente. Péricles visitou Carlos de Assumpção em Franca para apresentar ao poeta a música. O encontro foi gravado em vídeo e transformado em documentário, disponível no canal do cantor no YouTube. "Foi um bate-papo revelador. Ele não acreditava que poderia virar um samba, fiquei feliz em musicar um poema tão grande", diz o cantor. A música também está disponível no Spotify.

Péricles e Carlos de Assumpção - Paulo H. Cardoso/Divulgação - Paulo H. Cardoso/Divulgação
Péricles e Carlos de Assumpção
Imagem: Paulo H. Cardoso/Divulgação

'Estão honrando Zumbi'

A surpresa emocionou Carlos de Assumpção. "Eu tô até chorando", dizia, relembrando o encontro. "Sou muito emotivo, mas não sou muito chorão, não", brincou.

A emoção, acrescenta ele, tem a ver com "a honra" desse reconhecimento. "Muitos dos artistas de hoje estão honrando o sacrifício dos avós. Sempre houve luta para abrir caminho para esse povo de hoje. Os artistas negros de hoje, que enfrentam as maiores dificuldades de peito aberto, estão honrando Zumbi, nossos antepassados, só tenho que aplaudir", comemora. "Fico emocionado de ver essa nova leva de artistas negros fazendo alguma coisa por nosso povo. Ninguém ama esse país mais do que nós [negros]. Fizemos e contribuímos para que esse país seja o que ele é hoje."

Em Franca, Carlos de Assumpção tem um espaço cultural dedicado à sua história. Também desenvolve atividades culturais em instituições, sobretudo para o público jovem, através do sarau mantido por ele e outras quatro pessoas. "Protestamos por melhores dias. Visitamos escolas e outras entidades. Inclusive estivemos na Fundação Casa de uma cidade vizinha conversando com os meninos [internos]. Nós falamos só de amor, e eles chegaram a fazer uma encenação de outro poema meu, 'Protesto'."

Depois do inusitado samba, alguém que costurou o fio da história em palavras, de maneira subjetiva e imaterial, guarda agora um sonho distante: "Eu queria um pouco de terra da África", confessa. "Uma vez um amigo viajou a Moçambique, e eu pensei em pedir que ele trouxesse um punhado de terra de lá, mas não falei nada. Queria guardar comigo. Ainda sonho em um dia ter."