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Ele já viveu do crime e do desmate. Agora quer lucrar com floresta em pé

Marcelo Garcia posa no meio da mata de uma de suas propriedades no estado do Amazonas - Caio Guatelli/UOL
Marcelo Garcia posa no meio da mata de uma de suas propriedades no estado do Amazonas
Imagem: Caio Guatelli/UOL

Do TAB, em Humaitá (AM)

30/11/2022 04h00

Vivendo sempre na fronteira entre o campo e a selva, ele já foi de tudo por ali: mateiro, extrativista, garimpeiro, serrador, posseiro, pecuarista, vendedor, tratorista e até detento. "Sou só no mundo. Gosto de ser assim. Sem ninguém pra me perturbar."

A vida de Marcelo Garcia, 44, parece um breviário do que aconteceu com a população que foi atraída para a Amazônia pela doação de terras durante o Milagre Econômico (1968-1973), abandonada à própria sorte após sucessivas crises.

À exceção da soja na frente de Mato Grosso e do cacau no Pará, a colonização agrícola da região, conhecida atualmente como "Arco do Desmatamento", é uma coleção de improvisos e frustrações que mais devastou as riquezas naturais do que trouxe progresso nos últimos 50 anos.

Filho de pai paranaense e mãe paulista, Marcelo nasceu em Rolim de Moura, em Rondônia. O estado foi quase todo esquadrinhado por rodovias, avançando para oeste até a fronteira com a Bolívia, país onde a mata está mais preservada.

Marcelo seguiu esse mesmo caminho e hoje vive em São Francisco do Guaporé, criando gado, porco e galinha e colhendo castanha, tucumã e açaí nos bosques que circundam sua propriedade.

Ele tenta ganhar a vida depois que mais um sonho de fortuna se esfumaçou: comprar e vender terras no estado do Amazonas. Apostou que Jair Bolsonaro seria reeleito, quando então ele lotearia as áreas que comprou em meados de 2022 à beira da BR-230 (a Transamazônica) e da BR-319 (Manaus-Porto Velho). O resultado eleitoral, porém, deu uma guinada em seus planos.

Sonho carbonizado

Com uma garrafa plástica com gasolina em uma mão e um isqueiro na outra, ele ia tocando fogo na mata derrubada dias antes. O amarelo da gasolina virava o vermelho das chamas. E a paisagem verde se descoloria em branco, preto e cinza.

A queimada deve ser feita de manhã, antes dos temporais da tarde. A fumaça é tanta ao meio-dia que o céu lembra o de uma cidade industrial, não o da maior floresta equatorial do mundo.

Marcelo suava em bicas no calor dos trópicos somado às labaredas. Se ele não calculasse direito o vento, podia acabar sendo engolido pelo fogo. Sua namorada, Claudineia, o esperava no casebre da propriedade de Humaitá (AM) com uma garrafa de água para aplacar a quentura. Ele bebeu tudo no gargalo em quatro goles e seguiu seu incêndio.

Marcelo aplicou suas economias em dois terrenos. Cortou e queimou parte da mata. Planejava vender a madeira e limpar a área. Depois corrigir com calcário o solo ácido, uma mistura de barro e areia que é chamada de "terra mestiça". O passo seguinte seria plantar grama e revender a área em parcelas menores.

"Se ficasse o Bolsonaro, ia ter comprador e bom preço. Com o Lula, está tudo peidado. Agora quem mexe com terra não está querendo comprar, rapaz. Uma agonia danada", desabafa.

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Marcelo comprou terra para fazer pastagens, mas vai manter floresta para mercado de crédito de carbono
Imagem: Caio Guatelli/UOL

Não é que a Amazônia esteja povoada de piromaníacos: há por lá um mercado imobiliário que valoriza o pasto e desvaloriza a floresta. Na maioria das vezes o processo de documentação é parcial, faltando a aprovação do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Em outras, quando há influência da política local para legalizar de forma irregular os papéis, surge a grilagem e a venda de terras públicas como sendo particulares.

Contudo, se a lógica se inverter, as árvores em pé passam a valer para a população local. Uma das possibilidades de isso acontecer é a expansão do mercado de crédito de carbono, no qual empresas, associações e países mantêm reservas florestais para compensar suas emissões poluentes em outros locais. "Me falaram que dá um lucro bacana, ainda quero ver como funciona", diz Marcelo. Nesse novo contexto, o que mais vale são as áreas que Marcelo não derrubou e pode revender para alguma empresa.

Seis meses atrás, Marcelo se mudou para o Amazonas ouvindo notícias sobre o reasfaltamento da BR-319 e a regularização de fazendas privadas em glebas federais. Agora, as novidades vindas de Brasília falam de uma nova realidade com a eleição de Lula, e ele, mesmo a contragosto, tem de se adaptar a tempos mais preservacionistas.

Pais e filhos

"Vim pra cá porque não tinha como sobreviver sem a renda daquelas terras." O projeto de enriquecer foi adiado, e Marcelo voltou para sua Rondônia natal, onde tem uma propriedade. "Já estou vendo uns bezerros desmamados para vender. Já, já começa a aparecer dinheiro para todo lado. Aí eu fico de boa", brinca.

Marcelo retornou também para rever os filhos. Do total de seis, quatro estão em São Francisco do Guaporé. Os mais velhos, adolescentes, já ajudam na lida do campo. Ensina a eles o que um dia aprendeu com o pai.

Com o pai, começou a se embrenhar na mata. "Desde os seis anos já caçava com ele. Era molequinho e ia atrás das pegadas de paca, cutia e veado. Cansei de pegar anta nos barreirões que tem por aqui na Amazônia."

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Funcionário carrega espingarda para não ser surpreendido por onça em trecho da floresta no Amazonas
Imagem: Caio Guatelli/UOL

Como mateiro e garimpeiro, se acostumou a entrar mais de 20 quilômetros na floresta sem se perder. "Se é lugar que conheço, me guio pelas árvores. Se é novo, me oriento pelo sol." Na época em que procurava ouro, se enfiava semanas na selva, abrindo caminho na ponta do facão e trotando sobre a vegetação com suas pernas compridas.

Se vai passar a noite na selva, não pode faltar a espingarda. "O cabra tem de andar preparado. Onça não avisa. Você não escuta ela chegar. Ela dá o bote e pronto. Mas quando ela ronca no meio do mato, o dedo até coça, mas é melhor que ela nem chegue perto."

Terra ou livro?

Quando tinha 16 anos, seu pai perguntou se queria continuar estudando ou preferia cuidar de um sítio junto com os irmãos mais velhos. Escolheu a terra no lugar dos livros.

No começo, tudo estava bem. Mas logo os quatro irmãos se desentenderam. Marcelo tentou a vida em vários cantos e só voltou a ver a família em 2019, quando o pai morreu e deixou herança. Com dinheiro comprou sementes de grama, porque já estava no negócio de venda de terras com pastagem.

O dinheiro vem e vai na mão de Marcelo. Ele conta que já perdeu tudo no baralho e dormiu na rua. Ia do cassino para o cabaré até o bolso esvaziar. Quando juntava "uns trocados", comprava uma motosserra e saía como um empreendedor equatorial buscando madeira para cortar e vender.

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Marcelo e a namorada Claudineia Ferreira descansam em trecho de mata de fazenda em Humaitá
Imagem: Caio Guatelli/UOL

"Por dez anos, caí no mundão mesmo. Estive em cinco países e em mais de 20 cidades." A vida louca acabou em 2013. Acabou preso por assalto. Fugiu da delegacia na base da correria e, quando já ia sumir no mato, um policial gritou que o tinha na mira e ia atirar. Ele se rendeu e foi detido de novo. Cumpriu pena e não quer mais saber da criminalidade. Criou juízo.

Pra saúde, toma todo dia café com uma gotinha de óleo de copaíba, extraído de árvore local com fama de milagrosa. Quando se machuca no mato ou na roça, passa esse óleo na pele para curar ferida ou inchaço.

Hoje em dia, Marcelo só quer terminar o dia na sombra de uma árvore, vendo o gado engordar no cocho, jantando o que plantou e ouvindo seu amigo Riva tocar no violão alguns dos sucessos de Amado Batista. Logo a cantoria e a comilança acabam. Tudo se acalma. E a noite e a floresta vão cobrindo os tesouros, as feras, os sonhos do andarilho e o futuro do mundo.