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Para fugir da fiscalização, balsas de garimpo migram para Amazônia profunda

Fileiras de balsas formam "fofoca" que dragam fundo do rio Madeira atrás de ouro no município de Humaitá (AM) - Caio Guatelli/UOL
Fileiras de balsas formam 'fofoca' que dragam fundo do rio Madeira atrás de ouro no município de Humaitá (AM)
Imagem: Caio Guatelli/UOL

Caio Guatelli e Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em Porto Velho (RO), Humaitá (AM) e Itaituba (PA)

14/11/2022 04h00

Quem vê de longe a fileira de telhados de palha cobrindo paredes coloridas, bem no meio de um caudaloso rio amazônico, pode até pensar que é uma turística vila flutuante. Mas, se fosse assim, seus moradores não escapariam para a mata a cada operação policial, nem as autoridades teriam motivo para explodir essas construções boiando no rio Madeira.

Na verdade, são balsas que dragam os leitos dos rios amazônicos, cometendo crime ambiental e poluindo com mercúrio as águas, os peixes e as pessoas.

Os garimpos na Amazônia viveram uma "era de ouro" no governo de Jair Bolsonaro. A redução da fiscalização, a invasão de reservas, o corte de recursos para os povos indígenas e a exportação de mineral ilegal como sendo proveniente de minas oficiais impulsionaram a mineração predatória.

Essas cidades ancoradas na correnteza povoaram rios como o Madeira, até com a anuência do governador reeleito de Rondônia, Marcos Rocha (União Brasil), mas seu decreto de licenciamento em 2021 foi derrubado pela Justiça em 2022. Agora, as balsas que escaparam das ações da Polícia Federal migraram em direção ao rio Amazonas. Muitas seguiram para o rio Puruê, perto de uma região quase intocada na fronteira com a Colômbia. Em 2021, operações policiais destruíram 130 balsas. Em agosto e setembro de 2022, novas operações queimaram outras 50. Em outubro último, foram incineradas mais de 80 no rio Madeira.

Uma localidade chamada Creporizão cresceu até chegar a 35 mil habitantes — 5.000 moram na área urbana e o restante fica mato adentro, inclusive em território Mundukuru, em busca do brilho dourado no meio da lama. Com o auxílio da Funai (Fundação Nacional do Índio) limitado nos últimos anos, alguns caciques da etnia fizeram acordos com os garimpeiros para garantir uma parte dos empregos e dos lucros da extração mineral em suas terras.

Vida dourada

"Tudo é caro. A energia elétrica é de um empresário do garimpo que vende a produção excedente de sua usina hidrelétrica. Água encanada é a mesma coisa. Outro pioneiro daqui oferece, mas não é boa para beber. Só dá para tomar banho e lavar louça e roupa", conta José Dalla-Rosa, apelidado de Joia, um ex-garimpeiro que se tornou subprefeito do Creporizão, distrito do município de Itaituba (PA), cujo centro fica a mais de 300 quilômetros de distância. Segundo a prefeitura de Itaituba, há planos de expansão da concessionária local de luz, a Equatorial, para lá no próximo ano.

O lugarejo fundado, povoado e controlado por garimpeiros fica às margens do rio Crepori, afluente do Tapajós, no final da estrada "transgarimpeira", que é um ramal da BR-163, conhecida nesse trecho como rodovia Cuiabá-Santarém.

Além da água e da luz, a internet e as duas pistas de pouso locais são fontes de renda alternativa para quem enriqueceu com a exploração de ouro desde a década de 1980. "Na época o governo construiu essa estrada para trazer o povo de Serra Pelada para cá", lembra Joia.

Creporizão tem delegacia e duas escolas municipais. As residências familiares são bem simples, misturando alvenaria e tábuas de madeira. As ruas são feitas de terra.

A via principal é uma sucessão de "cabarés das moças" (prostíbulos), lojas especializadas em maquinário para garimpo, PCOs (Postos de Compra de Ouro, autorizados pelo Banco Central) e comércio em geral. Até 2020, a moeda de troca mais comum por ali era o próprio metal. "Agora a gente também usa Pix", diz Joia.

Na outra margem do rio está a Floresta Nacional do Crepori, onde qualquer atividade garimpeira é criminosa. Ali ficam os lotes mais cobiçados pelos exploradores. Dezenas de bombas d'água, tratores, balsas e dragas já ocupam grande parte dessa terra protegida por lei federal.

Os jatos e as mangueiras de sucção transformam a mata em pé e a água limpa em um cenário indistinto. O acúmulo de rejeitos do garimpo é tamanho na região que, no início de 2022, o estrago pôde ser sentido a mais de 700 quilômetros, rio abaixo, nas praias paradisíacas de Alter do Chão (PA).

Uma realidade eletrizante

Na Amazônia, há uma crença de que lugar onde cai muito raio tem tesouro. Começa uma tempestade e os aventureiros já ficam de olho nos relâmpagos. Para eles, uma árvore rachada e queimada no meio da selva verde vira presságio. E olha que o Brasil é o país com mais descargas atmosféricas do mundo, e a Amazônia corresponde a mais da metade delas, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).

Outro prenúncio mineral é a queda de meteorito. "Onde a bola de fogo cai clareando a noite tem ouro. No dia seguinte, todo mundo ruma pra lá", conta David dos Santos Lima, 45.

Com ou sem estrela cadente, eles seguem qualquer rasto. "Vai fuçando, fuçando. Garimpo não acaba nunca. Tem muito filão embaixo dessa floresta", vislumbra David, que desde a adolescência adotou o ofício, arrastado pelo padrasto faiscador. Naquela época, a draga era impulsionada por motor de jipe. Hoje é um motor de jamanta que traga a lama ou esguicha os barrancos ribeirinhos.

A reunião de muitas balsas em um rio recebe o nome de "fofoca". É na base do boca a boca que os garimpeiros formam suas "corrutelas", como eles chamam as vilas improvisadas na natureza selvagem.

garimpo na amazônia - Caio Guatelli/UOL - Caio Guatelli/UOL
O garimpeiro David dos Santos Lima descansa em cadeira no convés de balsa em reparos à beira do rio Madeira, em Porto Velho (RO)
Imagem: Caio Guatelli/UOL

"É uma vida boa, mas muito solitária. Você vive fora do mundo de hoje, sem internet, no meio do nada", opina David. A cada três meses, ele fica 30 dias seguidos morando e trabalhando na balsa, sem tocar o solo. Consegue ganhar em média R$ 12 mil para viver o trimestre com a mulher e o filho em Porto Velho (RO).

"O que dá dinheiro pra esses lados é ouro, madeira e gado. Aqui não tem indústria, e nas lavouras de soja e milho é tudo mecanizado. Se não fosse esse ourinho, a região estava quebrada", sentencia David, enquanto se reveza entre maçarico e marreta para consertar os dutos de sua balsa.

Metade de seus oito irmãos mexe com garimpo. A mãe, Maria, sempre trabalhou como cozinheira de balsa, mas pegou covid-19 e morreu aos 62 anos, no início do ano.

Minha casa no meio do rio

Com pouco ouro e muita conta para pagar, o garimpeiro ainda sonha ficar rico. "O ouro do Madeira está acabando. Tem mês que a gente remexe o rio sem achar nada. No outro acha 50 gramas para dividir entre muitos", desabafa o jovem Lucas da Silva, 19, enquanto consertava o motor de uma draga.

Ao seu lado, sua mulher, de apenas 16 anos, observava. A menina prefere não mexer nas máquinas. Os dois vivem juntos há 2 anos na balsa do pai de Lucas. A plataforma flutuante, de palha e madeira, tem cerca de 40 m². As máquinas ficam no andar inferior. No de cima estão os quartos, a cozinha e o banheiro.

De longe, parece uma casinha de sapê boiando calmamente. De perto, o motor enorme e barulhento trabalha sem parar revirando o fundo do rio com uma perfuratriz hidráulica. Um cano de 14 polegadas puxa a água barrenta e a despeja no convés da embarcação. Nela, um tapete com mercúrio segura o ouro presente e descarta o resto de volta ao rio Madeira.

Lucas diz que o que ganha mal paga as contas do mês, mas seu objetivo é comprar uma balsa com draga, como a do seu pai. O custo de uma dessas embarcações é, por baixo, R$ 500 mil, podendo chegar a R$ 3 milhões (com suítes, ar condicionado e tecnologia de ponta).

Entre piratas, policiais e parentes

Um estaleiro informal se instalou embaixo da ponte da BR-319, estrada que liga os estados de Rondônia e Amazonas. São balsas que estavam na fronteira com a Bolívia e foram transportadas em parte por rodovia, porque as hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio formam barreiras para a navegação no rio Madeira. Elas estão sendo reparadas enquanto esperam rebocadores para levá-las em uma jornada de mais de 2.000 quilômetros até perto da Colômbia.

Logo ao lado, ribeirinhos pescam seu almoço, aproveitando a sombra da ponte. Do anzol, o peixe vai para a brasa queimando entre dois tijolos e ganha uma pitada de limão antes de ser engolido. "Falam que tem ouro embaixo da ponte porque é um dos poucos lugares onde não mexeram. Mas quem tem coragem, com tanto agente por perto?", pergunta-se David.

Em outubro, a PF e o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) fizeram ação conjunta na região e destruíram mais de 80 balsas perto da capital rondoniense. Muitos balseiros tinham partido antes da operação e escaparam da polícia, mas podem ter ido em direção aos piratas, gangues fluviais que roubam garimpeiros, madeireiros e até traficantes. Elas se multiplicaram na Amazônia nos últimos anos, principalmente nas áreas mais profundas de selva.

"A gente convive 24 horas com medo. Quando vêm os policiais, é pegar a voadeira, se enfiar em um igarapé e se esconder na mata para escapar da prisão. Se é pirata, não dá tempo. Eles dão o bote. Nunca aconteceu comigo, graças a Deus. Mas muito colega sofreu violência nas mãos deles e começou a andar armado", relata David.

Além dos acidentes, há o temor da trairagem. "Muito mergulhador foi morto porque achou ouro e não queria dividir. Eles [os piratas] puxam a mangueira de ar, e 'adeus, companheiro'", conta. "Por isso, eu só trabalho com parente. A ambição é um negócio muito ruim, e tem que ter muito cuidado com as amizades, principalmente as novas. Garimpeiro é um povo desunido e cheio de fuleragem", completa.

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Sede do Ibama em Humaitá (AM) é tomada pela vegetação após cinco anos fechada por ter sido incendiada por garimpeiros
Imagem: Caio Guatelli/UOL

Em outubro de 2017, quando o Ibama e a Força Nacional apreenderam balsas de garimpo no rio Madeira, os garimpeiros revidaram, queimando a sede e os veículos do órgão na cidade de Humaitá (AM). Passados cinco anos, o mato cobriu a casa em ruínas e as viaturas incendiadas e enferrujadas. Dentro do escritório, carcaças de computadores chamuscadas são símbolos da vingança.

Daqui por diante, os garimpeiros preferem adotar a tática de adentrar cada vez mais os igarapés e as florestas para escapar da fiscalização e não bater de frente com os novos tempos. "Vamos lá pro lado da Colômbia, onde o garimpo é no estilo antigo, tudo na bateia. Vamos chegar com as dragas e fazer a festa", prevê David.