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'Perdeu, mané': provocação em acampamento golpista vira caso de polícia

Acampamento de manifestantes bolsonaristas na rua Alfredo Pujol, em Santana, zona norte de São Paulo, em dezembro de 2022 - UOL
Acampamento de manifestantes bolsonaristas na rua Alfredo Pujol, em Santana, zona norte de São Paulo, em dezembro de 2022 Imagem: UOL

Luciana Bugni

Colaboração para o TAB, de São Paulo

29/01/2023 04h01

Nos dois meses e poucos dias em que apoiadores de Jair Bolsonaro (PL) ficaram acampados na rua Alfredo Pujol, em Santana, na zona norte de São Paulo, vários vizinhos relataram episódios de violência. O grupo golpista se retirou na madrugada do dia 9 de janeiro, mas deixou para trás a insatisfação dos moradores e de quem passou por ali nesse período. Foi o caso da comerciante Claudete Galvani, 47, que passou de carro pela rua, no dia 30 de dezembro, gritando para os manifestantes irem embora para casa. O episódio se desdobrou em trocas de provocações, um celular quebrado e a polícia envolvida.

Claudete conta que havia ido à casa da irmã e a um barzinho, antes de passar pelo acampamento. Queria gravar um vídeo dos acampados. "Gritei 'perdeu, mané'. E afirmei que o Lula subiria a rampa, sim."

Ela parou o carro a uns 50 metros do acampamento, desceu a rua para comprar uma cerveja no restaurante vizinho e seguiu provocando o grupo com gritos de "perdeu". Enquanto isso, filmava a reação das pessoas.

Lá, foi informada que não poderia beber no local, pois os funcionários do estabelecimento tinham medo de confusão. Não deu tempo: um dos acampados foi tirar satisfação e insinuou que ela foi paga para provocar os golpistas. "Imagina, nem pensei que isso seria possível", diz ela, que é proprietária de um restaurante na Mooca, zona leste de São Paulo.

Claudete relata que foi alvo de ofensas de cunho sexual de alguns homens no cercadinho do acampamento. De volta ao carro, ligou para o marido, para que ele pegasse um Uber e fosse buscá-la no local, pois não queria dirigir após ter bebido. Um carro passou e uma mulher perguntou o que havia acontecido.

"Fui contar para ela que havia gritado para que a manifestação antidemocrática terminasse, quando ela disse que fazia parte do grupo e começou a me xingar. Resolvi filmá-la e voltei e dizer que eles tinham perdido", conta. Nesse momento, o celular de Claudete foi arremessado na rua — a reportagem teve acesso ao vídeo do momento em que é possível ouvir gritos, mas o celular, caído no asfalto, filma apenas o poste que iluminava o local. Já passava das 23h.

Celular quebrado e chave do carro desaparecida

Claudete Aparecida, 47, diz que foi agredida por mulher em acampamento golpista em Santana, zona norte de São Paulo - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A comerciante Claudete Galvani diz que foi agredida no acampamento golpista
Imagem: Arquivo pessoal

Claudete conta que pegou o celular do chão e foi para o carro. Ligou para a polícia ao notar que a mulher estava se aproximando novamente. Segundo ela, a acampada pegou seu celular e o jogou no chão de novo. "Acho que a intenção era quebrar", suspeita ela, para invalidar os vídeos que fez do grupo. "Nesse momento, segurei na blusa dela e uma outra mulher, em quem eu não havia sequer encostado, começou a gritar que eu a tinha machucado, que estava sangrando. A intenção delas era me incriminar."

A chave do carro de Claudete sumiu durante o confronto. Minutos depois, a polícia chegou.

O TAB teve acesso a um áudio, gravado por uma pessoa que trabalha nas redondezas e que não quis se identificar. No acampamento, a mulher que teria quebrado o celular de Claudete afirma ter entrado no carro da comerciante. "Ela estava ligando o carro, tirei a chave e guardei comigo [para que ela não pudesse sair]. Soquei ela, soquei o celular dela. O celular caía no chão, eu pegava e socava de novo. Soquei umas três vezes. Então joguei a chave longe e mandei ela procurar. Falei 'sua vaca, vai procurar a chave'", diz o áudio.

Presença constante no acampamento, a manifestante chegava todos os dias com o Ford Ka alugado. Segundo comerciantes locais, derrubava bolos de dinheiro no chão, como se estivesse desatenta. Um dos vizinhos viu a cena duas vezes e avisou que ela havia derrubado um pacote de notas. Nas redondezas, desconfiavam que era ela quem financiava o acampamento. Entretanto, não há provas disso nem a identificação da mulher.

O carro alugado pertence à Arval Locadora, que se colocou à disposição da polícia para esclarecimentos. A reportagem entrou em contato com a Arval, que tem 26 mil carros alugados para empresas no Brasil e não pode informar a qual delas pertence o Ford Ka usado no acampamento. "A Arval esclarece que não tem controle sobre os condutores designados pelos seus clientes para utilização desses veículos ou por suas ações diretas", afirmou em nota oficial, reiterando o compromisso de ajudar as autoridades.

9.jan.2023 | Desmonte do acampamento bolsonarista em Santana, zona norte de São Paulo - Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress - Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress
Acampamento bolsonarista na zona norte de São Paulo foi desmontado em janeiro de 2023
Imagem: Hermann Wecke/Futura Press/Folhapress

B.O. online

Claudete ligou para a polícia nove vezes entre a noite do dia 30 e a madrugada do dia 31. Quando a viatura chegou ao local, voltaram juntos ao acampamento. A oficial, porém, pediu que Claudete se afastasse para que pudesse conversar a sós com a manifestante que supostamente a agrediu.

"Não entendi o que elas não poderiam falar na minha frente. Mas ela disse que era minha palavra contra a dela e não poderia fazer nada. Fiquei inconformada. Foi a polícia que me ajudou a encontrar a chave do carro que ela havia jogado. Ainda fiquei mais uns 40 minutos ali esperando meu marido ir me buscar e a polícia me orientou a não chegar mais perto dos acampados."

Na madrugada, inconformada como desfecho da noite, Claudete voltou ao local, e ligou novamente para a polícia. Foi nesse momento em que conseguiu a placa do carro. "Todo mundo no acampamento orientou essa mulher a ir embora. Estranho ela fugir se eles estavam afirmando que quem estava errada era eu. Eu dizia: se sou eu a errada, por que ela tem que fugir? Mas ela fugiu", relata.

No dia 6 de janeiro, a reportagem havia perguntado à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo sobre as ocorrências em frente ao quartel de Santana. Na ocasião, o órgão respondeu que não havia registro de chamados para o local.

Foi só depois dos atos golpistas de 8 de janeiro que Claudete decidiu que queria levar a queixa adiante. "Pensei por vários dias. Eu tinha sido impulsiva e não queria ser de novo. Mas quando lembro que estava dentro do carro, esperando meu marido para ir embora, e essa mulher veio me tirar de lá, jogar a chave do meu carro longe, quebrar meu celular...", diz. "Precisava denunciar porque são pessoas criminosas. A situação em Brasília foi gravíssima, deveriam estar todos presos. Inclusive aqueles que estavam aqui nos acampamentos, que deram força para esse movimento."

Claudete fez um boletim de ocorrência online no dia 11, mas a solicitação continua pendente no site. Procurada novamente pela reportagem no dia 17 de janeiro, a Secretaria de Segurança Pública afirmou que o caso "foi registrado como lesão corporal pela Delegacia Eletrônica, sendo encaminhado ao 13º Distrito Policial (Casa Verde), responsável pela área dos fatos". "Na ocasião, a vítima foi orientada quanto ao prazo para representação criminal — o que não foi feito até o momento. Trata-se de um crime de ação condicionada, ou seja, é necessária a representação por parte da vítima para que as investigações prossigam", informou.

No dia seguinte, Claudete recebeu uma ligação da polícia, solicitando que ela se apresentasse à delegacia para dar continuidade ao caso. O encontro ficou marcado para segunda-feira (30). "Não posso ter medo. Mas, naquele dia, quando duas mulheres subiram a rua para me impedir de ir embora e me obrigaram a sair do carro, eu senti muito medo. A intenção delas era agredir. Parecia que a única forma de se sentir superior era ferir fisicamente", diz.