Indígenas celebram 'posse ancestral' da deputada federal Célia Xakriabá
Era sexta-feira, 27 de janeiro, quando a nova legislatura da Câmara dos Deputados recebeu as credenciais de entrada no prédio, já na preparação para a posse desta quarta-feira (1º). O momento teve um gosto especial para Célia Xakriabá (PSOL), 33, primeira indígena eleita deputada federal por Minas Gerais, onde conquistou mais de 100 mil votos. À sua colega de partido, a ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara, comentou: "Finalmente podemos entrar no Congresso Nacional sem medo de sermos recebidas com spray de pimenta".
Célia conta que tem uma longa lista de coisas a fazer em seus primeiros dias na Câmara: ajudar na formação da frente parlamentar em defesa dos povos indígenas, apresentar ao Ministério da Educação suas ideias para uma escola que considere os "contextos territoriais" dos alunos, e, objetivo imediato, pressionar para que dois de seus colegas parlamentares, o deputado Ricardo Salles (PL-SP) e a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), sejam investigados pelo colapso humanitário no território yanomami.
"Não conseguiram nos matar na totalidade durante a colonização do Brasil, nem na ditadura militar, e agora o governador Antonio Denarium (PP-RR) fala que precisamos ser 'aculturados', como se a nossa cultura fosse mais fraca", acrescentou. "Pelo contrário: vamos indigenizar a política."
Não que seja uma tarefa fácil: a bancada ruralista, que conta com cerca de 280 congressistas, é muito mais numerosa que a recém-chegada "bancada do cocar", que tem Célia na Câmara e indígenas no alto escalão do Executivo (como a ministra Sônia Guajajara, a presidente da Funai, Joenia Wapichana, e o Secretário Especial de Saúde Indígena, Weibe Tapeba). Cientes disso, indígenas foram a Brasília para abençoar os caminhos da deputada dos xakriabás no dia de sua posse.
Na Esplanada dos Ministérios, eles realizaram a "posse ancestral" de Célia nesta manhã — que contou com um ritual de limpeza, força e proteção, invocações conduzidas por pajés e rezadeiras ao poderoso deus Tupã, além de cantos, defumações com ervas e rodas de dança. Ao fim, caminharam em direção ao Congresso, fortemente protegido por militares.
Trajando um longo vestido amarelo rajado de pintas negras e grafismos azulados e com seu tradicional cocar, inspirados nas águas, onças e matas do Cerrado, só então Célia adentrou a chapelaria da Câmara, rumo à sua outra posse.
Uma adolescente entre os caciques
Natural da Terra Indígena Xakriabá, em São João das Missões, norte de Minas Gerais, a deputada não tem dificuldades em transitar pelas intrincadas superquadras brasilienses. Foi na Universidade de Brasília que ela se diplomou mestra em desenvolvimento sustentável, e a militância nas causas indígenas diversas vezes a levou à capital federal. Na primeira visita, tinha 13 anos.
"Desde criança ela presenciou o que é a luta de um povo", diz ao TAB o líder indígena Hilário Xakriabá, 61, pai da deputada. Curiosa, ela ouvia com atenção as narrativas dos mais velhos sobre as marchas indígenas em Brasília. De tanto perguntar, um dia um grupo de caciques que iria à cidade a convidou a ir junto. Chegando ao Congresso, surpreenderam-na com um pedido para falar à plateia, que incluía o então deputado Jair Bolsonaro (PTB-RJ à época).
Célia não se intimidou. "Falei que, ao destruírem nossas florestas, eles não estavam matando apenas a nós indígenas, mas matavam também o futuro dos filhos deles próprios", lembra. Na volta para Minas, foi elogiada pelos caciques, que lhe disseram que um dia ela os representaria em Brasília. Célia deu risada e voltou às suas ocupações de adolescente.
De lá pra cá, ela se graduou na primeira turma de ensino médio pensada especificamente para o povo xakriabá, tornou-se a primeira deles a ingressar no doutorado pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e a primeira a ocupar um cargo na Secretaria de Educação do estado.
Transitar, sempre como pioneira, por lugares que no imaginário conservador não correspondem aos indígenas é desgastante às vezes, conta Célia. "Quando não somos vítimas da política de ausência, somos vítimas da política da solidão. Mas foi muito importante romper com essa ausência na política. Isso aumenta o compromisso do nosso mandato."
Breve descanso no Cerrado
Os últimos meses de Célia foram de pura correria. Durante a campanha, chegou a ministrar 60 palestras a estudantes num único mês. No dia 2 de outubro, na apuração do primeiro turno das eleições, seus parentes comemoravam seus 20 mil, 30 mil votos, mas Célia preferiu manter a cautela — só quando já não restavam dúvidas de que ela estava eleita que ela comemorou, entre apitos e atabaques no Território Xakriabá.
Eleita, a deputada engajou-se na campanha petista pelo segundo turno, e viajou o Brasil em uma série de "escutações" com diferentes povos indígenas — o termo "oitiva" lhe parece demasiado carrancudo. Poucos dias após o fim da disputa presidencial, foi convidada a tomar parte na comitiva do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede) na COP27, no Egito. Lá, ouviu do bem-humorado presidente: "Você ainda vai dar muito trabalho para a oposição no Congresso Nacional".
Terminada a COP, foi convocada por Marina a compor o grupo de transição do governo. "Estudamos muito, esmiuçamos os problemas, e fizemos diversas recomendações para descolonizar a saúde e a educação indígena, o trato com o meio ambiente e a gestão do Fundo Amazônia", conta.
Com uma brecha na agenda antes de tomar posse, Célia não pensou duas vezes sobre o que faria para espairecer: conta que correu de volta ao Cerrado do norte de Minas para plantar abóboras e se reconectar com a terra. Na véspera da posse, já estava em outro canto do Cerrado, no Centro de Formação em Política Indigenista da Funai, em Sobradinho (DF).
"O Cerrado é o meu livro, eu só consegui me formar e ser quem eu sou porque tenho muito firme os pés no chão do meu território."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.