'Dediquei meu livro a Marielle Franco e meus pais não foram à premiação'
No que nomeou um impulso de tristeza, o professor de direito público Marcus de Matos, 41, recorreu ao Twitter para expressar uma frustração. Postou e saiu correndo um lamento pela recusa dos pais em participarem da cerimônia de premiação do seu primeiro livro. Três horas à frente no fuso, da casa onde vive na Inglaterra, desconectou e foi dormir. Quando acordou, estava famoso. A publicação havia ultrapassado o milhão de visualizações. "Já não adiantava mais apagar. Até liguei para um amigo assessor de imprensa e perguntei: 'O que eu faço?"", conta ele.
"O Bolsonarismo separou famílias", dizia o post publicado na rede social no dia 25 de janeiro pelo professor, PhD em direito pela Birkbeck — Universidade de Londres, e membro honorário do IAB (Instituto dos Advogados Brasileiros).
"Meus pais se recusaram a ir à cerimônia de premiação do meu livro porque ele foi dedicado à Marielle Franco", lamentava o acadêmico brasileiro radicado em Londres sobre a obra escrita por ele e sua esposa, a doutora em comunicação e também pesquisadora Priscila Vieira-Souza, 42.
Intitulado "Imagens da América Latina — Mídia, cultura e direitos humanos" (Intersaberes, 2021), o livro conquistou o primeiro lugar no Prêmio Abeu (Associação Brasileira das Editoras Universitárias), na categoria Ciências Sociais Aplicadas, em novembro. A intolerância política impediu que a proeza de um filho fosse celebrada por sua própria família.
'Ódio à politica'
A ida dos pais de Marcus — cujos nomes ele pediu à reportagem do TAB para preservar — à entrega do troféu foi cogitada em substituição da presença dos autores, já que o casal vive em Londres, onde ele dá aulas de direito público na Brunel University.
A recusa em participar da celebração, em protesto ao conteúdo da dedicatória questionada diretamente por eles, ficou clara nas entrelinhas. E, no dia do evento, os autores tiveram que se contentar em assistir à premiação pela internet.
Um trecho da dedicatória que provocou a crise familiar diz que Marielle Franco "encarna em seu rosto, sua voz e sua trajetória as lutas tantas, diversas e tamanhas que se prolongam em nosso continente". Marcus, um jovem de classe média oriundo de uma família simples que ascendeu na Zona Oeste do Rio, conta que trabalhou na Secretaria de Assistência Social do governo fluminense, onde viu de perto os esforços de Marielle.
Ele diz que divergências políticas sempre existiram na família, mas nunca haviam tomado essa proporção. "Esse trauma vou carregar pra sempre", escreveu, na mensagem pública. "Embora eu e minha família sempre tenhamos tido opiniões políticas diferentes, nunca foi como é hoje, era possível discordar". Nos últimos anos, a coisa mudou.
"O bolsonarismo proclama uma política do ódio, que é também um ódio à política", anotou o professor, para complementar: "O assassinato da Marielle é o cartão de visita do bolsonarismo."
Rede desfeita
O livro produzido pelo casal aborda o pós-colonialismo na América Latina e reflete sobre as marcas da colonização no Brasil e seu pertencimento ao espaço latino-americano. Traz capítulos sobre relações políticas e econômicas, neoliberalismo e violações de direitos humanos no continente, em um recorte histórico muito anterior à morte de Marielle Franco ou à chegada ao poder de Jair Bolsonaro.
Escrito em um momento em que o casal estava no Brasil, entre o interior do Paraná e o Rio de Janeiro, e lançado no ano em que regressaram à Inglaterra para trabalhar, paradoxalmente o livro teve na família um elemento determinante para a sua concepção.
Na época com uma filha de três anos, Marcus e Priscila aproveitavam os fins de semana, quando tinham suporte dos pais e parentes, para avançar na redação dos textos. A rede de apoio é mencionada nos agradecimentos da obra.
"A dedicatória é sobre Marielle, mas a gente agradece a todo mundo. Nossos familiares, nossos orientadores, nossos amigos e pessoas que trabalharam com a gente", ressalta Marcus. "É um esforço enorme escrever um livro, mas havia tanta coisa acontecendo na minha vida durante essa época que era mais uma coisa a se cumprir na agenda. E quando veio a premiação, confesso que fiquei surpresa. É muito bacana ter um reconhecimento desse", diz Priscila.
Fenômeno coletivo
Marcus admite que a postagem no Twitter foi um rompante, algo que talvez devesse ter sido dito ao analista e não numa rede social. A enorme repercussão, porém, com 2,2 milhões de visualizações, 4 mil retweets, 89 mil curtidas e 932 comentários, fez com que o professor decidisse mantê-la no ar e interagir com os comentários.
A troca ali se transformou em uma verdadeira catarse de filhos e seus desabafos sobre relações rompidas no Brasil pós-Bolsonaro. Tão logo acordou no dia 26 de janeiro, Marcus entendeu que a dor privada dele era, na verdade, um fenômeno coletivo.
Duas mensagens o marcaram especialmente. Uma sobre um filho cuja mãe não foi à formatura universitária por causa das desavenças políticas. E a de uma dupla de irmãos expulsa de casa por um pai empunhando arma de fogo, também por discordância sobre candidatos e votos.
"O fato de pessoas queridas se recusarem a ir ao lançamento do livro é muito menos grave do que o bolsonarismo fez. É um absurdo o número de famílias divididas por essa política do ódio. Fiquei mais chocado com isso do que com os haters", pontua Marcus.
Cultura do cancelamento
Ainda impactados com a experiência, Marcus e Priscila refletem sobre o lado positivo da exposição inesperada. Para ela, a postagem "deu uma profundidade na nossa percepção do que é essa política de fomento ao ódio e ao estranhamento do outro. O enaltecimento da cultura do cancelamento. E de como isso afeta as relações pessoais".
Ao contrário de Marcus, que permanece lendo os relatos, tanto de solidariedade como de identificação com o ocorrido, Priscila passou a evitar. "Tem sido doído ver pessoas que a gente ama defendendo um projeto de país que não me coube. Não é fácil", comenta ela, apesar do apoio familiar que teve da parte de sua família, em contraposição ao núcleo do marido.
A distância que se estabeleceu faz com que Marcus não saiba até agora se seus pais tomaram conhecimento da postagem. Segundo ele, as únicas fontes de informação dos dois continuam sendo grupos fechados de aplicativos de mensagem.
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