Gaúcho faz sucesso costurando (e vestindo) roupas inspiradas no século 19
"Até as cuecas?" é uma pergunta comum que Arthur Adams, costureiro e pesquisador de moda, recebe com frequência de seus milhares de seguidores no Instagram quando diz que trocou todo o armário de roupas modernas para peças costuradas à mão seguindo as tendências e técnicas do século 19. Obcecado por alfaiataria histórica, o gaúcho de 27 anos enfrenta os dilemas do século 21 da mesma forma de todos nós, mas vestido como um dândi. "Eu já me perdi no personagem", diz.
Adams faz parte de um microuniverso composto por historiadores e pesquisadores que se dedicam a reproduzir no dia a dia o cotidiano de séculos passados. Há desde criadores de conteúdo que fazem receitas da Idade Média ou Moderna utilizando técnicas da época, aos que debruçam sobre os tecidos e linhas de costura para fazer trajes da mesma forma de antigamente.
Para colocar tudo em prática, Adams é um pesquisador ávido do século 19. Não só para entender o contexto histórico, mas a rotina de trabalhadores comuns da hora de acordar até a hora de dormir. Foram necessários três anos de dedicação, usando todo o tempo livre para costurar, para Adams colocar todo o armário moderno em uma sacola e doar para um brechó de igreja.
E, sim, as cuecas deram lugar às calçolas, estas bem mais pudicas e longevas. "Mantive algumas no começo para casos de emergência, hoje me desfiz já de tudo", conta. A única coisa que Adams de fato compra são meias finas e compridas de elastano para compor os looks. "Eu compro porque são muito chatas pra costurar", justifica a escolha, dando a dica de que meias de trajes típicos alemães são ótimas para composição de trajes de festa.
Um dândi em Gramado
Adams nasceu em Igrejinha, região metropolitana de Porto Alegre que é conhecida pela indústria focada em calçados e artigos de couro. Por causa disso, nasceu e foi criado praticamente dentro de uma fábrica de sapatos. O pai era modelista e também mantinha um ateliê em casa para vender a própria produção.
A costura sempre esteve presente na vida dele, mas virou paixão anos depois, durante os primeiros meses da pandemia, quando decidiu colocar em prática a pesquisa histórica e o curso técnico de costura para montar um traje completo masculino do século 19. Antes dela, o gaúcho se dedicou ao piano.
A atração pelas vestimentas do século 19 não veio de um despertar especialmente espiritual. "Apenas gosto da estética", explica.
Depois de viver em Porto Alegre durante um período para estudar, Adams foi para Gramado para ficar perto dos pais, hoje aposentados da produção de calçados. O retorno ao interior, que já tem cinco anos, não foi um problema. "Sabe aquele objeto que se encaixa perfeitamente em um canto da sua casa? Eu sou um bule em um lugar perfeito, que é Gramado", conta.
"Tenho saudades de coisas de cidade grande, tipo ir a um teatro, sarau ou um barzinho onde ninguém me julga. Aqui, querendo ou não, tem essas coisas de cidade pequena onde sou visto como o louquinho que veste roupas estranhas. Mas tive muita alegria de conhecer de surpresa muita gente que admira meu trabalho e isso foi muito bacana", conta.
A produção das peças acontece quase sempre durante noites insones e na adrenalina de precisar costurar alguma coisa. "Se eu não costurar, não tenho o que vestir", sorri. Durante o horário comercial, Adams trabalha em um antiquário da cidade. Segundo ele, as vestimentas históricas nunca foram um problema para os empregadores. "Eles sempre foram excelentes desde o começo, quando eu não sabia costurar direito e parecia que eu usava uma lona de circo."
O interesse pela costura histórica também uniu Adams ao namorado, Paulo Samu, 29. Os dois se conheceram pela internet em um grupo sobre o tema e trocam figurinhas (e roupas) da época. No dia das fotos para o TAB, escolheu um colete produzido pelo amado. "Meu namorado fez tudo em técnica histórica. Foi um presente que sempre me ajuda nesses momentos", conta, orgulhoso.
Masculinidade florida
As roupas de Adams são feitas com técnicas, cores e tecidos usados durante o século 19. Mais especificamente de 1800 a 1830, período favorito do gaúcho. Essa época foi marcada pelas mudanças sociais e políticas trazidas pelo fim da Revolução Francesa, marcando o começo do novo regime e novos ideais de beleza.
"Era uma ideia diferente de masculinidade", explica. "O poder saiu das mãos dos monarcas e da igreja, transferido às figuras políticas que tentavam de destacar pelo intelecto e não pela força. As cores importavam muito, como o rosa, que era uma cor de poder para homens, assim como as flores. As roupas eram todas bordadas com flores para simbolizar status."
As reformas estéticas catapultadas pelos conflitos que se arrastavam desde o século 18, especialmente a Revolução Francesa, diz, também deram origem aos "incroyables" e "merveilleuses" (incríveis e maravilhosas, em tradução livre) e aos dândis.
Adams não rejeita o título de "dândi moderno", apesar de seu interesse pelo vestuário masculino também ser muito focado nas roupas do dia a dia usadas pela classe trabalhadora do século 19.
Por sorte, é um período muito documentado e há uma abundância de artigos acadêmicos, gravuras e ilustrações que registraram à risca tudo que Adams precisava para produzir as próprias vestimentas. Tudo é costurado à mão, inclusive os bordados e detalhes das peças. "Quem se dedica em reproduzir as roupas do feudalismo sofre muito mais", diz.
Saudosismo? Aqui não
Apesar de Adams gostar das vestes e culinária da primeira metade do século 19, ele deixa claro que não compactua com os valores, política e costumes da época. Assim como uma boa parcela dos criadores de conteúdo de moda vintage, o mantra de Adams é "vida vintage, mas não valores vintages".
O interesse pela moda brasileira do período entre colônia e império invariavelmente coincide com a monarquia no país, a qual Adams diz não ter nenhuma simpatia específica. "Toda vez que alguém vem falar de D. Pedro 1º, eu falo das cartas dele. São geniais, muito boas. Ele tem várias em que se se chama como 'Fogo Foguinho' e 'Demonão'. Eram os nudes da época."
Quando não se dão por satisfeitos, alguns simpatizantes da monarquia insistem. "Como aristocrata, ele fez o trabalho que foi criado para fazer. Era o mínimo que ele tinha que entregar. Quem fez muito mais nessa época foram os abolicionistas, foi Chiquinha Gonzaga, Luís Gama. Tem mais coisa para falar dessa época além de D. Pedro 1º."
O que tira o pesquisador do sério é ser chamado de saudosista da escravidão e outros costumes reprováveis da época. "Não faço saudosismo, não relativizo nada. Acho ridículo quando justificam que escravidão era uma coisa da época. Não dá pra defender que era normal, até porque existia um movimento contra", esclarece. "Não faço cosplay de D. Pedro ou de monarquia".
O jeito de Adams nos vídeos e publicações nas redes sociais e no seu canal de YouTube às vezes decepciona alguns seguidores que esperam um tom mais polido. "Ficam frustrados porque acham que eu sou sério, que eu só escuto música do século 19", se diverte. "Escuto Beethoven e Pabllo Vittar no mesmo dia. Minhas playlists são um surto."
Apesar das noites viradas para costurar, ele diz que se sente exatamente como deveria ser encarnando um dândi moderno e pretende desmistificar algumas visões sobre os séculos passados, especialmente na parte da rotina dos homens "comuns" da época.
"As pessoas pensam no passado como algo sujo. Algo somente cinza e escuro. Só que o passado, no Brasil especialmente, era tudo colorido."
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