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'Lugar respira arte': a casa do Dr. Victor de 'Castelo Rá-Tim-Bum' em SP

16ago.2019 - O ator Sérgio Mamberti, morto em 2021, sentado no jardim da casa onde morou por 50 anos, na Bela Vista, São Paulo - Karime Xavier/Folhapress
16ago.2019 - O ator Sérgio Mamberti, morto em 2021, sentado no jardim da casa onde morou por 50 anos, na Bela Vista, São Paulo
Imagem: Karime Xavier/Folhapress

Do TAB, em São Paulo

20/03/2023 04h01

Um sobrado da rua dos Ingleses, na Bela Vista, em São Paulo, sobrevive quase despercebido pelos olhos de quem passa em frente. A estreita fachada e o jardim abarrotado de plantas camuflam a casa onde morou por mais de 50 anos o ator e diretor Sérgio Mamberti, morto em 2021, aos 82 anos, em decorrência de falência múltipla dos órgãos.

Raro suspiro em um bairro pressionado cada vez mais pela especulação imobiliária, o imóvel guarda memórias de tempos efervescentes da cultura e política brasileira. Nele, Baby do Brasil e Pepeu Gomes arranjaram pouso enquanto passavam pela capital paulista no início dos anos 1970, em pleno frisson do álbum "Acabou Chorare", que fazia a cabeça dos jovens em plena ditadura militar.

Naquela mesma década, o elenco da companhia teatral Living Theater — símbolo da contracultura norte-americana — também se hospedou ali durante os meses em que estiveram no Brasil. Antes de serem presos e expulsos do país pela repressão, no entanto, os artistas fizeram do lugar um simulacro da liberdade, uma espécie de comunidade hippie à espreita de soldados.

Lembranças como essas, tantas vezes narradas e recontadas por Sérgio em vida, vivem agora compiladas num acervo de livros, objetos, quadros, fotografias e documentos guardados pelos herdeiros dele, os filhos Fabrício, Duda e Carlos, como parte de sua biografia e da história da cultura nacional.

A casa do ator Sérgio Mamberti, na Bela Vista, São Paulo -  Daniela Toviansky/UOL -  Daniela Toviansky/UOL
A casa do ator Sérgio Mamberti, na Bela Vista, São Paulo
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Reencontro

"Eu achei que não conseguiria ficar aqui. Porque tudo é uma lembrança do meu pai", conta, com os olhos marejados, o produtor cultural Carlos Mamberti, 56, sentado num sofá do escritório onde Sérgio trabalhava, bem ao lado do quarto onde viveu. É Carlos quem cuida mais diretamente do acervo do pai, desde que voltou a morar na casa, vinte dias após sua morte.

Fisicamente parecido com o pai, o produtor surpreendeu fãs e o elenco do programa "Castelo Rá-Tim-Bum", numa edição especial exibida na TV Cultura em 25 fevereiro, na qual se reuniram parte da equipe envolvida na produção que foi sucesso nos anos 1990.

Ao surgir em cena caracterizado como Doutor Victor, o dono do Castelo, que fora interpretado por Sérgio, Carlos levou os colegas às lágrimas. "É incrível, 30 anos depois, eu poder fazer essa homenagem. Como meu pai sempre falou, o Tio Victor é seu maior personagem. Acompanhou ele por trinta anos, e [teve] o reconhecimento de todo mundo, o tempo inteiro", disse.

Acostumado com os bastidores do teatro, aquela foi a primeira experiência de Carlos como ator. A homenagem resgatou, de certo modo, um projeto que pai e filho pretendiam tocar em 2021, durante a pandemia, mas que foi interrompido com a morte de Sérgio.

"Íamos fazer uma série baseada no Castelo. A ideia era que meu pai, como Tio Victor, contasse episódios da história do Brasil gravados dentro de um teatro, e ficaríamos hospedados num hotel, isolados. Mas não conseguimos finalizar", conta.

O produtor cultural Carlos Mamberti - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
O produtor cultural Carlos Mamberti
Imagem: Daniela Toviansky/UOL
Cássio Scapin abraça Carlos Mamberti, que homenageou o pai caracterizado como Dr. Vitor em especial do 'Castelo Rá-Tim-Bum' - Reprodução - Reprodução
Cássio Scapin abraça Carlos Mamberti, caracterizado como Dr. Victor em especial do 'Castelo Rá-Tim-Bum'
Imagem: Reprodução

Paixões

Sérgio Mamberti foi uma figura importante para as artes no Brasil, não só por sua atuação em produções de prestígio no teatro, na TV e no cinema, mas também por seu papel como gestor cultural.

Durante os dois primeiros mandatos de Lula (PT) como presidente e no primeiro de Dilma Rousseff (PT), ele esteve em diversos cargos ligados ao Ministério da Cultura, incluindo a presidência da Funarte (Fundação Nacional de Artes). Um dos maiores legados deixados por Mamberti na política pública de cultura foi a criação de programas de valorização da diversidade artística do país e da cultura popular, com destaque para comunidades tradicionais.

Marca desse entusiasmo pela produção artística de mestres artesãos, o ator passou a colecionar objetos como estátuas de barro e madeira assinadas por artistas de todo o Brasil. Entre elas, há leões do ceramista pernambucano Nuca e anjos da paraibana Nenê.

O sobrado da rua dos Ingleses foi reformado exatamente do jeito que Sérgio Mamberti quis, numa obra que se arrastou durante dez anos. "Meu pai tinha uma relação de amor puro com esse lugar. E fez a casa do jeito dele, passando por cima de toda dificuldade, de grana, de tudo."

O projeto arquitetônico parece ter sido pensado justamente para que o ator e a esposa, a atriz Vivian Mahr, morta em 1980, conciliassem os encontros de amigos e familiares com a paixão pelas expressões artísticas.

Nas paredes dos dois andares da casa figuram quadros assinados por artistas de diferentes estéticas e linguagem, a exemplo da abstracionista Tomie Ohtake e o cenógrafo Flávio Império, amigo do casal, além de gravuras japonesas. Também estão ali fotos de momentos marcantes da carreira dos dois artistas, como registros de espetáculos, e da atuação de Mamberti na política.

Quadros de Flávio Império, Tomie Ohtake e gravuras japonesas estão no acervo deixado pelo ator - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Quadros de Flávio Império, Tomie Ohtake e gravuras japonesas estão no acervo deixado pelo ator
Imagem: Daniela Toviansky/UOL
Obras de arte popular colecionadas por Sérgio Mamberti - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Obras de arte popular colecionadas por Sérgio Mamberti
Imagem: Daniela Toviansky/UOL
Paredes do escritório de Sérgio estão repletas de fotos de espetáculos e amigos - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Paredes do escritório de Sérgio estão repletas de fotos de espetáculos e de amigos
Imagem: Daniela Toviansky/UOL
Entre as fotos estão imagens do Sérgio com a esposa, Vivian Mahr, e com o irmão Cláudio Mamberti - Daniela Toviansky/UOL - Daniela Toviansky/UOL
Entre as fotos estão imagens do Sérgio com a esposa, Vivian Mahr, e com o irmão Cláudio Mamberti
Imagem: Daniela Toviansky/UOL

Futuro

A sensação de quem passeia pela casa dos Mamberti é a de uma volta no tempo, num exercício não tão difícil de repensar a relação apaixonada de um artista pelo seu próprio ofício. É verdade que o passeio parece estar incompleto com a ausência do seu anfitrião — e está, de fato —, mas é como se todos aqueles objetos nos guiassem por sua história de vida.

Cada vez mais perdido num mundaréu de edifícios altos e robustos, o casarão é ainda a marca indelével de uma família de artistas que se moldou, em certo sentido, estabelecendo uma relação umbilical com a cidade de São Paulo. "Minha casa acompanhou muito da história brasileira, da cultura", disse o próprio Sérgio em 2015, numa entrevista à Folha de S.Paulo.

E é tudo imenso demais para ficar tão guardado, acreditam os filhos do artista. Embora ainda dependa de um catalogação minuciosa, o acervo, como querem os herdeiros, pode vir a se tornar acessível ao público para pesquisa e estudo. "Esse lugar respira arte", afirma Carlos Mamberti. O desejo deles é transformar o imóvel em um centro cultural.

"Gostaríamos de fazer aqui um espaço de leitura teatral, estudo, de formação. Um lugar para se viver a cultura."