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No democrático 25 de Abril, 300 bolsonaristas vaiam Lula nas ruas de Lisboa

Ronald de Jesus (de chapéu preto) faz selfie com amigo durante protesto contra Lula organizado pelo Chega, partido de extrema direita de Portugal - Antônio Martins Neto/UOL
Ronald de Jesus (de chapéu preto) faz selfie com amigo durante protesto contra Lula organizado pelo Chega, partido de extrema direita de Portugal
Imagem: Antônio Martins Neto/UOL

Antônio Martins Neto

Colaboração para o TAB, de Lisboa

25/04/2023 16h51

Um policial dá ordem para o carro parar e informa o motorista que o veículo não poderá passar daquele ponto. Até o local da manifestação, a 400 metros de distância, só se vai a pé. Um casal na faixa dos 40 anos e um jovem com uma bandeira do Brasil nas costas desembarcam. Carro e motorista, a serviço de um aplicativo de transporte, vão embora. O trio desce uma das ladeiras do tradicional bairro da Lapa, em Lisboa, ensaiando em voz alta os adjetivos que pretendem gritar: "ladrão, assassino, cachaceiro, alcoólatra!".

Os xingamentos reverberam o discurso que os políticos da extrema direita fizeram ecoar no plenário da Assembleia da República desde o final de fevereiro, quando o presidente português Marcelo Rebelo de Sousa convidou Luiz Inácio Lula da Silva para uma visita de Estado.

O ponto alto seria um discurso de Lula na cerimônia de 49 anos do fim da ditadura portuguesa, o mais longo regime autoritário da Europa Ocidental — em vigor por 48 anos, nas ditaduras de António Salazar e Marcello Caetano, de quem Rebello de Sousa, afilhado e ex-aluno no curso de direito, herdou o nome. Os caminhos da política são mesmo tortuosos, seja no Brasil ou em Portugal.

Os parlamentares portugueses ficaram ressentidos com a Presidência da República e com o gabinete do primeiro-ministro António Costa por não terem sido consultados sobre o convite. Lula seria o primeiro chefe de Estado estrangeiro a discursar na Assembleia num 25 de Abril. O presidente e o primeiro-ministro portugueses recuaram e, para evitar uma descortesia com o visitante, propuseram uma solenidade de boas-vindas a Lula, marcada para uma hora e meia antes da tradicional cerimônia da Revolução dos Cravos. Lula poderia então falar à vontade; quando a liberdade fosse enfim enaltecida pelos parlamentares portugueses ele já estaria longe, a caminho da Espanha, a próxima parada neste tour presidencial pela Europa.

Partido português Chega organizou protesto contra visita de Lula a Portugal - Antônio Martins Neto/UOL - Antônio Martins Neto/UOL
Protesto contra visita de Lula a Portugal no 25 de Abril, data da Revolução dos Cravos
Imagem: Antônio Martins Neto/UOL

Cartazes e megafone

Faltava combinar com o Chega, o partido de extrema direita de Portugal, terceira maior força política do país, com doze deputados eleitos. Seus dirigentes correram para organizar com o Movimento Brasil Portugal o que chamaram de "maior manifestação de sempre" no país, mobilizando portugueses filiados e simpatizantes do partido e brasileiros entusiastas do ex-presidente Jair Bolsonaro, em especial evangélicos.

Pouco mais de 300 pessoas atenderam ao chamado, segundo a imprensa local, quantidade bem inferior ao que desejavam os organizadores. Por determinação da polícia, ficaram concentrados na Avenida D. Carlos 1°, com vista para o imponente edifício da Assembleia, mas longe dos olhos e do alcance dos apoiadores de Lula.

"Ele tem direito a visitar qualquer país. Só acho que a Assembleia da República é um lugar especial para o povo português", diz a médica Nair Amaral, 54, há seis em Portugal.

"O que me chama atenção é a adoração e a veneração por um político com questões muito delicadas. Portugal tinha que ter um cuidado com quem se aproxima", completa a brasileira, enquanto ergue um cartaz que pede tolerância zero à corrupção.

"O Lula representa tudo que combatemos, principalmente a corrupção, além de alguns males que nesta democracia doente se encontra", afirma o técnico em saúde português Sérgio Vaz, 50, filiado ao Chega. É dele a missão de mobilizar os manifestantes. Tem nas mãos um megafone, por onde faz soar uma palavra de ordem bem familiar aos brasileiros que antipatizam com o atual presidente: "Lula, ladrão, seu lugar é na prisão".

Família desce do carro para protestar contra a visita de Lula a Portugal - Antônio Martins Neto/UOL - Antônio Martins Neto/UOL
Imagem: Antônio Martins Neto/UOL

E Lula permanece preso nos cartazes com montagens de grades e nas mentes dos manifestantes. Walter Souza, 68, está há três décadas em Portugal. Veio à manifestação para perguntar aos jornalistas porque os jornais não mostram o aeroporto que, segundo ele, Lula teria construído na própria fazenda que ficaria no estado do Mato Grosso, perto da fronteira com a Bolívia. "Um amigo do meu irmão trabalhou na obra e disse que a pista é para receber aviões de grande porte", garante o brasileiro que, em Portugal, é dono de uma oficina mecânica.

Em meio a palavras de ordem, soar de apitos e reprodução de sirene policial, dois homens, um deles com camisa da seleção brasileira, se abraçam em frente a um celular. A selfie é para registrar a primeira manifestação política de Ronald de Jesus, 40, em Portugal. Há três meses, ele deixou a família em Criciúma (SC) para tentar a vida em Lisboa. Já arrumou emprego numa oficina mecânica e se prepara para trazer mulher e filhos. "Vim à procura de uma vida melhor, porque no Brasil a situação tá meio ruim com o novo presidente, muitos impostos, comidas mais caras e com mais chance pros ladrões do que pras pessoas de bem."

Ronald divide a selfie com o representante comercial Márcio Eduardo Lourenço Gonçalves, 47. Ele está em Portugal há 23 anos — imigrou depois de perder duas lojas, em consequência do Plano Collor. Aqui, é eleitor convicto do Chega, apesar da política anti-imigração do partido. "Eu voto porque é um partido de direita, é um partido que não apoia a corrupção, um partido que apoia a liberdade, um partido que apoia que as pessoas tenham meritocracia", afirma. "Não é porque tem amigo, porque tem um conhecido na política, que tem incentivo, que tem ajuda", completa o brasileiro, pouco antes de listar a ajuda que deu a Ronald, o amigo recém-chegado. "Uma moradia perto de casa, documentação, orientação e trabalho através de um amigo."

Apoiador de Lula, que visita Portugal - Antônio Martins Neto/UOL - Antônio Martins Neto/UOL
Apoiador de Lula, durante manifestação de apoio à visita do presidente brasileiro a Portugal
Imagem: Antônio Martins Neto/UOL

Cravos e tambores

Se os dirigentes do Chega foram velozes em organizar os protestos, o Núcleo do Partido dos Trabalhadores em Lisboa também se apressou para o contra-ataque. No mesmo dia 25 de Abril, na mesma hora (9h), no mesmo local. Restou aos responsáveis pela segurança pública separar os grupos para evitar embates e agressões. Um de cada lado da casa parlamentar, protegida por barreiras policiais num raio de 200 metros.

Os apoiadores de Lula ficaram concentrados do lado esquerdo da Assembleia da República, em menor número que o grupo antagonista, embora mais barulhento, com palavras de ordem somadas ao soar do xequerê e da alfaia, instrumentos do maracatu, ritmo tradicional do estado de Pernambuco.

A portuguesa Maria Fernanda de Souza, 83, trazia um cravo vermelho no peito, feito por ela mesma em crochê. Esteve na marcha da revolução que restaurou a democracia no país quando era dona de casa e cuidava dos filhos ainda pequenos. "Foi um sonho que depois virou realidade, com o povo na rua", lembra.

Hoje, ela veio à rua mais uma vez, não só para comemorar o 25 de Abril mas também para saudar o presidente do Brasil. "Espero que o povo brasileiro veja o trabalho do Lula pela paz, pelo desenvolvimento do povo indígena, e que vejam a capacidade de amor que ele tem pelo Brasil."

Manifestante entre o grupo de apoiadores de Lula - Antônio Martins Neto/UOL - Antônio Martins Neto/UOL
Manifestante entre o grupo de apoiadores de Lula
Imagem: Antônio Martins Neto/UOL

De camisa e cravo vermelho na mão, o professor de história português Tomás Borges, 24, aproveitou a manifestação para dar uma aula in loco a um de seus alunos mais dedicados, o paulistano Fausto Zellmeieter, 15. "É muito bom se integrar e entender a luta de classes e dos trabalhadores de outros países, e ver uma revolução que de fato aconteceu", diz o jovem que está terminando o equivalente ao ensino fundamental em Portugal, onde mora há seis anos. Já para o professor, que desde pequeno acompanha as marchas do 25 de Abril, a visita do presidente brasileiro deu um significado extra uma data já tão importante. "Acho que é muito bom estarmos a trabalhar nessa ligação Portugal-Brasil", afirma. "E todo esse dia simboliza o fim ao fascismo, o começo da liberdade do povo português e um sentimento que nós temos de viver todos os dias."

Com um cravo na mão e um boné do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) na cabeça, a estudante e pesquisadora Elizabeth Olegário, 36, veio sobretudo agradecer aos investimentos em educação durante os dois primeiros governos do presidente Lula.

"Viemos também vestidos de esperança, né? Esperança de um país melhor, de um presidente que consegue dar uma dimensão maior para o nosso país, e eu digo isso enquanto investigadora e bolsista no governo Lula", explica a brasileira, que há seis anos saiu de Natal (RN) e hoje faz doutorado na Universidade Nova de Lisboa, a universidade que nasceu no final do ano de 1973, quando Portugal começava a sentir o frescor da primavera que explodiria quase um ano e meio, depois num 25 de abril.