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No Facebook, mulheres childfree relatam busca por laqueadura após nova lei

Paula Oshikawa, da página Laqueadura Sem Filhos, no Facebook - Reprodução/Instagram
Paula Oshikawa, da página Laqueadura Sem Filhos, no Facebook Imagem: Reprodução/Instagram

Carla Castellotti

Colaboração para o TAB, de São Paulo

06/05/2023 04h01

Um sonho que a youtuber Paula Oshikawa, 32, nunca sonhou foi a maternidade. "Já tinha certeza que não queria ter filhos aos 12 anos", conta ela, que enfrentou uma saga para fazer a laqueadura em São Paulo: a partir dos 25 anos, consultou mais de dez ginecologistas que tentaram dissuadi-la da ideia. "Você não tem maturidade para pedir esterilização aos 25", disse-lhe uma médica. "E maturidade para ser mãe eu teria?", Paula respondeu.

Ela conseguiu a cirurgia aos 27 anos, depois de muita insistência, e passou a compartilhar informações na página de Facebook Laqueadura Sem Filhos. Com a recente mudança na Lei de Planejamento Familiar, a idade mínima para o procedimento caiu de 25 para 21 anos e, independentemente da idade, não é mais necessário ter consentimento do cônjuge ou ter "ao menos dois filhos vivos". A alteração foi celebrada na página de Paula: "Faço 21 dia 9 [de abril], o meu maior presente é a minha laqueadura", postou uma das seguidoras.

"Ter filhos não me realizaria como mulher. E nenhuma criança merece isso, um pai, uma mãe que não o deseja", diz a youtuber, hoje instalada na Noruega, de onde continua administrando a página com 57 mil seguidoras, uma das maiores do gênero "childfree" no Facebook. Segundo um estudo de 2019, 37% das mulheres brasileiras dizem que não querem ter filhos no futuro.

Na página, as participantes compartilham táticas para enfrentar possíveis recusas médicas para o procedimento — segundo relatos, apesar da nova legislação, ainda é difícil conseguir acesso à cirurgia no Brasil. "A lei mudou, agora eles não podem te dizer 'não', se caso acontecer, ligue pro 136 e denuncie o médico", uma seguidora publicou, comentado num desses relatos recentes.

"Diante da nova lei, houve uma maior publicização do próprio direito feminino à laqueadura", pontua a ginecologista e sexóloga Rayanne Pinheiro, 35. Entretanto, ainda "é comum que ginecologistas e obstetras tentem dissuadir as pacientes", pondera. "Essa prática tem a ver com várias estruturas da sociedade, uma delas é o machismo, com a ideia de que a mulher nasce para ser mãe."

Página Laqueadura Sem Filhos - Reprodução - Reprodução
Post e comentários na página Laqueadura Sem Filhos, no Facebook
Imagem: Reprodução

'Só vou me sentir segura depois de operar'

Foi na página Laqueadura Sem Filhos que a estudante Yasmin Rodrigues da Silva, 24, soube da alteração na lei. De Palmas, ela se identifica com o movimento childfree e já estava contando os dias para completar 25 anos para pedir a ligadura das trompas. "Não pretendo ter nenhum tipo de criança na minha vida", diz. "Não é que eu não goste delas [das crianças]. Mas se não tenho nenhum tipo de responsabilidade, não quero ter contato. Não acho 'ah que bonitinho' as crianças, prefiro minhas gatas."

Depois de ler sobre a nova legislação, em vigor desde 6 de março, ela procurou um posto de saúde no Dia Internacional da Mulher. Após três semanas, conseguiu marcar a consulta com uma ginecologista no SUS (Sistema Único de Saúde). "A médica não apresentou nenhum impedimento para o meu pedido, inclusive disse que ela própria não queria ter filhos também", relata.

Yasmin também foi atendida por um psicólogo, em uma consulta que durou cerca de cinco minutos: ele fez perguntas para basicamente confirmar que ela está ciente de que se trata de um procedimento irreversível. "Já fiz todos os exames e agora vou aguardar ser chamada para a cirurgia", diz. Segundo a ginecologista que a atendeu na capital do Tocantins, na fila para laqueadura a prioridade é para mulheres com filhos. Para mulheres sem filhos, como a estudante, a espera mínima é de 60 dias — em nota, o Ministério da Saúde informa que gestores estaduais e municipais podem criar critérios locais para o andamento da fila.

Yasmin vai aguardar, determinada que está. "Desde os oito anos, sabia que não queria ser mãe." Ela conta que durante a infância toda, no Maranhão, precisou cuidar de dois irmãos mais novos e uma irmã especial. "Éramos eu e minha mãe em casa, mas eu que cuidava das crianças", relata a estudante, que se refere à época como "um trauma".

A ideia de ser mãe a assusta tanto que ela, bissexual, adotou métodos contraceptivos diversos ao se relacionar com homens: além da pílula, que abandonou por sentir enjoos e dores, cogitou um DIU e aderiu ao combo camisinha e pomada espermicida. "Hoje, meu principal método é a abstinência. Só vou me sentir mais segura depois de operar mesmo."

Kemily Sena - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kemily, 25, conseguiu fazer a laqueadura há cerca de um mês, em Boa Vista
Imagem: Arquivo pessoal

Zerando a fila

Dona de uma sex shop em Boa Vista, Kemily de Sena Correa, 25, fez a cirurgia há cerca de um mês. Seguidora da página Laqueadura Sem Filhos, ela deu entrada no processo via SUS em outubro, dois meses após seu aniversário — na época, a idade mínima ainda era 25.

"Nunca fui fã da maternidade, do caos que é", conta Kemily, citando que ajudou a criar seus cinco irmãos. A autônoma diz que foi uma "adolescente rebelde" e saiu de casa aos 15 com um namorado, com destino a Manaus. "Ele me estuprou", relata ela, que então decidiu que não queria ter filhos.

Kemily usou anticoncepcionais injetáveis, camisinha, coito interrompido, DIU de cobre, tudo por temer uma gravidez. "Tenho tocofobia", afirma a empreendedora, referindo-se ao medo extremo de engravidar. "Entrava em pânico toda vez que a menstruação atrasava, pensava em aborto, mil coisas passavam pela minha cabeça, menos ter filho."

Em outubro, ela fez os exames pedidos pelo médico do SUS. Em dezembro, passou por uma nova consulta e foi orientada a esperar uma ligação para agendar o procedimento. "Em março, eles me ligaram", lembra.

O caso de Kemily foi agilizado devido ao Programa Nacional das Filas Eletivas, Exames Complementares e Consultas Especializadas, do Ministério da Saúde, que fez uma ação para zerar a fila de 253 laqueaduras que estavam pendentes em Roraima. "Foi tudo muito rápido. Fiz novos exames em uma quinta, fui internada na sexta, operei no sábado e, no domingo [9 de abril], tive alta."

'Já fui mãe sem ter filhos'

De Salvador, a atendente de farmácia Alcilane dos Santos, 27, pretende pedir pelo SUS a cirurgia nas suas férias, em agosto. O marido também não quer filhos: ele quer fazer a vasectomia; ela, a laqueadura.

Juntos há sete anos, o casal decidiu os métodos contraceptivos definitivos. Alcilane engravidou uma vez, pois a camisinha estourou, mas teve um aborto espontâneo durante uma aula na faculdade. "Se a gestação tivesse vingado, eu não iria abortar. Iria criar, cuidar da melhor forma possível", conta. Depois, ela passou a tomar pílula e, há três anos, usa anticoncepcional injetável.

Seguidora da página Laqueadura Sem Filhos, Alcilane também se considera childfree. Ela vem de uma família grande, com quatro irmãos e quatro meio-irmãos. "Meus pais se separaram quando eu tinha três anos. Minha mãe criou os filhos sozinha, é a típica mãe solo brasileira", diz.

Na adolescência, ela trabalhou como babá e ajudou a cuidar dos sobrinhos para a irmã ir trabalhar, época em que mal dormia. "Quem acordava de madrugada para dar a mamadeira era eu. Já tinha a rotina do que é ser uma mãe, sem ser uma mãe."

Além da irmã, uma prima do marido é mãe solo. "[Ela] vem chorar comigo. Está sobrecarregada, não está conseguindo dar conta do trabalho, sempre brigando com o ex-marido pela pensão", narra. "Tem dias que ela nem dorme, o filho dela é autista. Fico vendo a labuta dela e da minha irmã, e eu não quero isso pra mim. Se eu tenho poder de escolha, eu não quero essa vida pra mim."

A atendente conta que gosta de crianças, mas prioriza a sua vida independente. Não é, diz ela, childfree "extrema" que não gosta de jeito nenhum de lugares frequentados por crianças. "Tolero, desde que a criança seja comportada. Criança chorando e gritando me incomoda. A depender do lugar, queremos silêncio. Se a criança ficar correndo pra lá e pra cá, eu prefiro mudar de lugar."